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TEORIA

Sobre rupturas e a Teoria da Capitulação Iminente

Por Mayk Alves, de São Paulo (SP)
La ruptura. Remedios Varo, 1955
[…] Praticar e defender a verdade, sempre a verdade diante dos militantes, dos responsáveis, do povo, sejam quais forem as dificuldades que o conhecimento da verdade possa criar. A democracia revolucionária exige que o militante não tenha medo do responsável, que o responsável não tenha receio do militante nem medo das massas populares.
Amílcar Cabral

A Teoria da Revolução Permanente pariu algumas outras teorias bastante problemáticas, esquemáticas e defeituosas no seio do trotskismo. Uma delas, que esteve presente no trotskismo brasileiro por muitos anos, é a que recebeu a alcunha de Teoria da Revolução Iminente. Os morenistas realmente acreditavam tão firmemente que a derrocada de um governo de conciliação de classes na América Latina levaria a um processo revolucionário que simplesmente negligenciaram a ascensão meteórica do fascismo tupiniquim.

Ignoravam que a consciência da classe certamente avança em saltos, mas também pode regredir em saltos. Os sinais estavam presentes, embora estivessem cegos pelo ímpeto revolucionário. Um erro grotesco mas, no mínimo, um erro honrado.

Aparenta, no entanto, que a mesma lógica pode ser aplicada internamente à corrente, algo que pode receber a alcunha de Teoria da Capitulação Iminente. Que os reformistas irão capitular não é nenhuma novidade. Mas, internamente, ela funcionaria da seguinte maneira: a direção, por estar estrategicamente cega por um fenômeno reformista, certamente chegará ao ponto em que cometerá uma capitulação irremediável e as bases do partido irão se insurgir contra ela.

Essa teoria é problemática em vários níveis. O primeiro deles é que as pressões existem e as oportunistas são maiores se estamos ao lado dos reformistas, não há o que discutir. Mas a direção pode vacilar e mesmo assim ser capaz de fazer balanço de seus próprios erros. Não esperar isso de uma direção é o mesmo que dizer que o partido está irremediavelmente burocratizado. Um risco que todo partido corre, mas que exige uma caracterização precisa e elementos muito mais fortes do que um possível deslize na disputa do aparato.

O segundo problema é acreditar que a união política com fenômenos reformistas necessariamente resultará em capitulações ou na perda do caráter revolucionário da corrente. Novamente, este é um sério risco e devemos ter mecanismos para impedir que o mesmo ocorra. Entretanto, a saída para esse problema não pode enrijecer o espaço de manobra da corrente ou do partido e sua capacidade de tomar as decisões mais acertadas taticamente.

Os melhores mecanismos para combater os referidos riscos são simplesmente a formação marxista revolucionária incessante e a máxima democracia interna. Por vezes, podemos ter alguns parágrafos em resoluções específicas, mas não é necessariamente sempre a melhor abordagem.

O último problema é que, mesmo na situação inconteste de uma capitulação irremediável, a base pode apenas não se insurgir. Nesse estágio, estamos falando de alienação. Ao encontrar dificuldades em compreender as duas primeiras questões citadas anteriormente, o natural é acreditar na ideia de que a ausência de reação a uma suposta capitulação da direção seria culpa deste último problema.

Uma situação hipotética

Combater severamente a má língua, a mania das intrigas, o “diz-que-diz”, as críticas injustas e sem fundamento. Apreciar o pensamento e a ação de um camarada não é necessariamente dizer mal. Dizer bem, elogiar, encorajar, estimular – também é criticar. Sempre vigilantes contra as vaidades e orgulhos pessoais, devemos, no entanto, não poupar elogios a quem os merece. Elogiar com alegria, com franqueza, diante dos outros, todo aquele cujo pensamento e ação servem bem ao progresso do Partido.

Alguém que acredite fielmente na Teoria da Capitulação Iminente irá trabalhar precipitadamente para duas coisas não necessariamente excludentes (na verdade, são complementares): impedir a capitulação ou romper. E, se a grande causa da possível capitulação é a unidade com reformistas, torna-se preciso provocar o afastamento para impedi-la, em uma espécie de tentativa de contrapressão. Sendo assim, naturalmente se conforma algo similar a uma fração permanente.

