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Relato 28: “A partir da luta da liberdade para si, a luta pelo cuidado em liberdade como uma possibilidade para todos”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Andreza, assistente social. Em memória de nosso querido amigo Públio

Em 2021, assumi a gestão do CAPS Sede em Contagem, devido a um momento de renovação de governo. Me deparei com um CAPS que era um pequeno manicômio, tanto na questão de infraestrutura física, uma casa muito ruim, sem nenhuma adequação para oferecer um cuidado às pessoas em sofrimento mental, quanto também em relação ao modelo de cuidado que era ofertado, um modelo hospitalocêntrico. Eu conheço o Públio nesse momento.

Na época, meu primeiro contato com ele foi a partir da demanda da família. Os pais idosos já vinham solicitando relatórios para internação, dizendo que não tinham condições de mantê-lo em casa e que os irmãos moravam em outras partes do país. Traziam relatos de muitos conflitos, de abandono de tratamento, de que a rede não era suficiente para cuidar dele, de que não se sentiam seguros no cuidado que era ofertado a ele, ou melhor, que não era ofertado a ele; tanto do ponto de vista psicossocial quanto clínico, já que Públio tinha comorbidades devido a diabetes que, por vezes, descompensava. 

A primeira vez que eu vi o Públio foi em uma reunião no Centro de Convivência. Ele estava sentado na rua e me chamou a atenção que ele estava com um casaco de terno, com uma pasta de executivo, com vários papeis organizados, sentado no meio fio. Nessa reunião no Centro de Convivência, a coordenadora pede se seria possível fazer uma busca ativa do Públio, porque tinha relatos de que ele não estava bem. Eu não conhecia ainda ele, então não sabia que era o homem que estava no meio fio. Conversando sobre o caso, pensando em como acessar essa pessoa que estava em sofrimento, eu fui identificando que parecia o homem que eu tinha visto lá fora e, nesse momento, ele entra no Centro de Convivência e eu falo que eu o tinha visto lá fora. Me informam, então, que era dele que estávamos conversando. Nesse mesmo local, a gente acerta de conversar sobre a possibilidade dele ir ao CAPS Sede para ver como estava o seu tratamento, como ele estava em relação às medicações e conversar sobre como ele se sentia. Um momento para eu me apresentar como nova diretora do serviço. Ao procurá-li, de muito bom grado, ele aceita. 

Minha primeira conversa com Públio foi muito bonita. Desde o início ele trazendo sua vontade de trabalhar. Ele era um excelente vendedor, tinha várias experiências lindas e me deu um cartão. Já se apresenta como vendedor atacadista e mostra sua necessidade de ser inserido no mercado de trabalho. 

Daí a gente começa a oferecer um cuidado. Ele muito educado, chegava sempre muito bem-vestido com sua mala. Entretanto, neste período ocorrem os momentos de crise, de conflito com os pais e se intensificam as solicitações de relatório para internações. Nós dizemos que não seria dessa forma, que não é assim que acontece mais o cuidado no Brasil, e começamos o cuidado dessa família que tinha uma ideia muito fixa de que a solução seria a internação, uma forma de mantê-lo mais tempo sem conflitos dentro de casa. Nós estabelecemos, então, a permanência-dia, não identificamos essa situação de crise apresentada pelos pais. Na verdade, eram situações de conflito de longa data, uma exaustão de ambas as partes. Desse modo, ele começa a frequentar o CAPS em articulação com o Centro de Convivência, e também dá início a uma associaçãode usuários em Contagem, pensando também formatos de cooperativa.

Um dia, o CAPS foi acionado com a determinação de que ele fosse internado com um relatório de um psiquiatra particular. Então chamamos o Públio para fazer uma avaliação e uma conversa para tentar derrubar esse pedido de internação compulsória. Fizemos um relatório, estivemos de forma mais intensiva acionando a rede: cadê o CRAS, cadê a Unidade de Saúde? Chamamos ele e os pais e, então, Públio conta que em um Domingo foi até a casa dele um psiquiatra amigo dos pais, da mesma crença religiosa, que teve uma conversa breve e, nessa conversa breve, fez o relatório pedindo a internação compulsória. 

