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TEORIA

Leon Trotsky e os Princípios Organizativos do Partido Revolucionário – Parte 2

Por Dianne Feeley, Paul Le Blanc e Thomas Twiss. Tradução de Paulo Duque, do Esquerda Online

O texto “Leon Trotsky and the Organizational Principles of the Revolutionary Party” foi escrito em 1982 como parte dos debates internos do Socialist Workers Party (SWP) estadunidense com o objetivo de refletir sobre o regime partidário. Buscando trazer elementos da concepção organizativa em Trotsky, na Seção 2, os autores abordam os desafios da defesa do partido revolucionário bolchevique durante a Oposição de Esquerda na Rússia, entre 1923 e 1928. Para esta publicação, consta-se uma introdução histórica sobre o desenvolvimento do partido bolchevique após a conquista do poder pela Revolução Russa em 1917 e os desafios enfrentados pelos inícios da burocratização, bem como um debate sobre a importância do centralismo democrático.

Leia também: Leon Trotsky e os Princípios Organizativos do Partido Revolucionário – Parte 1

Fonte: FEELEY, Dianne; LE BLANC, Paul; TWISS, Thomas. Leon Trotsky and the organizational principles of the revolutionary party. Chicago: Haymarket Books, 2014. p. 21-33.

Seção 2 – O desafio da Oposição de Esquerda

“Lenin escrevia: ‘No momento da conquista do poder, quando foi criada a República dos Sovietes, o bolchevismo havia atraído para si o que havia de melhor nas tendências do pensamento socialista que lhe eram próximas’ ” (Minha vida, p. 382). Por exemplo, em setembro de 1917, o órgão central dos bolcheviques publicou as palavras de Trotsky: “Revolução permanente contra o massacre permanente! Eis a luta que decide o destino da humanidade” (Minha vida, p. 381). Como Trotsky refletiu em 1922, sua teoria da revolução permanente “foi completamente confirmada. A revolução russa não poderia culminar num regime democrático-burguês: tinha que entregar o poder à classe trabalhadora” (A revolução de 1905). Ao mesmo tempo em que tais ideias foram sendo adotadas pelos bolcheviques em 1917, Trotsky foi conquistado para a concepção leninista do partido, que chegou a ver como “o instrumento fundamental da revolução proletária” (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 349).

Desde seus primeiros anos, a vida interna do partido bolchevique convivia com controvérsias. Trotsky escreveu mais tarde:

E como poderia uma organização verdadeiramente revolucionária, que se propõe a mudar o mundo e reunir sob suas bandeiras os mais ousados iconoclastas, rebeldes e lutadores, viver e crescer sem conflitos ideológicos, sem agrupamentos, sem formações fracionais temporárias? A clarividência da direção do Partido Bolchevique conseguiu muitas vezes atenuar e encurtar as lutas fracionais, mas não era capaz de fazer mais do que isso. O Comitê Central se apoiava nessa base democrática efervescente e daí tirava a audácia para decidir e ordenar. A justeza manifesta da direção em todos os estágios críticos conferia-lhe uma elevada autoridade, o precioso capital moral do centralismo. (A revolução traída, p. 113).

Algumas das maiores disputas surgiram depois que os bolcheviques tomaram o poder, quando o governo revolucionário enfrentava problemas graves. Durante uma destas lutas acaloradas, em janeiro de 1921, Lenin expressou preocupação de que a “febre” das frações tinha se tornado “crônica e perigosa”. Ele estava especialmente preocupado com o potencial perigoso da retórica operária e utópica da oposição operária. Criticando duramente esses agrupamentos, no entanto, ele continuou apoiando o direito dos membros de formar grupos partidários internos, o que tem sido respeitado pelos bolcheviques desde o início. “Nos formar em diferentes grupos (especialmente antes do congresso)”, escreveu Lenin, “é claramente permitido. Mas isso deve ser feito nos limites do comunismo (e não sindicalismo) e, da mesma forma, não provocando risadas” (Carr, The Bolshevik Revolution, v. 1, p. 204). Expressão da esperança de que “O partido aprende a não exagerar os desacordos”, Lenin citou com aprovação a sugestão de Trotsky de que “A luta ideológica no partido não significa repulsão recíproca, antes significa influência mútua” (Lenin, Mais uma vez sobre os Sindicatos).