Nesse processo, o que deveria ser apenas uma divergência política, se torna um emaranhado incessante de conspiracionismos e desconfianças. Ainda na lógica da fração permanente, a pessoa acaba transferindo suas próprias crises para a base que dirige.

Quem quer que seja que adira a essa política, caso rompa e leve alguns militantes consigo ou algum trabalho de base, pode até conseguir barganhar espaços de direção em outra corrente, mas será que poderá dizer que saiu como quadro? Além disso, esta postura fere o centralismo democrático na mesma medida em que se acusa a direção de fazê-lo. É uma postura contrarrevolucionária tanto quanto o oportunismo.

Alguns, mesmo os sem balanço, chegam à conclusão patológica de que estariam efetivamente sendo boicotados por questões mínimas. Com isso, não percebem que estão se auto-boicotando ao transformarem o que deveriam ser apenas pequenos atritos em grandes processos de crise.

Não é possível estabelecer relações de confiança com pessoas que atuam na lógica das desconfianças fracionais incessantes e que nunca se resolvem. Pelo contrário, é extremamente desconfortável. Colocando em outras palavras, seria possível a composição de uma fração permanente compatível com um regime democrático saudável?

Aparentemente, o resultado inerente é a conformação de um jogo dúbio entre acirrar as divergências com a direção na base e ao mesmo tempo alegar perseguição ou questões de regime. Em uma situação como esta, a base mais consciente não irá se insurgir contra a direção, mas contra os conspiradores, mesmo concordando com muitas de suas posições políticas.

A chave, no caso acima exposto, apesar de parecer clichê, segue sendo sempre haver uma máxima democracia interna: só adquirimos experiência quando nos colocamos nas situações e somos expostos ao contraditório. Não colocar polêmicas de maneira aberta sob a égide de não gerar desconfortos abre margem para acirramento das intrigas, das tramas, das peripécias.

Deixemos essa concepção aos adeptos de regimes degenerados como o consenso progressivo. Não é à toa que presenciamos tantas rupturas em correntes que atuam com estes pressupostos. As conspirações, as fofocas e as manipulações morrem como bactérias anaeróbias expostas ao oxigênio quando as divergências políticas são colocadas com firmeza, clareza e honestidade em um ambiente ventilado pela democracia.

O estopim

Existem ainda muitos defeitos, carências e até mesmo comportamentos bastante graves na gestão do poder popular. O desrespeito ao centralismo democrático sendo um dos principais. Deve-se encorajar os militantes a falar destas falhas. É preciso expô-las às claras. Os revolucionários não têm medo de reconhecer suas fraquezas e seus defeitos, até mesmo na frente de seus adversários e inimigos. É o único jeito de se engajar também a combater estes defeitos publicamente.
Thomas Sankara

Um ingrediente a mais nessa teoria poderia ser o caso de um fracionamento ocorrendo em outra corrente muito próxima e com divergências políticas parecidas em pauta. Um elemento como este leva naturalmente à caracterização de que o momento de insurreição da própria base chegou. Bem, pelos motivos que dissemos anteriormente, tem que se caracterizar muito bem.

Ademais, da mesma forma que aqueles que atuam na lógica da fração permanente tendem sempre a testar até onde podem ir, pode ser que também haja outras pessoas dando corda para ver com seus próprios olhos quais são seus limites.

Caracterizando inicialmente que é possível ir até às últimas consequências e percebendo em algum ponto que não dará certo, o óbvio é recuar alegando problemas de regime. Neste ponto, a direção tem papel fundamental a cumprir, já que poderá ou não fazer jus às questões alegadas.

Sabemos muito bem que divergências políticas não podem nos colocar como inimigos. Companheiros revolucionários são extremamente valiosos. Nosso inimigo segue sendo a burguesia. Ressentimentos são para os fracos e desavisados, para aqueles que são pegos de surpresa.

Afinal, se todo o processo hipotético que descrevemos aqui acabar levando à ruptura, o correto sempre será a camaradagem franca e honesta, por mais unilateral que seja, uma vez que este é o melhor método a ser adotado por quem acredita na moral revolucionária.

O artigo acima representa a opinião do autor e não necessariamente corresponde às opiniões do EOL. Somos um portal aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista