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BRASIL

Mobilidade urbana e luta de classes em São Luís, Maranhão

Frederico Lago Burnett, de São Luís (MA)
Divulgação/Prefeitura de São Luís
Economicamente considerada, a condição espacial, o ato de trazer o produto ao mercado, pertence
ao próprio processo de produção. O produto está realmente acabado apenas quando está no mercado.
Karl Marx

Tal como as mercadorias, que necessitam circular para realizar o ciclo produtivo de seu consumo no modo de produção capitalista, o deslocamento das pessoas constitui condição indispensável para a realização de suas atividades como produtores ou consumidores. Esta imprescindibilidade social da mobilidade sob o capitalismo define, para Flavio Villaça (2001), a premissa maior que rege tanto a circulação de mercadorias, quanto a das pessoas: a economia de tempo, único bem que não se recupera, no primeiro caso, para acelerar a realização do consumo, no segundo, para priorizar a dedicação a atividades-fim. Enquanto a circulação de capitais, informações e mercadorias predomina no espaço regional, o deslocamento de pessoas prevalece no espaço urbano o que, para Smith (1988), define o perímetro da cidade, pois expressa a máxima distância a percorrer entre moradia, trabalho e consumo. A conurbação e a metropolização são fenômenos sócio-espaciais que expressam a subversão desta condição de localização urbana das pessoas, pois, forçados pelo valor do solo a se instalar fora do perímetro citadino, trabalhadores e consumidores irão predominar nos deslocamentos regionais, atraindo usos residenciais, comerciais e de serviços, constituindo o espaço periurbano, transição no sentido da expansão urbana.

Consciente dessa dinâmica que atua sobre a cidade, Villaça define como “intra-urbano” o espaço já consolidado da cidade, onde predominam usos do setor terciário e circulação de trabalhadores e consumidores, distinguindo-o do setor primário periurbano em transformação. É no espaço intra-urbano onde acontece a mais dura e cotidiana disputa por localizações e deslocamentos, expressão da luta de classes na cidade, que exige intervenção do Estado em favor do capital. Esse processo resulta na Divisão Econômica e Social do Espaço, determinada pela política de uso do solo e de mobilidade urbana, sempre pressionada por interesses irreconciliáveis de capitalistas e de trabalhadores para ganhos de localização e redução de tempos de deslocamento. Assim, toda cidade expressa estratégias e consequências das lutas de classes, mas, diferentemente das áreas de moradia popular, fora da vista de quem percorre os espaços onde se concentram postos de trabalho e equipamentos públicos, a infraestrutura e os meios de deslocamento expõem a precária situação de mobilidade que consome o tempo dos trabalhadores na reprodução diária de suas vidas.

Em São Luís, Maranhão, esta situação não é diferente e, apesar do constante agravamento das condições do sistema de transporte público local, destaque negativo no país, a omissão de sucessivas gestões públicas em intervir para qualificar o serviço aponta para a hegemonia dos interesses das empresas e do Estado sobre as necessidades da maioria da população. Para além das mazelas do transporte coletivo, que sequer possui faixas exclusivas nas avenidas da cidade, chama atenção o descaso municipal em relação a outros meios de deslocamento dos trabalhadores que, sem interferir nos interesses empresarias do setor, poderiam reduzir tempo e salvar vidas nos deslocamentos cotidianos. É o caso das motocicletas, meio de locomoção popular com crescentes índices de acidentes, cujo quantitativo em São Luís aumentou, entre 2006-2022, 514% contra 230% dos automóveis, conforme o último censo do IBGE. Surpreende, também, o descuido com a mobilidade ativa de ciclistas e pedestres, exercida por 30% dos ludovicenses (SÃO LUÍS, 2016, p. 36-37), mas sem qualquer medida que ofereça segurança e facilidades para seus praticantes. Como chegamos a esta situação?

A “modernização” urbanística de São Luís, no final do século passado, representou a tardia ruptura com o urbanismo tradicional, próprio do capital mercantil concorrencial e caracterizado pela cidade compacta com alta miscigenação sócio-espacial. Mas também coincidiu com a crise do serviço municipal dos bondes elétricos — que atendiam a área central, mas, sem investimentos públicos, não conseguiram acompanhar a expansão da cidade — e o surgimento do automóvel, disseminado pelo país quando milhares de camponeses, expulsos de suas terras pelos programas de desenvolvimento nacional, ocuparam as cidades. Nesse contexto, consideradas “áreas de segurança nacional” e subordinadas ao poder estadual, as capitais estaduais perdem capacidade de gestão do solo, enquanto pequenas empresas de ônibus urbanos, em São Luís desde a década de 1940, ampliam a exploração privada do transporte coletivo sob frouxo controle da municipalidade.

Favorecidos pela gigantesca expansão territorial da cidade na década de 1970 que, graças às terras da União, decuplicou o perímetro do município, os empresários ampliam seus negócios, tornam-se essenciais para a mobilidade urbana e constituem, em 1989, o Sindicato das Empresas de Transportes de São Luís – SET, passando a repartir os trajetos conforme a capacidade de atendimento e o poder político das empresas. Hoje, com o sistema dividido em quatro áreas — servidas por três consórcio, Central, com 280 veículos, Via São Luís, 194 ônibus, Upaon Açu, com 241 veículos, e uma empresa, a Primor, com 221 ônibus —, todo o transporte coletivo da cidade é operado pelo SET, oligopólio “sob gestão” da Secretaria Municipal de Trânsito e Transporte – SMTT. Sempre avaliadas negativamente pelos usuários, ambas foram investigadas por uma CPI da Câmara de Vereadores de São Luís entre 2021/2022 e, apesar da comprovação das irregularidades de empresários e gestores públicos quanto às planilhas de custos e operação do sistema integrado (SÃO LUÍS, 2022), o executivo municipal nunca interviu. Atitude que não surpreende quando se constata o desprezo do poder público local em relação a pesquisas e estudos sobre os problemas da mobilidade, descaso estendido à Lei de Mobilidade, aprovada em 2017 por exigência da União e, até hoje, sem implementação de nenhuma de suas proposições. E o que mostram as pesquisas e os estudos sobre a mobilidade em São Luís?

Somando 1 milhão 382 mil viagens diárias em transporte coletivo, de bicicleta ou a pé, contra 683 mil em automóveis e motos, medidos pela Sistran S.A. (SÃO LUIS, 2016, p. 36-37), como entender a prioridade dada às políticas que ignoram a maioria e favorecem a minoria? A pergunta se esclarece quando identificamos quem utiliza o transporte coletivo em São Luís, conforme amostra feita por pesquisa acadêmica em 2012 (SOUZA, 2013): 89,9% dos usuários percebiam entre 1 e 5 salários mínimos, ou seja, são trabalhadores das faixas D e E. Para o poder municipal, ainda que 78,5% desses usuários se desloquem por motivos de trabalho e estudo, pouco parece importar que 52,3% deles desperdicem de 30 minutos a mais de uma hora em suas viagens. Pois, uma vez comprovada a classe social a que pertencem os usuários de ônibus em São Luís, o desperdício de tempo com o deslocamento pode ser entendido como estratégia da luta de classes, a inviabilizar momentos de lazer com familiares e amigos e mesmo atuação nos bairros com práticas políticas.

Quando o estudo da Sistran alertou para o “massivo investimento em loteamentos residenciais em regiões periféricas” seria um dado “relevante na mobilidade urbana” (SÃO LUÍS, 2016, p. 39), por que nenhuma medida foi tomada para atender toda a população dos novos residenciais do Programa Minha Casas, Minha Vida em localizações periurbanas? Que dizer do descaso quanto às “ofertas de transporte público por grupos de linhas”, que aponta o G1, a serviço da Zona Rural e do Distrito Industrial, com a segunda menor frota e o maior tempo de deslocamento, enquanto o G6, que percorre a região litorânea da cidade, com metade da distância e gasto de tempo 2/3 menor (Ibid, ibid, p. 84)? Será por que aí estão as moradias e os serviços das camadas de alta renda? E que dizer dos assaltos durante as viagens, divulgados pela imprensa local, com mais de 900 casos em oito meses de 2021, dois motoristas esfaqueados em 2023, outro assassinado em 2024? Ou das condições de trabalho dos condutores, agravadas depois que o TRT-MA aprovou a retirada dos cobradores, levando sobrecarga ao que dirigem, cobram, dão troco e operam elevadores para portadores de deficiências? E da idade e conservação da frota, com constantes panes e incêndios de ônibus lotados em pleno serviço? Ou a inexistência e arruinamento dos abrigos, deixando passageiros ao sol e à chuva? Das condições de conservação dos terminais de integração, administrados pelo SET e “fiscalizados” pela SMTT? Todo um conjunto de problemas e precariedades suportado pelos usuários e que fizeram São Luís ostentar, em 2022, a menor pontuação nacional no Índice de Mobilidade da Folha de São Paulo.

Porém, se medidas concretas em favor da mobilidade dos trabalhadores rareiam, sobram boas intenções e promessas do poder público, mas que nunca enfrentam o inferno dos que circulam sem automóveis particulares. Após a milionária contratação da empresa Sistran, de São Paulo, para produzir diagnósticos técnicos sobre o tema em 2016, somente um ano e meio depois a PMSL aprovou a Lei 6.292, de Mobilidade Urbana. Com 120 artigos, nenhum sobre integração dos meios de transporte, mobilidade na zona rural ou faixas de travessia de pedestres, a lei promete “equidade, segurança, eficiência, eficácia, efetividade” através de “pistas de rolamento e faixas de trânsito que determinem a prioridade à circulação de transportes coletivos”, “proteção contra intempéries e bancos” nos locais de embarque e desembarque, “sistema cicloviário composto de ciclovias e ciclofaixas”, “passeios públicos com revestimento impermeável, continuidade longitudinal ao fluxo e acesso universal”! Com seis anos aprovada, a Lei é mais um conjunto de medidas sem efetividade que se encerra com um Anexo sobre “Organização Institucional e Participação Popular”, no qual são prometidos novos setores de gerenciamento na SMTT e a “criação do Conselho Municipal de Mobilidade Urbana, com integrantes da sociedade civil”, nunca instituído (SÃO LUÍS, 2017).

