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TEORIA

O marxismo cabeça-de-vento de Slavoj Žižek

Eleutério F. S. Prado

Introdução

A qualidade do bolo pode ser descoberta experimentando apenas um pequeno pedaço? Pelo menos para este leitor, não se afigura possível mastigar, engolir e digerir as mil páginas do livro mais dileto do próprio Slavoj Žižek – o seu escopo ultrapassa em muito o arco de competência do interessado – e, por isso, ele se contenta em experimentar um pequeno – mas muito pequeno mesmo – bocado. Mesmo sendo o teste bem insuficiente, deixa-se aqui aos eventuais leitores deste comentarista de estômago fraco a possibilidade de apreciar ou não o seu resultado. Ele não ficará aborrecido se alguém provar que ele está errado, mas está, por enquanto, convicto que está certo.

Ora, a obra como um todo, que se pretende um avanço, ou seja, “mais do que tudo” o que dantes fora publicado sobre o tema da critica do capitalismo, tem no próprio título a expressão “menos do que nada”. Ela busca lançar uma rede de noções críticas sobre o presente histórico a partir de uma releitura filosófica inovadora de Hegel. Eis porque, em inglês, língua em que foi escrito originalmente, recebeu um nome pomposo e algo enigmático: Less than nothing – Hegel and the shadow of dialectical materialism.

O trecho selecionado – de apenas duas páginas – encontra-se entre o quarto e o quinto capítulo, num interlúdio que o autor intitulou Marx como leitor de Hegel, Hegel como leitor de Marx. Para os devidos esclarecimentos, veja-se que o primeiro Hegel aí referido é mesmo, obviamente, o filósofo alemão do final do século XX e do começo do século XIX, mas o segundo Hegel vem a ser, de um modo apenas um pouco menos óbvio, o próprio Slavoj Žižek. Como ele mesmo diz em certo momento: não se trata de perguntar se o velho pensador ainda teria alguma coisa a dizer sobre o mundo contemporâneo, mas de perguntar como este presente pode ser lido a partir dele.

O trecho

Aqui, na análise do universo do Capital, não se deve apenas conduzir Hegel em direção a Marx, mas o próprio Marx deve ser radicalizado: é somente agora, quando se chega ao capitalismo global em sua forma ‘pós-industrial’, que o capitalismo realmente existente, para falar em termos hegelianos, vem alcançar o nível de seu conceito. Talvez, deva-se seguir uma vez mais o velho lema anti-evolucionista de Marx (incidentalmente tomado textualmente de Hegel) que a anatomia do homem provê a chave para a anatomia do macaco – isto é, que para descrever a estrutura conceitual de uma formação social, deve-se partir de sua forma mais desenvolvida.

Marx detectou o antagonismo elementar do capitalismo na oposição entre o valor de uso e o valor de troca: no capitalismo, o potencial dessa oposição vem a ser plenamente realizado, o domínio do valor de troca adquire autonomia plena quando é transformado no espectro do capital especulativo e auto propelente que usa temporariamente a capacidade produtiva e as necessidades das pessoas reais somente como encarnações disponíveis. Marx derivou a sua noção de crise econômica dessa própria lacuna: uma crise ocorre quando a realidade alcança a ilusória miragem autogeradora do dinheiro que põe mais dinheiro – eis que essa loucura especulativa não pode prosseguir indefinidamente, ela tem de explodir em crises cada vez mais sérias. A raiz última das crises é para Marx a lacuna entre o valor de uso e o valor de troca: a lógica da troca de valores segue o seu caminho, sua própria dança louca, independentemente das necessidades reais dos indivíduos. Parece que essa análise vem a ser altamente relevante hoje, quando a tensão entre o universo virtual e o real está quase alcançando proporções insuportáveis: de um lado, têm-se as loucas especulações solipsistas nos mercados futuros, nas fusões, etc. seguindo a própria lógica que lhe é inerente; de outro lado, a realidade está aparecendo sob a capa das catástrofes ecológicas, da pobreza, do colapso da vida social no terceiro mundo, e da difusão de novas doenças.