A equipe do CAPS fez um relatório multiprofissional bem robusto dizendo da arbitrariedade do posicionamento desse psiquiatra, que mal conhecia Públio, que a pedido da família vai à casa dele, sem ter conhecimento ou acompanhar o que ele fazia no CAPS e que, ainda por cima, solicita uma internação compulsória arbitrária. O que estava acontecendo eram conflitos intrafamiliares por causa de várias questões geracionais. 

Nesse relatório multiprofissional, o CAPS solicita uma conversa com a promotora e a grande aposta era de que Públio estivesse presente nesse encontro. Foram feitas muitas conversas para se avaliar a viabilidade desse encontro, mas batemos o pé de que sim, de que era importante que a promotora conhecesse Públio, porque o que se veiculava no relatório e na própria rede, era que ele era uma pessoa perigosa que tinha passado por inúmeras internações no Galba Velloso, que tinha recebido um diagnóstico de psicopatia, diagnóstico que diminuíam ele, que diziam de uma situação de periculosidade que a gente nunca tinha observado com o Públio, pelo contrário, ele sempre foi muito educado. Quando ele ficava com o quadro mais alterado, de fato ele ficava um pouco mais agitado, mas não era nada como se apresentava no relatório. 

Conseguimos derrubar esse pedido de internação e conversar com a promotora, que fica impressionada com a diferença do que estava escrito e o que, de fato, se apresentava para ela. Ele foi acompanhado por mim e pela referência técnica e, de uma forma muito bonita, ela compreende essa situação e cita esse psiquiatra para que respondesse sobre esse relatório, porque ela vê uma arbitrariedade, um abuso de poder médico. E ela topa então essa aposta do cuidado dele em liberdade. Chegamos a ter outras conversas com ela, conseguimos inclusive derrubar uma medida protetiva de muito tempo atrás de que ele não ficasse próximo da mãe, que sempre o acolhia em casa. E no meio disso fomos construindo um cuidado possível para ele.

Durante a Conferência de Saúde Mental de Contagem, a promotora vai até lá e, em público, cita o nome do Públio, contando  que a partir do conhecimento desse usuário ela compreende o universo da luta antimanicomial, da saúde mental e da atenção psicossocial e do cuidado em liberdade.

Então Públio tráz esse marco para a cidade. A partir da luta da liberdade para si, de que ele pudesse ter a revisão do seu diagnóstico, de que ele pudesse ser cuidado em liberdade, com a compreensão do poder judiciário de Contagem sobre o cuidado em liberdade como uma possibilidade para todos. A partir dessa mudança de concepção, a gente consegue alargar a visão do cuidado multidisciplinar, dessa rede que tem que ser construída de forma singular. 

Fizemos uma supervisão clinico-institucional a partir desse caso que foi muito robusto e, lógico, com muitas dificuldades e barreiras, fomos conseguindo mobilizar as redes de cuidado, tanto da saúde, da atenção psicossocial e da proteção social. Fizemos uma costura muito próxima e ele, de fato, tinha o CAPS como uma segunda casa. 

Nós fizemos um Projeto Terapêutico Singular muito único, como levar a janta lá para o CAPS, costurando as demandas que ele trazia para garantir direitos fundamentais. E ele vem e ele traz uma troca sobre o cuidado. Ele era um grande facilitador dentro das assembleias, no centro de convivência e ajudou muito na criação da associação. Ele vai conseguindo, dentro de suas condições, colaborar na construção de uma rede diferenciada, ele passa a olhar, a partir de sua luta por si, a necessidade da defesa do outro. 

Ele nos deixa a denúncia de que nós temos que instituir dentro da RAPS algo que garanta a residencialidade. Muitas vezes esbarrávamos no fato de que o convívio dele com os pais idosos era inviável e havia um desejo dele em morar em outro lugar. Ele ficava falando de mudar para outros países, outros estados. Ele não queria morar em abrigo, inclusive porque abrigo não é moradia. A dificuldade da rede assistencial de ofertar moradia para pessoas em sofrimento mental, mesmo que em caráter transitório, é terrível. Precisamos de mais Unidade de Acolhimento Transitório, mas também de alguma inovação dentro da política de saúde mental, algo que garanta a residencialidade, e ele deixa essa denúncia em vida para nós. Ele nos deixa esse desafio.