Judiciário: um poder técnico e imparcial?

Direito e (In) Justiça

Juliana Benício Xavier e Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira são advogadas populares e compõem o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Não há melhor ditado popular capaz de refletir a razão das expectativas que a sociedade brasileira tem depositado no Poder Judiciário. Em terra em que as esperanças com o parlamento e com o Executivo vêm sendo historicamente esmagadas, o Judiciário assume o lugar de mestre e feitor da decência.

Não podemos nos esquecer, PRIMEIRAMENTE, que esse Judiciário interpreta, ou pelo menos deveria, as leis criadas pelos dois outros poderes da República. Além disso, a função de defensor incansável da moralidade segue as premissas éticas relacionadas ao individualismo e à segmentação social, premissas do liberalismo político, teoria que está na gênese de sua existência como um poder independente dos demais.

Será acertada a decisão de deixar nas mãos de um conjunto de indivíduos que ocupam lugar privilegiado na sociedade os rumos das nossas vidas? Os posicionamentos assumidos pelo Judiciário são realmente técnicos e imparciais, justificando que abramos mão de um ativismo social em favor do ativismo judicial? Essas são algumas das indagações que Juliana Benício e Larissa Vieira, advogadas populares voltadas à defesa dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores, de comunidades atingidas por megaempreendimentos, de população em situação de rua, de mulheres, de negras e negros, pretendem responder semanalmente na coluna ‘Direito e (in) Justiça’.

Por: Larissa Vieira e Juliana Benício, colunistas do Esquerda Online

Não é novidade depararmo-nos com decisões em que o Judiciário assume a caneta do legislador e cria obrigações sem qualquer amparo de lei. Neste ano de 2016, por exemplo, a partir da decisão no HC 126.292, o Supremo jogou uma pá de cal sobre o princípio constitucional da presunção de inocência, sendo certo que aquela ou aquele que tiver uma condenação em segunda instância, ainda pendente de recurso, pode ser encarcerado. Até então, enquanto o processo não transitasse em julgado, ou seja, enquanto não acabassem as possibilidades de recurso, ao réu era garantida a presunção de inocência, em estrita consonância com um Estado que se pretende ‘Democrático de Direito’. O Judiciário está a serviço das leis, ou são as leis que estão a serviço do Judiciário?

O mundo sindical muito tem discutido a reforma trabalhista, uma caixa de pandora que abarca a possibilidade de que os preceitos legais possam ser escanteados por pactos firmados em sede de negociação coletiva. A despeito de toda a discussão que vem sendo realizada na seara legislativa, em duas decisões recentes, uma das quais proferidas neste mês de setembro (RE 895.759), o Supremo Tribunal Federal resolveu privilegiar o negociado sobre o legislado, apagando o entendimento até então vigente de que o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho apenas guardaria pertinência nas hipóteses em que o conteúdo das normas pactuadas não se revelasse contrário a preceitos legais.

De qual Judiciário estamos falando?
O Poder Judiciário que em tempos de Ação Penal 470 (Mensalão) e de Operação Lava Jato passou a ser louvado como detentor e executor da “oportunidade histórica de derrotar a corrupção1”, é o mesmo que concedeu ao conjunto da magistratura (portanto, autoconcedeu-se) o auxílio-moradia, benefício que só no primeiro semestre deste ano de 2016 arrancou dos cofres públicos mais de R$ 300 milhões.

Nesse mês de setembro de 2016, comemoram-se dois anos das medidas liminares que concederam a verba no valor de R$ 4.377,73, paga regiamente todo mês, a magistradas e magistrados brasileiros, com o objetivo de custear despesas de moradia para seus beneficiários.

Na prática, entretanto, o valor é creditado nas contas das favorecidas e favorecidos independentemente de atendimento a critérios2, o que lhe retira a natureza indenizatória, sendo beneficiárias e beneficiários, inclusive, aquelas e aqueles que possuem imóvel próprio na cidade em que estão lotados.

Enquanto as magistradas e os magistrados brasileiros estão recebendo o auxílio-moradia irrestritamente, quando direitos sociais básicos estão seguramente garantidos, visto que o subsídio inicial de um juiz federal é de R$ 27.500,173, há em nosso país um déficit habitacional superior a seis milhões de moradias, segundo dados da Fundação João Pinheiro do ano de 2013.4 O direito à moradia, previsto no art. 6o do texto constitucional, tão essencial à sobrevivência humana, não é privilegiado pelo Poder Judiciário em suas decisões, optando por beneficiar a propriedade privada, que, em vários dos casos judicializados, não cumpre função social.