Mas o cenário começou a mudar drasticamente em poucas semanas depois. Em março de 1921, o X Congresso dos Bolcheviques (agora Partido Comunista) foi interrompido por uma insurreição em Kronstadt. Apesar de o governo soviético estar apto a acabar com a revolta, seus dirigentes foram amplamente perturbados pelas evidências de que o governo perdera alguns dos apoios que anteriormente tinham entre a maioria dos camponeses do país. Eles também estavam preocupados, já que a revolta de Kronstadt assinalava um iminente ataque pelos poderes imperialistas. Isso os convenceu de que o real futuro do poder soviético agora dependia, acima de tudo, de uma firme demonstração de unidade pelos dirigentes e membros do Partido Comunista.

Quando o X Congresso foi retomado, os bolcheviques pensaram que era necessário, pela primeira vez em seus dezoito anos de história, proibir frações dentro do partido. “A proibição de frações, repito, foi concebida como uma medida excepcional destinada a desaparecer com a primeira melhoria real da situação”, Trotsky observa depois. “Ao mesmo tempo, o Comitê Central se mostrava extremamente cauteloso na aplicação da nova lei e, acima de tudo, cuidava de não sufocar a vida interna do Partido” (A revolução traída, p. 114). Enquanto a resolução do X Congresso proibia a atividade de frações, ela claramente não proibia a democracia. A resolução afirmou que a crítica “dos defeitos do partido” era “absolutamente necessária”. A resolução declarou que cada proposta prática, como “a do grupo da chamada ‘oposição operária’, a depuração do partido dos elementos não proletários e inseguros, a luta contra o burocratismo, o desenvolvimento da democracia e da iniciativa dos operários etc., quaisquer propostas concretas devem ser analisadas com a máxima atenção e verificadas na atividade prática”. O partido se comprometeu “a lutar incansavelmente e por todos os meios contra a burocracia” e “pelo alargamento da democracia e da iniciativa” (Lenin, Projeto inicial de Resolução do X Congresso do PCR sobre a unidade do partido).

E ainda, as difíceis circunstâncias que resultaram em medidas emergenciais foram também criando uma camada burocrática no partido e no Estado. A proibição de frações contribuiu para isso. Como Trotsky apontou:

Até o X Congresso do Partido, conduzido sob as condições de bloqueio e fome, a crescente agitação camponesa e os primeiros estágios da NEP – que desencadeara tendências pequeno-burguesas -, foi considerada a possibilidade de recorrer a uma medida tão excepcional como a proibição de frações. É possível considerar a decisão do X Congresso como uma necessidade grave. Mas, à luz dos eventos posteriores, uma coisa é absolutamente clara: a proibição de frações trouxe à heroica história do bolchevismo um fim e abriu caminho para sua degeneração burocrática. (Writings of Leon Trotsky [1935-36], p. 185-186).

No outono de 1922, Lenin propôs a Trotsky que eles formassem um bloco a fim de travar uma batalha contra o burocratismo e uma crescente tendência conservadora no Partido Comunista Russo. A nova camada burocrática começa a acumular privilégios que a afastam do programa revolucionário do partido. As figuras dirigentes desta camada, particularmente Joseph Stalin, constituíam o que era, essencialmente, uma fração não declarada que sistematicamente começou a danificar o programa revolucionário. Lenin não chamou seu bloco com Trotsky de uma fração, nem considerou tal atividade como proibida pela Resolução do X Congresso. Ao mesmo tempo, acreditava que isso constituía um desafio importante e necessário em relação às políticas da maioria da direção central do partido. Ele destacou suas ideias preliminares e o programa de reforma em uma série de notas e artigos (cf. Últimos escritos e diário das secretárias).

Infelizmente, um AVC em abril de 1923 e a morte em janeiro de 1924 impediram Lenin de realizar esta campanha. Assim, coube a Trotsky sozinho lançar a luta para defender o programa bolchevique-leninista e as normas organizativas do Partido Comunista Russo e da Internacional Comunista.