Esta é a razão pela qual os capitalistas cibernéticos aparecem hoje como paradigmas de capitalistas – pela qual Bill Gates pode sonhar com um ciberespaço que provenha o arcabouço para o que ele chama de “capitalismo sem fricções”. O que se tem aqui é um curto-circuito ideológico entre duas versões da lacuna entre a realidade e a virtualidade: a lacuna entre a produção real e o virtual, ou seja, o domínio espectral do Capital, e a lacuna entre a realidade experimentável e a realidade virtual do ciberespaço. O horror real do lema “capitalismo sem fricções” é que, embora as “fricções” continuem a existir, elas se tornam invisíveis, forçadas num submundo fora de universo “pós-moderno” e “pós-industrial”; esta é a razão pela qual o universo “sem fricções” da comunicação digital, dos aparelhos tecnológicos, etc. está sendo constantemente perseguido pela noção da catástrofe global à espreita justamente na esquina, ameaçando explodir a qualquer momento.

Afigura-se como se a lacuna entre a minha fascinante pessoa ciberespacial e a “minha” própria carne miserável, que sou “eu” fora da tela, traduza a minha experiência imediata da lacuna entre o Real da especulação do capital e a realidade monótona das massas empobrecidas. Porém, esse apelo a uma “realidade” que, cedo ou tarde, atinge o jogo virtual, vem a ser a única maneira de criticar o capitalismo? E se o problema do capitalismo não é aquele da dança solipsista, mas precisamente o seu oposto: que continue a negar a sua lacuna com a “realidade”, pois não se apresenta com se estivesse servindo ainda aos interesses reais das pessoas?

O paradoxo da virtualização do capitalismo é o mesmo do elétron na física das partículas. A massa de cada partícula elementar é composta de sua massa em repouso mais um excedente que é provido pela aceleração de seu movimento; porém, como a massa do elétron em repouso é nula, a sua massa consiste somente no excedente gerado pela aceleração; trata-se, pois, de um nada que adquire enganosa substância somente por girar em si, gerando assim, magicamente, um excedente de si mesmo. O capitalismo virtual contemporâneo não funciona de uma maneira semelhante – o “valor líquido” [do capital] é zero, mas ele opera justamente com um excedente dessa espécie, emprestando-o do futuro?

Isto obriga a reformular completamente o tópico marxista da “reificação” e do “fetichismo da mercadoria”, à medida que este último dependa da noção de fetiche como um objeto sólido cuja presença estável ofusca a sua mediação social. Paradoxalmente, o fetichismo alcança o seu apogeu quando o próprio fetiche é “desmaterializado” e transformado numa entidade virtual e “imaterial”; o fetichismo do dinheiro culminará com a passagem à sua forma eletrônica, quando os últimos traços de sua materialidade desaparecerão – o dinheiro eletrônico é a terceira forma depois do dinheiro “real”, que incorpora o seu valor (no ouro ou na prata), e depois do dinheiro-papel, o qual, embora sendo “mero signo” sem valor intrínseco, ainda se apega a uma existência material. É somente nesse estágio, quando o dinheiro se torna um ponto de referência puramente virtual, que ele assume finalmente a forma de uma presença espectral indestrutível: devo a você $ 1000 e, não importa quantos certificados [de dívidas] materiais sejam queimados, eu ainda devo a você os mesmos $ 1000, pois o débito está inscrito em algum lugar no espaço digital virtual.

(Žižek, 2012, p. 245-246).

Do fetichismo

Para examinar com cuidado e rigor, as afirmações de Slavoj Žižek nesse pequeno trecho do seu livro enorme, é preciso retornar à noção de fetiche tal como ela aparece em O Capital. Na seção quarta do primeiro capítulo de sua obra econômica mais importante, para apresentar essa categoria, Marx não fala em relação social mediada por relação entre coisas, tal como outros falarão depois para tentar dizer de um modo mais “compreensível” aquilo que ele disse. Ele também não fala em relação social entre pessoas, mediada por imagens, tal como se expressará Debord para denunciar a sociedade do espetáculo. Não, ele fala precisamente em “relação social de coisas”.