Há decisões de magistradas e magistrados, que chegam ao absurdo de dizer não ser papel do Poder Judiciário fazer justiça social, menos ainda sentenciar sobre temas de política pública. Esse posicionamento desconsidera as previsões constitucionais e legais que garantem que a propriedade privada tem de cumprir função social e que o direito à moradia deve ser efetivado ao povo brasileiro. Pacificar os conflitos sociais, resguardar a constituição e garantir o cumprimento das leis não pode. E conceder privilégios sem amparo no ordenamento?

O que diz a lei brasileira sobre auxílio-moradia?
O pagamento do auxílio-moradia à magistratura está previsto no artigo 65, II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN – de 1978. Segundo o dispositivo, o auxílio deve ser pago nas localidades em que não haja residência oficial para as juízas e juízes, pagamento esse que depende de regulamentação por lei específica, o que emerge de um princípio largamente conhecido por aquelas e aqueles que lidam diariamente com o Direito, o princípio da reserva legal.

Mesmo a matéria não tendo sido regulamentada pela lei, como manda a LOMAN, o Supremo, em decisão cautelar de setembro de 2014, proferida na ação originária 1.7735, determinou o pagamento do benefício a todos as juízas e juízes federais que atuem em localidade em que não haja imóvel funcional disponível.

Sequencialmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a matéria, desconsiderando a ausência de lei específica sobre o tema. O pagamento segue mesmo após a vigência da Lei 13.242, de 30 de dezembro de 2015, que no art. 17, § 9º, cria um regramento rígido para o pagamento do auxílio-moradia “até que lei específica disponha sobre valores e critérios de concessão”, impondo o atendimento cumulativo às seguintes condições:

  1. inexistência de imóvel funcional disponível para uso pelo agente público;
  2. não ocupação de imóvel funcional ou recebimento de auxílio-moradia por cônjuge ou companheiro, ou qualquer outra pessoa que resida com o agente público;
  3. que o agente público ou seu cônjuge ou companheiro não seja ou tenha sido proprietário, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel no Município aonde for exercer o cargo, incluída a hipótese de lote edificado sem averbação de construção, nos doze meses que antecederem a sua mudança de lotação;
  4. exercício de atribuições pelo agente público em localidade diversa de sua lotação original;
  5. natureza temporária.

A lei acima mencionada finaliza as condições, determinando que a “indenização destinar-se-á exclusivamente ao ressarcimento de despesas comprovadamente realizadas com aluguel de moradia ou com meio de hospedagem administrado por empresa hoteleira”. Perceba-se, portanto, que o auxílio-moradia serviria para indenizar uma despesa comprovada com aluguel de moradia ou de quarto de hotel, em até R$ 4.377,73.

Venha a nós o vosso Reino
A cúpula do Poder Judiciário concedeu aos pares, a despeito da lei, uma parcela remuneratória, travestindo-a de indenizatória. A concessão do auxílio-moradia e, por outro lado, o entendimento majoritário do Poder Judiciário, que privilegia a propriedade privada que não cumpre sua função social, em detrimento do direito à moradia para os que de fato necessitam, é apenas uma demonstração de que Judiciário estamos falando: classista e corporativista. É esse o Poder Judiciário “técnico e imparcial” em cujas mãos temos confiado o rumo da política e das nossas vidas.

Não nos deixemos cair em tentação: busquemos saídas emancipatórias ao largo dessas instituições criadas para assegurar privilégios a pequenos grupos e manter a segmentação social.

1 NETTO, Vladimir. Lava Jato – O Juiz Sérgio Moro e os Bastidores da Operação que abalou o Brasil. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2016.

2 O único critério é que a beneficiária ou beneficiário não podem ocupar imóvel funcional.

3 Ver Resolução STF nº 544, de 13 de janeiro de 2015.

4 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Disponível aqui, acesso em 20 de setembro de 2016, às 11h10.

5 Subsequentemente, o ministro proferiu decisões semelhantes em duas outras ações originárias (nº 2.511 e 1.946), estendendo a decisão a todos os magistrados trabalhistas e aos magistrados de estados em que o benefício não era pago.

Foto: wikipedia