No outono de 1923, a crise econômica na União Soviética atingiu um novo nível com um desemprego generalizado e uma onda maciça de greve, em que alguns membros do partido participaram. O Comitê Central se encontrou e discutiu uma nova redução de créditos às indústrias nacionalizadas e medidas repressivas contra membros do partido envolvidos nas greves. Como resposta, Trotsky se concentrou em medidas que resolveriam a causa subjacente do descontentamento no país e nas fileiras do partido. Em outubro de 1923, Trotsky escreveu duas cartas ao Comitê Central. Em sua primeira carta, apontou as duas razões para [isso]:

Esta forte degeneração tem duas causas: a) o regime interno do partido, essencialmente injusto em insano; b) o descontentamento dos operários e camponeses diante da difícil situação econômica, agravada não somente por fatores objetivos, mas também pelos profundos erros na política econômica. (O novo curso, p. 147).

Após tentar resolver o problema no Comitê Central por mais de um ano, Trotsky concluiu que ele deveria travar a luta além do Comitê Central:

Chegou-se a um ponto no qual partido está abertamente ameaçado por uma crise de excepcional gravidade e, sob tais circunstâncias, teria o direito denunciar todos aqueles que viram perigo sem o alertarem abertamente que preferiram a forma em detrimento do conteúdo.

Levando em conta o desenvolvimento da situação, considero não somente como o meu direito, senão como meu dever, expor o que vem ocorrendo a cada membro do partido que pareça suficientemente preparado, perspicaz, sólido e que, portanto, esteja em condições de ajudá-la a sair do impasse sem abalos nem convulsões fracionais. Isto suscita o perigo de que o partido possa ser pego de surpresa por uma crise de excessiva gravidade. Nesse caso, qualquer camarada que tenha visto o perigo, mas não o nomeou abertamente pode ser acusado corretamente pelo partido de colocar a forma acima do conteúdo. (O novo curso, p. 160-161).

Logo depois, 46 proeminentes bolcheviques mandaram uma comunicação ao Comitê Central alertando que “o partido está deixando, em grande medida, de ser aquela coletividade viva e independente que com sensibilidade capta a realidade das coisas, porque está ligada a esta realidade através de milhares de fios” (O novo curso, p. 167). Eles exigiram que “o regime fracional deve ser abolido, e isso deve ser realizado em primeiro lugar por quem o criou; deve ser substituído por um regime de unidade entre camaradas e de democracia interna de partido” (O novo curso, p. 169).

A maioria do Comitê Central, conduzida por um triunvirato composto por Stalin, Zinoviev e Kamenev, ameaçou uma ação disciplinar. Mas, sob a pressão do aprofundamento da crise econômica e o crescente descontentamento com o partido, o Comitê Central abriu uma discussão nas páginas do Pravda. Em dezembro, os apoiadores da maioria do Comitê Central aprovaram uma resolução por meio do qual eles poderiam, perante as massas, se apresentar como sendo os líderes da luta contra os métodos burocráticos. Apesar de Trotsky ter visto estas ações como uma manobra, ele assinou a Resolução e utilizou o documento na campanha pela democracia partidária. A resolução do “Novo curso” reafirmou a necessidade do partido discutir coletivamente o enfrentamento dos problemas mais importantes e, com esse documento, as forças de oposição simpatizantes com as visões de Trotsky conduziram a uma campanha pela democracia interna partidária nas reuniões do partido.

Foi o começo de uma luta prolongada da Oposição de Esquerda contra a degeneração burocrática do partido, do Estado e da revolução. Em vários pontos, muitos da direção bolchevique se juntaram à luta prolongada da Oposição, apesar de muitos, finalmente, terem capitulado devido à intensa pressão que a burocracia conseguiu exercer.

O próprio Trotsky sentiu a necessidade de fazer recuos e compromissos. Em 1923, quanto se absteve de contestar o banimento do X Congresso, afirmou: “Ter o partido como um todo participando na elaboração e adoção das resoluções é promover os agrupamentos ideológicos temporários que arriscam se transformarem em agrupamentos duráveis e mesmo em frações” (O novo curso, p. 36). No ano seguinte, no entanto, ele se sentiu pressionado para dizer que “eu nunca reconheci a liberdade para agrupamentos dentro do partido, nem reconheço isso agora” (The challenge of the Left Opposition (1923-25), p. 154). Em 1925, ele foi forçado, em uma carta editada pelo Bureau Político, a rejeitar a existência de testamento de Lenin e a publicação por Max Eastman (The challenge of the Left Opposition (1923-25), p. 309-315).

Em 1923, Trotsky afirmou: “Quanto à teoria da ‘revolução permanente’, não vejo razão para renunciar ao que escrevia a este respeito em 1904, 1905, 1906 e depois” (O novo curso, p. 74). Por volta de 1926-1927, ele se sentiu compelido repetidamente a renunciar à sua teoria (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 145, 179-177, 193, 386-387). Para obter um “encantamento” em 1926, Trotsky e outros dirigentes da Oposição assinaram uma declaração na qual desmobilizaram a Oposição como fração, afirmando que “a liberdade de composição de fração e agrupamentos” eram “contrários ao leninismo” (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 125-129).

Nos anos posteriores, Trotsky estava apto a recuperar aquelas posições teóricas das quais tinha se comprometido – sobre a última batalha de Lênin contra a burocracia, sobre a revolução permanente, sobre o verdadeiro significado das normas do centralismo democrático. Mesmo em 1923-1927, no entanto, a recusa de Trotsky em se comprometer sobre os aspectos essenciais do programa bolchevique-leninista impossibilitou a burocracia de assimilá-lo ou neutralizá-lo. Os oposicionistas que compartilharam esses compromissos com o programa revolucionário do bolchevismo eram, consequentemente, expulsos na condição de “trotskistas”.

O desafio da Oposição de Esquerda realça um amplo conjunto de problemas organizativos que eram de especial relevância ao partido revolucionário que tomara o poder. Alguns desses problemas são de natureza muito diferente daqueles enfrentados pelo partido antes da revolução. Mesmo para um partido em suas fases iniciais, os escritos de Trotsky nesse período fornecem informações valiosas sobre os princípios básicos e organizativos de um partido revolucionário.

1. Função da democracia no centralismo democrático

Trotsky viu que “A democracia e o centralismo são Duas Faces da organização do partido. A questão é harmonizá-las da maneira mais correta, isto é, da maneira que correspondam melhor à situação”. Em uma carta publicada no Pravda em dezembro de 1923, Trotsky observou que, “No último período, não houve tal equilíbrio. O centro de gravidade fixou-se erradamente no aparato. A iniciativa do partido foi reduzida ao mínimo” (O novo curso, p. 110).

Isso reduz a capacidade de luta do partido, o desarmando. Ainda assim, a “vantagem incomparável e essencial” do partido reside precisamente em estar preparado para tirar conclusões “com base em uma democracia ativa e vibrante dentro do partido” (O novo curso, p. 31-32). Sem esta “múltipla experiência coletiva”, a direção do partido se estreita, cedendo “a administração aos seus órgãos executivos (Comitê, Birô, Secretaria etc.). Quando esse regime se torna consolidado, todos os assuntos são concentrados nas mãos de um pequeno grupo, algumas vezes apenas de um secretário, que nomeia, remove, dá instruções, impõe as penalidades etc.” (O novo curso, p. 32).

a) A responsabilidade das militantes do partido

Para Trotsky, a democracia interna do partido foi uma arma proletária no arsenal da luta de classe.

O leninismo não pode ser concebido sem largura teórica, sem uma análise crítica das bases materiais do processo político. a arma da investigação marxista deve ser constantemente afiada e aplicada. […] Como sistema de ação revolucionária, o leninismo pressupõe um sentido revolucionário afiada pela reflexão e experiência, o que, no domínio social, equivale à sensação muscular no trabalho físico. (O novo curso, p. 67).

Então, as tarefas políticas delineadas em um congresso partidário eram, na melhor das hipóteses, uma aproximação do que precisava ser feito. Apenas a experiência prática pode confirmar a linha política, forçar sua modificação ou comprovar que tais tarefas eram inadequadas. E o mecanismo mais adequado para refletir a variedade de experiências foi a rica vida interna do partido, por meio de sua democracia partidária interna. A unidade de ação só poderia nascer dessa experiência coletiva.

O partido é, acima de tudo, uma organização de ação. O conjunto de seus membros devem ser capazes de se mobilizarem para o combate em qualquer momento, sob a direção do Comitê Central. Tal preparação para o combate não é concebida sem a unanimidade do partido. Mas seria o erro mais grosseiro pensar que a unanimidade só pode ser criada por meio da noção dos clichês de manuais oficiais transmitidos de cima para baixo. A unanimidade é produzida por todo o partido por meio da constante renovação e acumulação da experiência coletiva, de um esforço coletivo de pensamento, sobre a base do programa partidário, regras, tradições e experiência passada. Este processo é inconcebível sem as diferenças, a crítica e o confronto de ideias. (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 113).