 Segundo Marx, portanto, não são as relações sociais que se fazem por meio das coisas, mas são as relações das coisas no modo de produção capitalista é que fazem as relações sociais, mesmo se estas, em última análise, lhe são constitutivas. Nesse sentido, a interpretação de Žižek do fetichismo da mercadoria – segundo a qual este existe porque o objeto sólido constitutivo da mercadoria ofusca a mediação social – não parece estar correta. Pois, não é que a relação social seja pouco ou não visível, mas sim que ela está verdadeiramente oculta pela aparência natural da mercadoria; enquanto tal, pois, apenas pode ser apreendida por meio da crítica da aparência, ou seja, da análise de sua forma necessária de aparecimento, como relação de coisas. O fetiche implica, pois, de modo indelével, uma naturalização da relação social.

Voltar ao esclarecimento de Ruy Fausto sobre a questão do fetichismo se faz aqui necessário. Na verdade, para esse autor, no exame da troca de mercadorias, está-se na presença de duas ilusões reais: o fetichismo e o convencionalismo. A troca envolve sempre uma mercadoria comum cujo valor está aí na forma relativa e uma mercadoria determinada cujo valor aí está na forma equivalente. E cada uma dessas formas produz uma ilusão que lhe é própria: a forma relativa gera a ilusão convencionalista e a forma equivalente gera a ilusão fetichista. Essas duas ilusões, ademais, não são independentes entre si, mas, ao contrário, devem ser tomadas como simétricas e opostas.

A dialética se apresenta sempre como a crítica de duas ilusões extremas e unilaterais. (…) Das duas formas, a relativa e a equivalente, é a segunda que induz a ilusão fetichista. Supõe-se que a matéria que serve de suporte à forma é naturalmente a forma. Mas é também ilusório – aí está a ilusão contrária – supor que esta matéria é qualquer. Esta última é na realidade a matéria adequada à forma, sem ser entretanto a própria forma. (Fausto, 1997, p. 76).

O fetichismo consiste, pois, em pensar que o ouro é dinheiro. Ao fazê-lo, confunde-se a forma dinheiro com a mercadoria ouro que, em sua materialidade, serve de suporte a esta forma. Atribui-se ao ouro como tal uma propriedade social; assume-se, em consequência, que o valor aderido ao ouro é propriedade intrínseca do ouro. O fetichismo, pois, consiste na naturalização de uma das formas da relação social posta na troca de mercadoria. Para Marx, como se sabe, o dinheiro é ouro. E esse suporte não é arbitrário, mas um matéria determinada que foi devidamente escolhida pelo processo social para figurar como dinheiro.

Já a ilusão simétrica consiste em pensar a outra forma da mesma relação social de valor – a forma relativa – como mera convenção. Para tanto, julga-se que o dinheiro é indiferente à matéria que lhe serve de suporte. Ao supor que a matéria do dinheiro pode ser tanto o ouro como o papel impresso ou mesmo o cartão de plástico cai-se na ilusão convencionalista. A forma relativa, pois, manifesta de certo modo a relação social implícita na troca, mas ela o faz permitindo o esquecimento de que a troca é governada pelo valor. Assim, abre a possibilidade de que se possa apresentar o preço fixado na relação de troca como algo que surge de uma situação estabelecida pelos próprios homens com o fito de transacionar mercadorias. É sobre essa base, aliás, que se desenvolve grande parte da economia vulgar de extração liberal ou neoliberal.

