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TEORIA

Sobre História, PT, Carta e Travessia

Fábio José de Queiroz

 

É chegada a hora de tirar a camisa suja, é chegada a hora de vestir a roupa limpa (LÊNIN).

 

Esta carta pode ter sido escrita para ser lida em 1992, quando para se preservar fiel a ordem e ao calendário eleitoral, o PT começa a expulsar as correntes hostis a sua integração ao regime político, como a Convergência Socialista, embora muito poucos tenham se dado conta disso.

Para respeitar o senso de historicidade, os primeiros sinais mais visíveis dessa integração são pressentidos com a conquista de prefeituras estratégicas, em 1988, e com o 1• congresso do partido, que ocorre em 1991, no qual o PT se alinha com as teses da socialdemocracia. Sob muitos aspectos, o Partido dos Trabalhadores se adequa aos propósitos de ampliação da sua base parlamentar, e, desse ângulo, a aparente fruição desinteressada cede o seu posto ao interesse vil. A adesão posterior da direção petista ao Fora Collor leva os mais crédulos a imaginar que nem tudo está perdido, e, isso posto, o PT tende a grifar a sua sigla, no imaginário dos trabalhadores e dos pobres do país, como uma legenda quase imperecível. A sua ligação com as lutas sociais dos anos 1980 parece situá-lo na iminência de uma condição de semi-eternidade no coração das massas.

Esta carta, no entanto, pode ter sido redigida para ser lida em 1994, ou 1998, quando o PT faz sérias concessões às classes dominantes com o intuito de conduzir Lula à presidência, mas as derrotas deixam um odor no ar que, contraditoriamente, reforçam as esperanças e promessas de uma primavera que insiste em não vir. Até que, depois da terceira derrota consecutiva, finalmente, Lula da Silva é eleito, junto com José Alencar, peso pesado do empresariado brasileiro. Embora faça concessões à classe trabalhadora e aos pobres, Lula faz também a reforma da previdência, governa para banqueiros e rentistas e assiste o seu partido se dividir. Da sua costela, nasce o PSOL. Nasce a Marina. Estoura o que a mídia cristaliza como o escândalo do mensalão. Mas, para milhões de trabalhadores, marcados na alma pelo trágico período em que o país esteve nas mãos de FHC, o pior é a volta do PSDB. Nessas condições, para o mais cauteloso e envergonhado dos petistas, o lugar de uma carta, de conteúdo crítico ou de ruptura com o Partido dos Trabalhadores, é na gaveta, de preferência sem chave, ou num cofre cuja combinação seja quase indevassável, para que ninguém tome conhecimento do seu conteúdo.

Fazer a leitura de uma carta, com esse espírito rupturista, nos primeiros anos da Dilma, nem imaginar! Ninguém tem tempo para tais luxos. Ela mantém e aprofunda as concessões começadas com Lula da Silva. A euforia levanta a popularidade da presidente a um ponto inimaginável. A ideia de que Dilma não é Lula se pulveriza nas sondagens de opinião pública. É como se ela fosse ele; é como se ele fosse ela. Crise? Que crise? Lula ensina o caminho de como domá-la, e Dilma segue o receituário.

Mas a crise que, na mitologia petista, sempre falta ao encontro, finalmente veio. O remate do primeiro mandato da Dilma e o começo do segundo é de crise completa. Há uma crise nacional. O governo está na corda bamba, mas se submete ao capital financeiro e ataca vigorosamente a classe trabalhadora. Retira-lhe os direitos como quem faz trilha em um final de semana de lazer. Muitos ainda, por mais incrível que pareça, insistem que é necessário salvar o governo e defender o PT. No dia 20 de agosto, quantos milhares deles não foram às ruas?

Diante do exposto, e alguns decênios depois, já não é hora de se conversar? De tirar as lições? De trocar a roupa velha por uma nova? De acertar as contas com a história? De, afinal, abrir a tão temida carta?