Trotsky explicou que “É nas contradições e diferenças de opinião que ocorre inevitavelmente a elaboração da opinião pública do partido. Localizar esse processo apenas dentro do aparato que é então encarregado de suprimir o partido com o fruto de seus trabalhos na forma de slogan, ordens etc., é esterilizar o partido ideológica e politicamente” (O novo curso, p. 36). As diferenças dentro do partido surgiriam inevitavelmente no futuro, mas, assim como no passado, elas poderiam ser resolvidas por meio do “pensamento coletivo do partido, se corrigindo sempre e mantendo assim a continuidade do desenvolvimento” (O novo curso, p. 69).

A democracia, em outras palavras, é um pré-requisito essencial para maximizar a possibilidade de um programa político correto. Claramente, a norma organizativa de uma discussão interna rica flui diretamente da centralidade do desenvolvimento e da melhoria do programa político do partido. Ou, nas palavras de Trotsky, “As questões de organização são inseparáveis daquelas do programa e da tática” (Stálin, o grande organizador de derrotas, p. 189).

Em oposição aos “homens do sim” que os métodos burocráticos mortíferos criaram, Trotsky descreveu um bolchevique modelo:

Um bolchevique não é apenas uma pessoa disciplinada, é uma pessoa que em cada caso e em cada questão forja uma firme opinião por si mesmo, a defende independente e corajosamente não apenas contra seus inimigos, mas dentro de seu próprio partido. Hoje, talvez, ele estará em minoria em sua organização. Ele se submeterá, porque é seu partido. Mas isto nem sempre significa que ele está errado. Talvez ele tenha visto ou entendido antes dos outros uma nova tarefa ou a necessidade de uma mudança. Irá persistentemente levantar a questão uma segunda, terceira ou décima vez, se preciso. Assim, ele prestará um serviço ao partido, ajudando-o a encontrar a nova tarefa totalmente armado para implementar o giro necessário, sem convulsões fracionais. (O novo curso, p. 127).

Uma abordagem crítica por parte de cada membro é um dispositivo de segurança para ajudar o partido a corrigir uma posição incorreta ou movê-lo decisivamente em um novo caminho quando a evolução da situação o exigir. Por esta razão, o partido não necessita de

funcionários carreiristas, mas de pessoas fortemente temperadas moralmente, permeadas com o sentimento de responsabilidade pessoal, que em cada questão importante assumirão seu o dever de elaborar conscientemente sua opinião pessoal, e a defenderão corajosamente por todo meio que não viole racionalmente (isto é, não burocraticamente) a disciplina e a unidade de ação. […] É por isso que a subserviência burocrática, a docilidade espúria, e todas as outras maneiras de vazios carreiristas que sabem puxar a sardinha para o seu prato, não podem ser toleradas. O que é preciso é crítica, averiguação de fatos, independência de pensamento, elaboração pessoal do presente e do futuro, independência de caráter, sentimento de responsabilidade, verdade para si mesmo e para o trabalho. (O novo curso, p. 126-127).

b) Como o partido se constrói

O partido apenas pode conduzir suas tarefas programáticas essenciais “exercendo o tipo de direção coletiva que emprega a iniciativa da classe operária e do Estado proletário” (O novo curso, p. 111). Então, como os membros individualmente, com suas variadas experiências, podem se unir para formar esta efetiva equipe?

Para Trotsky, a resposta reside na interrelação da geração mais velha, com sua vasta experiência revolucionária, com a geração mais jovem, com sua espontaneidade e energia. Cada geração teve que ensinar e aprender com a outra. Por meio desse processo, a equipe tinha que ser formada e o partido revolucionário fortalecido. Ao oferecer uma definição de democracia partidária aplicada na situação do partido russo, Trotsky afirmou em seu discurso antes do X Congresso:

De um lado, a democracia partidária é um regime que assegura a direção teórica, política e organizativa da geração mais velha dos bolcheviques clandestinos, rica em experiência, porque se esta direção não é segura (e apenas uma criança poderia falhar em compreender isso), o partido não será capaz de navegar no barco do Estado e no barco do movimento internacional dos trabalhadores em meio às dificuldades, canais estreitos, rochas e corais. Mas, ao mesmo tempo, a democracia partidária é um regime que, enquanto assegura a posição dirigente da geração mais velha, também assegura que a geração mais nova acesse a via principal do bolchevismo e do leninismo – e isso não por educação formal (tais métodos não conseguem atingir isso), mas, antes, pela participação ativa, independente e prática na vida política do partido e do país. (The challenge of the Left Opposition (1923-25), p. 152-153).

Em outro lugar, Trotsky escreve, “É apenas por uma colaboração ativa constante com a nova geração, dentro da estrutura da democracia, que a ‘velha guarda’ irá se preservar como um fator revolucionário” (O novo curso, p. 111).

O único modo de um partido revolucionário permanecer um partido revolucionário é por meio de um processo contínuo e renovador, temperado pela luta de classes e pela avaliação partidária de suas perspectivas. Trotsky apontou:

A revolução proletária atravessa altos e baixos consideráveis, através dos vales, dos túneis, das encostas escarpadas. Isso porque a seleção incessante dos revolucionários, o temperamento destes, não apenas na luta de massas contra o inimigo, mas também na luta ideológica no interior do partido, o controle dos revolucionários em meio aos grandes acontecimentos e aos giros bruscos é de uma importância decisiva para o partido. Goethe disse que, uma vez que uma coisa é conquistada, é necessário reconquistá-la sempre para possuí-la efetivamente. (Stálin, o grande organizador de derrotas, p. 298).

É por meio da democracia que o partido se consolida, testa sua linha política e recupera sua herança revolucionária para a próxima geração. Trotsky comparou esse processo ao desenvolvimento – quando a Guerra Civil acabou – do aprendiz de comandante do Exército Vermelho.

O futuro comandante entra na escola militar. Ele não tem nem passado revolucionário nem experiência de guerra. Ele é um neófito. Não construiu o Exército Vermelho, como a velha geração; entrou em uma organização pronta, com um regime interno, e tradições definidas. Aqui há uma clara analogia com as relações entre os jovens comunistas e a “velha guarda” do partido. É por isso que os meios pelos quais é transmitida aos jovens a tradição combativa do exército, ou a tradição revolucionária do partido, são de vasta importância. Sem uma linhagem contínua, e consequentemente sem uma tradição, não pode haver progresso estável. Mas a tradição não é um cânone rígido ou um manual oficial; não pode ser aprendida por ouvir, ou aceita como um evangelho; nem tudo o que a velha geração diz pode ser aceito apenas “por sua palavra de honra”. Pelo contrário, a tradição deve ser, por assim dizer, conquistada internamente; deve ser elaborada por si mesma de uma maneira crítica, e deste modo assimilada. De outro modo, toda a estrutura será construída sobre a areia. (O novo curso, p. 125).

Para os marxistas, a abordagem da questão da democracia partidária por meio do simples uso dos princípios do parlamentarismo na vida partidária não é muito útil. Nem mesmo é útil analisar os limites formais impostos pelos estatutos do partido. Estas questões, mantém Trotsky, são secundárias. Elas podem ser examinadas “à luz da nossa experiência” e “modificações necessárias” podem ser introduzidas. “Mas o que deve ser modificado, antes de qualquer coisa, é o espírito que reina em nossas organizações. Cada unidade do partido deve se voltar para a iniciativa coletiva, ao direito de crítica livre e amigável, sem medo e sem voltas, e ao direito de autodeterminação organizativa” (O novo curso, p. 113). Qualquer tentativa de escrever regras e impor normas sobre o centralismo democrático nos estatutos do partido deve ser tomado como ponto de partida, assim “protegendo o partido contra fenômenos como a burocratização de seu aparato, bem como o iminente perigo de que o partido se torne isolado das massas” (The challenge of the Left Opposition (1923-25), p. 152).

Necessariamente, as tarefas políticas e as questões econômicas enfrentadas pelo partido revolucionário “irão infalivelmente engendrar diferenças de opinião e agrupamentos temporários” (O novo curso, p. 45). Mas tal processo não deve ser temido, porque é apenas por meio da democracia interna que os marxistas podem verificar suas perspectivas. Trotsky afirmou: “A vida das ideias no interior do partido não pode ser concebida sem agrupamentos provisórios no terreno ideológico. Até hoje, ninguém ainda descobriu outra forma de proceder. Quem quer que tenha tentado apenas demonstrou que essa receita se reduz a sufocar a vida das ideias no partido” (Stálin, o grande organizador de derrotas, p. 182-183).