Nesse sentido, frente a essa interpretação, não parece estar correta a afirmação de Žižek segundo a qual “o fetichismo alcança o seu apogeu quando o próprio fetiche é ‘desmaterializado’”, mesmo se o termo desmaterializado aparece entre aspas, indicando assim a impossibilidade de que o dinheiro venha a ser uma forma pura. O fetiche da mercadoria exige que o material do dinheiro seja algo maleável e ofuscante como o ouro. Aliás, isto foi dito pelo próprio Marx quando, em O Capital, criticou Fullarton por admitir o contrário: “assim, como a mercadoria monetária pode ser substituída na circulação por meros signos de valor, é ela supérflua como medida de valores e padrão de preços!” (Marx, 1983a, p. 109, nota de rodapé 84). A crítica aqui – deve-se notar – timbra no tom do espanto! O fetiche pressupõe que o dinheiro seja o ouro. A ideia de que o fetiche da mercadoria, com o desenvolvimento e a maturidade do capitalismo, se transforma em algo “virtual e ‘imaterial’” parece insustentável.

Mas a tese de que o dinheiro, ele próprio, figura agora no capitalismo contemporâneo como um espectro não teria um fundo de verdade?

Mediante o emprego dessas duas últimas expressões – virtual e imaterial –, Žižek sugere que o dinheiro plenamente desenvolvido é aquele que se transformou num mero registro computacional. Nesse estágio – diz ele – o dinheiro se transforma num “ponto de referência puramente virtual”. Há aqui algo que requer esclarecimento. De fato, uma quantidade de dinheiro registrada na memória de um computador é dinheiro virtual, mas isto não representa qualquer novidade conceitual. Pois, uma quantidade de dinheiro registrada à mão num livro caixa qualquer também é dinheiro virtual. Ocorre, por outro lado, que é impossível fazer qualquer transação real na economia mercantil em geral – e não apenas no capitalismo – compensando a aquisição de uma mercadoria com dinheiro virtual. É preciso comparecer à troca portando algo material que represente valor, seja este algo dinheiro-ouro, dinheiro-papel, cheque, dinheiro-cartão, dinheiro-celular, etc.

Marx explicou em O Capital que o dinheiro na função de meio de circulação pode ser substituído por signos; o desenvolvimento do capitalismo parece indicar que o dinheiro pode ser substituído na efetivação dos negócios em geral, de modo mais amplo, por dinheiro fictício (Prado, 2012). Nesse sentido, o fetiche do sistema burguês de produção, a manifestação do valor como tal por excelência, continua sendo a mercadoria ouro, mas essa forma social privilegiada se encontra agora abscôndita. Pois, o dinheiro-ouro se tornou inacessível na prática para a maioria dos agentes econômicos que nele fervilham em busca da mera sobrevivência ou da almejada riqueza para poucos. Em seu lugar, na superfície cotidiana do sistema, circulam apenas formas ordinárias de dinheiro que são substitutos de fetiches[2] e que, por isso, suscitam a ilusão convencionalista. Pois, o dinheiro-papel, por exemplo, é aceito não como dinheiro verdadeiro, mas apenas como simbolização do dinheiro. Por isso mesmo, essa forma de dinheiro apenas podem conter a capacidade mediadora da equivalência geral na condição de forma substituta do dinheiro-ouro.

Como o dinheiro verdadeiro foi sequestrado pelo poder do Estado, em especial, pelo poder imperial do Estado norte-americano, ele figura na representação que corre no mercado como algo inalcançável – não como espectro. Ora, a concepção de capital financeiro de Žižek é dependente da ilusão convencionalista justamente porque ele apresenta o dinheiro como algo imaterial e virtual, ou seja, como um fantasma.