Esta carta é não só dirigida a esses que estavam nas ruas no dia 20 de agosto. Ela é direcionada aos milhões que estão calados, desconfiados, mas não se propõem nem a defender o governo nas ruas nem a apeá-lo do seu posto. Parte desses silenciosos – petistas, ex-petistas, quase petistas etc. – com efeito, imagina que Lula pode voltar e tudo será diferente. Essa carta é para dizer que não será diferente. O revés do PT se consuma no ato da venda da sua alma a banqueiros e empreiteiros. Desse modo, o fracasso do PT é que ele, ao convencer milhões de trabalhadores a acreditar que a sua vida iria melhorar quando juntassem as suas forças com a do empresariado, empurra a classe que vive da venda da sua força de trabalho, não somente ao precipício do mundo social, mas vende a essa classe as ilusões – políticas e ideológicas – mais despudoradas. Os governos petistas são a síntese dessa unidade de trabalhadores com empresários. Essa unidade de duas classes antagonistas só pode resultar no reforço das posições da classe economicamente mais poderosa. Quase 15 anos do PT no governo e o empresariado está mais forte. Os ricos estão mais ricos e os mais ricos estão milionários. Em contrapartida, o trabalhador está perdendo o seu emprego, e, endividado, olha sem esperança para os dias, meses e anos que se aproximam. Esse é o verdadeiro sentido do malogro do projeto petista. É contra esse projeto – o qual sacrifica a independência de classe no altar da burguesia – que os trabalhadores devem reclamar uma alternativa de esquerda e socialista, que, evidentemente, não se confunda com a direita e sua política retrógrada, mas que não se curvem aos banqueiros, ao imperialismo e o seu receituário neoliberal.

A questão aqui analisada deve, no entanto, dialogar com a mentalidade do trabalhador, que preso ao jogo de crença e descrença, não cessa de se perguntar: por que o PT alça essa rua das ilusões perdidas? Essa indagação acompanha as noites mal dormidas de muitos que juntaram os seus melhores sonhos ao partido que jura representá-los. Nessa altura, para evitar o risco das simplificações vulgares, é o momento de refletir, ainda que brevemente, sobre a trajetória do partido de Lula e José Dirceu.

O PT é um produto muito particular de uma situação histórica particular: o ascenso de massas que assinala os últimos anos da década de 1970 e a maior parte dos anos 1980. Apesar das reservas indispensáveis, esse partido consegue canalizar os sonhos de mudanças de milhões de trabalhadores, mulheres, jovens e intelectuais, e isso a história não tem por que apagar. A sua transitória vigência, como justaposição de uma série de projetos de mudança de certos setores da sociedade brasileira (que defrontam o velho e almejam construir o novo), perdura até o momento em que o partido começa a se adaptar ao regime político que nasce da derrota da ditadura. Neste caso, o PT adere aos valores da democracia burguesa antes mesmo desses valores se consolidarem na vida política do país. Isso não é por acaso. Ao que tudo indica, embora a propensão seja essa, desde a sua origem, o fato é que a integração não se efetua de um só golpe e se funda, objetivamente, nas diferentes fases de aproximação e entrada do partido na máquina do Estado (parlamento, prefeituras, governos estaduais e, por fim, o governo federal). Uma vez mais, Lênin está correto: fora do poder, tudo é ilusão. Ao chegar ao poder, cada qual se revela em sua mais profunda e gritante anatomia, embora as ilusões das massas trabalhadoras não se resolvam teoricamente, salvo como experiência concreta que, em sua dinâmica, gera variações na consciência prática da classe, que não corresponde a uma linha reta, mas percorre um caminho de idas e voltas, sinuoso, definitivamente curvo, dramaticamente histórico.

Nestas condições, os nexos que atam o partido à consciência média da classe trabalhadora não constituem meros preceitos retóricos. Em consequência, a representação transfigurada dos interesses da classe operária e dos estratos médios assalariados prima como elemento característico meridiano da identidade petista. A esse propósito, no entanto, é importante destacar: quando se observa, como suposto, que não há distinção propriamente entre o partido e os seus representados, eis que se revela o despenhadeiro da profunda separação do PT e da sua política de conciliação de classe com relação aos trabalhadores. Esse corte brutal é o traço mais marcante de uma etapa da vida política brasileira que começa com as manifestações de junho de 2013, se aprofunda com a crise nacional em curso e encontra o seu ponto alto no deslocamento brutal de massas no sentido da oposição indignada e sistemática ao governo petista.