Reprimir as diferenças existentes, manter o silêncio, recorrer a uma frase estereotipada ou uma citação de Lenin fora do contexto – esses são os métodos de partido pouco saudável. Como Trotsky apontou, se o partido não deve discutir as diferenças e decidir com base nas informações apresentadas, então quem tomará a decisão? Respondendo a uma campanha travada no Pravda em 1926 de que a discussão interna é prejudicial e perigosa, Trotsky comentou:

O que é uma discussão? É uma consideração formal por parte do partido sobre as questões que lhes são apresentadas e sobre as quais existem diferenças. O partido pode decidir sobre estas questões sem as discutir? Não pode. E se o partido não tiver que decidir sobre estas questões, quem irá decidir para ele? É sobre isso, essencialmente, que tudo se resume – se alguém pode decidir sobre questões disputadas pelo partido, em seu partido e sem seu conhecimento. (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 120).

c) A responsabilidade da direção

Para Trotsky, a direção no partido deve refletir a experiência coletiva do próprio partido. A direção é eleita para conduzir o trabalho administrativo do partido. É preciso compreender que isso é “nada mais além do que o mecanismo executivo da vontade coletiva” (O novo curso, p. 113). Os oposicionistas citaram a observação de Lenin de que “o ‘estado-maior’ bolchevique deve ‘ser realmente apoiada pela boa e consciente vontade de um exército que segue e, ao mesmo tempo, dirige esse estado-maior’ ” (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 352).

Trotsky indicou a importância de construir uma equipe de direção. Então, a responsabilidade da direção é auxiliar os militantes estabelecendo um tom no qual as decisões podem ser feitas coletivamente. Uma direção saudável “será a voz das amplas massas do partido e não deve considerar todas as críticas como uma manifestação do fracionamento e, assim, fazendo com que membros conscientes e disciplinados do partido se retirem círculos fechados e caiam no fracionalismo” (The challenge of the Left Opposition (1923-25), p. 80). Sem uma direção genuinamente aberta, os processos dinâmicos pelos quais o partido se une são transformados. Em seu lugar cabe a “fragmentação dos quadros do partido, a remoção de elementos valiosos da direção partidária que representam uma parcela significante de sua experiência acumulada e o estreitamento sistemático e o empobrecimento ideológico do núcleo dirigente” (The challenge of the Left Opposition (1926-27), p. 69).

Qualquer tentativa de deter os métodos burocráticos

deve ter o objetivo de substituir os burocratas mumificados por elementos frescos estreitamente ligados à vida da coletividade, ou capazes de assegurar tal elo. E, antes de qualquer coisa, os postos dirigentes devem ser limpos daqueles que, à primeira palavra de crítica, objeção ou de protesto, brandem os trovões das penalidades. O “novo curso” deve começar fazendo com que todos sintam que, de agora em diante, ninguém se atreverá a aterrorizar o partido. (O novo curso, p. 113).
Referências
Edward Hallett Carr. “The Bolshevik Revolution: 1917-1923”. Middlesex: Pelican Books, 1966. v. 1.
V. I. Lenin. “Mais uma vez sobre os sindicatos”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/01/26.htm#tr9
V. I. Lenin. “Projeto inicial de Resolução do X Congresso do PCR sobre a unidade do partido)”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/03/16.htm
A revolução de 1905”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1907/rev_1905/prefacio.htm
A revolução traída: o que é e para onde vai a URSS?” São Paulo: Iskra, 2023.
Minha vida”. São Paulo: Usina Editorial, 2017.
“O novo curso”. São Paulo: Usina Editorial; Contrabando Editorial, 2022.
Stálin, o grande organizador de derrotas: a Internacional Comunista depois de Lênin”. São Paulo: Iskra, 2020.
“Últimos escritos e diário das secretárias”. São Paulo: Sundermann, 2016.
The challenge of the Left Opposition (1923-25)”. New York: Pathfinder, 1975.
The challenge of the Left Opposition (1926-27)”. New York: Pathfinder, 1980.
“Writings of Leon Trotsky [1935-36]”. New York: Pathfinder Press, 1977.