No capitalismo contemporâneo, o dinheiro-ouro e o dinheiro-papel que funciona como signo do ouro foi substituído em quase todas as operações mercantis por dinheiro fictício, notoriamente artificial. A convertibilidade do dinheiro-papel em ouro foi suspensa de forma generalizada, mesmo como mera possibilidade. Eis que a burguesia descobriu diante da estagnação e das crises, as quais irromperam no passado ameaçando a continuidade do sistema, que o acesso irrestrito à “relíquia bárbara” era um fator de travamento possível do próprio sistema em certas circunstâncias. Pois, os capitalistas mais poderosos podiam, diante das dificuldades e das incertezas surgidas nas conjunturas críticas criadas pelo próprio movimento de acumulação do capital, agarrarem-se ao penhor social representado pelo dinheiro-ouro. A possibilidade de entesourar, principalmente por meio da retenção de dinheiro-papel convertível em ouro, tinha de ser restringida ao máximo para que o capitalismo pudesse sobreviver às suas crises e depressões. Ademais, nesse mesmo sentido, a faculdade de emitir dinheiro-papel inconversível aumenta de modo expressivo a capacidade do Estado de manipular o funcionamento do sistema econômico.

Da virtualização

O que pensar, então, da analogia inesperada de Žižek que relaciona a realidade tal como esta figura (supostamente) na física das partículas com a realidade social posta pelo capitalismo contemporâneo? Pode-se afirmar que “o paradoxo da virtualização do capitalismo é o mesmo do elétron na física das partículas”? Primeiro, é preciso afirmar peremptoriamente que este comentarista não tem qualquer competência para discutir microfísica. Mas ele acha que pode debater o uso do termo virtualização para caracterizar o capitalismo no seu estágio atual, convindo desde logo que esteja mal posto. O capitalismo como um todo, com as suas esferas industrial e financeira imbricadas entre si, persiste como complexo social que se desenvolve na atualidade – de modo algum como simulação ou realidade meramente imaginária. A elevação da esfera financeira ao reino do virtual, depois de separá-la da esfera da produção industrial – e da realidade catastrófica sobre a qual se levanta – não se afigura como correta.

Entretanto, essa tese é sustentada por Žižek. Ele não afirma que o fantástico mundo dos mercados de bens futuros, das transações especulativas globais etc. aponta para a emergência de um “capitalismo virtual”? Não diz que se configurou recentemente nas altas esferas da circulação do capital um reino das “abstrações reais” que seria mais puro do que aquele existente na época de Marx? Este reino da circulação financeira, segundo ele, seria uma esfera Real (conceito tirado de Lacan), ou seja, um mundo comandado pela “lógica abstrata e espectral do Capital”, que estaria em contraposição com a realidade social propriamente dita, das pessoas em interação e dos processos produtivos, a qual ele também comandaria de cima para baixo. A tese de que a sociedade civil tem de acompanhar a dança “solipsista” e “enlouquecida” do capital financeiro, entretanto, não parece ser consistente com as concepções de Marx.

Uma ponta de dúvida, porém, parece aflorar nessa questão quando se tem em mente só o capital financeiro. Ora, no léxico de Marx, consta o termo capital fictício que aponta de certo modo para uma realidade imaginária. Entretanto, como a ficção mencionada por Marx é algo que atua e que tem efeito atual, não parece possível identificar as duas noções em disputa – virtual e fictício. O capital fictício – é preciso enfatizar – é ficção real. Ele é representado por títulos desprovidos de valor intrínseco, mas que conservam o modo de ser do capital monetário e que, por isso, têm capacidade efetiva de atuar no meio econômico modificando os comportamentos. Ele pode se transformar em dinheiro a qualquer momento, pode retornar ao seu possuidor no futuro – aumentado ou mesmo diminuído. De qualquer modo, ele carrega consigo a exigência de ser remunerado mediante um fluxo de dividendos ou de juros. Como se trata, ademais, de uma forma de existência do capital inerente ao capitalismo de todos os tempos, não pode, portanto, caracterizar o capitalismo contemporâneo em particular. A ideia da virtualização do capitalismo parece ser um equívoco.