Coroando este percurso de promessas e omissões, o novo Plano Diretor (SÃO LUIS, 2023) traz mais: em seu Título V – Da Política de Acessibilidade Universal e de Mobilidade Urbana, Artigo 62, Capítulo III, a referida Lei se compromete com a “priorização do pedestre sobre todos os modos de transporte, os não motorizados sobre os motorizados e os serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”! Para isso, o Art. 63 determina 60 dias (mas o Art. 74 dá 90 dias e mais 30 de tolerância!) para criação do Conselho Municipal de Mobilidade Urbana (ainda não aconteceu), enquanto o Art. 65 estipula um ano para a elaboração do Plano de Mobilidade Urbana (prazo vencido) e o Art. 75 dá dois anos para o Plano de Transportes e Terminais de Integração de Passageiros (vence em seis meses, sem nada iniciado!).

Mas, se tais medidas nunca acontecem, o mesmo não se pode dizer das intervenções viárias pró-transporte individual, sempre executadas pelos governos estadual e municipal que favorecem a expansão imobiliária de alta renda: enquanto a prefeitura assume, sempre na proximidade das eleições, a ampliação das vias para fluidez mais rápida dos automóveis, ignorando usuários de ônibus e motocicletas, ciclistas e pedestres na “Operação Trânsito Livre”, governos estadual e federal iniciam outra expansão da Avenida Litorânea, prometendo mais uma vez faixas de BRT nunca efetivadas. Obra milionária e mina de ouro à beira mar, região de baixa densidade populacional, sem trabalhadores que utilizam ônibus, motocicletas, bicicletas ou se deslocam a pé, o serviço segue a lógica das “avenidas imobiliárias”, na definição do urbanista Cândido Malta Campos Filho, perfeitamente coerente com o “desenvolvimento urbano” devorador de solo, mas funcional ao mercado imobiliário e à indústria automobilista, conforme esclareceu Ermínia Maricato!

E assim se desenrola a luta de classes em torno da mobilidade urbana em São Luís: enquanto os empresários lucram com serviços de péssima qualidade, pondo em risco a integridade física e roubando tempo dos trabalhadores para além da extração de mais-valor, as gestões municipais protegem os negócios do SET, ignoram a péssima qualidade dos serviços ofertados e retiram da SMTT qualquer capacidade de atuação republicana. Simultaneamente, milhões do fundo público são investidos em obras que reduzem o tempo de deslocamento e valorizam localizações das camadas de alta renda, abrindo novas frentes de lucros para a construção civil e alimentando o carrossel rentista. E quanto aos trabalhadores? Com tradição de luta por direito à meia passagem estudantil, conquistada em plena ditadura militar com a Greve de 1979, movimento agora retomado com o plebiscito do passe-livre estudantil na próxima eleição municipal, estariam os trabalhadores de São Luís restritos a lutas econômicas por mobilidade? Hoje, com o agravamento das precariedades nos deslocamentos, saberão os trabalhadores iniciar lutas políticas em favor de tempo livre para toda a classe?

REFERÊNCIAS
SÃO LUÍS. P8 – Avaliação da Infraestrutura Urbana, Viária e da Mobilidade. Elaboração de Projeto Básico para a Concessão dos Serviços do Sistema de Transporte Coletivo Urbano do Município de São Luís. Prefeitura Municipal de São Luís/SISTRAN, março/2016.
SÃO LUÍS. Lei Nº 6.292, 28/10/2017. Institui a Lei de Mobilidade Urbana de São Luís e dá Outras Providências.
SÃO LUÍS. Relatório Final. Comissão Parlamentar de Inquérito do Transporte Coletivo Municipal de São Luís. Câmara Municipal de São Luís, 2022.
SÃO LUÍS. Lei Nº 7.122, 12/04/2023. Altera a Lei nº 4.669 de 11 de outubro de 2006 sobre o Plano Diretor do Município de São Luís e dá outras providências.
SMITH, N. Desenvolvimento Desigual: Natureza, Capital e a Produção do Espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1988.
SOUSA, B. L. M. Transporte coletivo público na cidade de São Luís, MA: Comparações pré e pós-implantação do SIT – Sistema Integrado de Transportes. Dissertação de Mestrado, PPPG Engenharia Urbana, Universidade de São Carlos, SP, 2013.
VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, Lincoln Institute, 2001.