Certamente, não me dirijo aos que trocaram a fruição desinteressada pelo interesse vil de uma função privilegiada na máquina do Estado, pela qual são capazes de defender economizar 90 bilhões de reais, retirados do PIS de 12 milhões de trabalhadores, com o escopo de favorecer meia dúzia de banqueiros. Dirijo este artigo-missiva aos milhões de anônimos da história que sofrem com os pecados da agremiação partidária na qual depositaram toda a sua mais vermelha esperança. Por questões práticas imediatas, sequer me apoio diretamente em Marx para estabelecer esse diálogo (depois lhes falarei de Marx). O fato é que, há praticamente 30 anos, os seus dirigentes lhes ensinam que a conciliação de classes, e não a luta de classes, é o que pode lhes conduzir a tempos melhores, mas uma densa análise teórica da situação concreta, no entanto, mostra que classe trabalhadora vive tempos sombrios. Nos marcos de ferro da realidade, o que se repara é o desenvolvimento da catástrofe social e, junto disso, a necessidade de que os desprovidos de propriedade, privilégios e fortuna deem início a uma nova travessia que os conduzam para a margem oposta desse severo terreno de crise e aflição. A esse respeito, peço que reflitam sobre o que escreve uma pessoa não diretamente ligada ao campo político: Fernando Teixeira de Andrade. Reflitam com ele, a articulação de passado, presente e futuro.

Para Andrade,

Há tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (S/D, S/P)[1]

Esse é um problema que afeta ativistas que, mesmo depois de tanto tempo e de intensas metamorfoses sofridas pelo PT, não conseguem se desvencilhar das roupas usadas e não se sentem capazes de esquecer os caminhos que os levam sempre aos mesmos lugares. Esquecem eles que é o tempo da travessia, de ousar, de ultrapassar a margem para o outro lado do rio. Assim, pelo motivo básico de que não se ergue o horizonte de uma alternativa, que faça com que a classe trabalhadora saia dessa maré, essa tenazmente prossegue como expressão cabal da falsa encruzilhada que, malgrado as mediações, lhe é oferecida tanto pelo PT como pelo PSDB. Como bem o disse Lênin, “Isto passa a ser um problema prático das massas, e não simplesmente uma teoria dos dirigentes”. (1987, p. 47)

 O fato é que o colar está espatifado em centenas de pedaços. Já não é possível recuperá-lo. O pescoço está limpo. Ainda que sem os adornos do colar, é possível vencer. Como bem resumem dois mestres do pensamento socialista, “nos conflitos sangrentos que se avizinham, como em todos os anteriores, serão principalmente os trabalhadores que, por sua coragem, sua determinação e abnegação, terão de conquistar a vitória (MARX; ENGELS, 2010, p. 66). Assim, em meio a essa comoção e as possibilidades que elas nos oferece, falta discutir a fundo a necessidade de uma viagem de retorno ao futuro que nunca veio. “É o tempo da travessia”.

REFERÊNCIAS:

LENIN, V.I. Teses de abril, São Paulo: Editora Acadêmica, 1987.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Mensagem do comitê central à liga dos comunistas, in: Luta de classes na Alemanha, São Paulo: Boitempo, 2010.

ANDRADE, Fernando Teixeira de. Tempo de travessia, in: https://poetrysfeelings.wordpress.com (acesso em 14/09/2015).

[1] Essa breve e instigante reflexão é atribuída erroneamente a outro Pessoa, mais precisamente, ao genial poeta português Fernando Pessoa. Na realidade, é um texto, disponível na internet, elaborado por um professor de literatura, já falecido, e que era muito renomado entre estudantes paulistas de cursinho pré-vestibular. No caso, trata-se de Fernando Teixeira de Andrade (1946-2008).