E este equívoco decorre de uma aparência: a autonomização do capital financeiro em relação ao capital industrial. Como a circulação da “papelada”, que existe como registro virtual na memória de um computador ou como papel de fato, parece estar destacada da circulação produtiva do capital e, em isolamento, parece se desenvolver por si mesma, vem à cabeça de certos analistas precipitados a ideia de que o movimento dos títulos, das ações, etc. pode ser pensado como algo Real (o reino autônomo das abstrações reais na linguagem de Žižek). É nesse sentido que Žižek vem afirmar que “a característica chave do capitalismo contemporâneo não é apenas a hegemonia, mas também a (relativa) autonomia do capital financeiro” (Žižek, 2012, p. 247).

Com Žižek, a compreensão do capitalismo toma uma forma hegeliana; segundo ele, como já foi citado, o “capitalismo global em sua forma ‘pós-industrial (…) vem alcançar o nível de seu conceito”, ou seja, vem se apresentar como uma verdadeira substância sujeito. Haveria aqui uma tentativa de espiritualizar o capital? É verdade que ele não chega a afirmar que o capital em geral é um espírito que se autoproduz; “para Marx” –aponta – “o capital não é ‘realmente’ uma substância sujeito que se reproduz a si mesma pondo as suas próprias pressuposições e assim por diante; o que essa fantasia hegeliana (…) oblitera é a exploração dos trabalhadores, isto é, que o circulo de auto-reprodução do capital tira a sua energia de uma fonte externa (ou melhor, ex-posta) de valor, parasitando os trabalhadores” (Žižek, 2012, p. 251). Porém, ao classificar o capitalismo como pós-industrial ele comete um ato falho; pois, o capitalismo realmente existente não superou de modo algum o seu fundamento industrial, ou seja, o circuito D – M … P… M’ – D’ que caracteriza o movimento de acumulação não só na indústria propriamente dita, mas também na mineração, na agricultura e mesmo na produção de serviços.

Ora, o problema não é que a autonomia proclamada seja “relativa”, mas sim que ela é ilusória: o capital financeiro não é, em última análise, nem hegemônico nem autônomo. E esta afirmação não é nova tradição marxista: conforme Mattick, por exemplo, “a distinção entre ‘indústria’ e ‘finança’, entre capital ‘produtivo’ e ‘parasitário’ é tão velha quanto o próprio capitalismo e sempre originou a falsa luta contra a ‘escravização aos juros’ e contra os especuladores irresponsáveis” (Mattick, 1969, p. 23). No caso de Žižek, a separação mencionada se presta à diabolização do capital financeiro como se este fosse uma “maldade” completamente distinta do capital industrial – e não meramente uma forma (uma coleção de formas) do capital.

A falha da concepção de Žižek se mostra muito mais nitidamente quando se examina a sua compreensão da crise segundo Marx. E já foi aqui apresentada: “uma crise ocorre quando a realidade alcança a ilusória miragem autogeradora do dinheiro que põe mais dinheiro”. Essa afirmação estaria de acordo com as teses de Marx sobre a crise? Não há, como se sabe, uma teoria acabada sobre as crises na obra econômica desse autor. Mas não existe dúvida, porém, de que a origem das crises é encontrada sempre no movimento do capital industrial. A formulação mais rica aí encontrada é aquela que se aparece na discussão da lei da queda tendencial da taxa de lucro:

As crises são sempre apenas soluções momentâneas violentas das contradições existentes, irrupções violentas que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado.

A contradição, expressa de forma bem genérica, consiste em que o modo de produção capitalista implica uma tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas, com abstração do valor e da mais-valia nele incluídos, também com a abstração das relações sociais, dentro das quais transcorre a produção capitalista; enquanto, por um lado, ela tem por meta a manutenção do valor-capital existente e sua valorização no grau mais elevado (ou seja, o crescimento sempre acelerado desse valor). Seu caráter específico está orientado para o valor-capital existente, como meio para a máxima valorização possível desse valor. [Por outro], o método pelos quais ela alcança isso implicam: diminuição da taxa de lucro, desvalorização do capital existente e desenvolvimento das forças produtivas do trabalho à custa das forças produtivas já produzidas. (Marx, 1983b, p. 188).

O capital, em seu desenvolvimento infinito encontra barreiras, mas estas não são postas em geral por outrem; ao contrário, “a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital” (Marx, 1983b, p. 189). Ora, assim como o capital põe as próprias barreiras, ele também procura superá-las, sempre que possível, com os seus próprios meios de desenvolvimento. Em certas circunstâncias históricas, quando sobrevém a queda da taxa de lucro na esfera do capital industrial, ele pode passar à autopropulsão fictícia valendo-se de suas próprias formas financeiras – e, assim, abusando delas. A exacerbação das finanças, por um lado, não é uma anomalia ou uma excrecência no capitalismo. Estas formas, por outro, não são anátemas do bom capitalismo, mas mediações normalmente necessárias para o seu próprio evolver. Porém, quando as exacerbações ocorrem em certos momentos históricos, surgem os discursos fáceis que, ao invés de criticarem o capital como totalidade, passam a recriminar descabeladamente uma de suas manifestações mais anárquicas: a acumulação fictícia de capital na esfera financeira.

Mas o que ele quer significar tão especialmente por meio da metáfora que associa o capital com o elétron? Assim como o elétron ganharia massa apenas porque está em movimento, o capital financeiro ganharia valor apenas porque circula e porque, ao circular, saca valor do futuro? Ora, o capital, seja ele industrial ou financeiro, só é capital porque contempla a possibilidade de crescer e multiplicar, acumular mais e mais, tenha ou não valor intrínseco. Tal como o homem comum, ele faz planos para o amanhã, mas difere dele porque planeja apenas e tão somente o próprio evolver quantitativo. E, assim, deixa frequentemente o homem comum – em especial os trabalhadores – em apuros. Como é sabido, o capital só é capital em seu próprio movimento de circulação e de projeção para o futuro, pois em repouso é não-capital, ou seja, tesouro, máquina parada, papel sem valor, etc.

Esse comentarista confessa que não compreendeu bem a analogia proposta por Žižek. Ela, entretanto, parece estar relacionada ao título do próprio livro. Por meio da designação “menos do que nada” – indicativa de uma realidade negativa – Slavoj Žižek parece apontar para o capital financeiro e o mundo que ele gera. Sugere, assim, que se está na presença de uma realidade fantasmática, monstruosa, mas que atua, funciona, governa e domina a pobre realidade humana. Ora, assim se condena apenas o capital financeiro ainda no interior do capitalismo! Se essa interpretação for correta, é preciso dizer, então, que não é o Real que está no comando, mas sim, verdadeiramente, a relação de capital propriamente dita.

Referências

Fausto, Ruy – Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Brasiliense, 1997.

Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Abril, 1983a (tomo I, volume 1); 1983b (tomo I, volume 3).

Mattick, Paul – Marx & Keynes – The limits of the mixed economy. Boston, Mass: Extending Horizon Books, 1969.

Prado, Eleutério F. S. – Da controvérsia brasileira sobre o dinheiro mundial inconversível, 2012. In: http://eleuterioprado.wordpress.com/.

Žižek, Slavoj – Less than nothing – Hegel and the shadow of dialectical materialism. Londres/Nova York: Verso, 2012.

[1] Este artigo foi publicado originalmente na página de Eleutério Prado – https://eleuterioprado.wordpress.com/

[2] O enigma aí presente tem uma estrutura mais geral. A santidade, por exemplo, que é uma forma, requer um corpo santo como suporte para existir socialmente; isto suscita a ilusão fetichista: o corpo figura ele próprio como santidade. As figuras de santo criadas artificialmente – por meio do barro, por exemplo – são substitutos de fetiches, os quais suscitam, por isso, eventualmente, a ilusão convencionalista:  o veículo da santidade é uma convenção; eis que a própria santidade, nesse caso, se torna transcendente.