Por Manuel Afonso, Movimento por uma Alternativa Socialista (Portugal)
Fez seis anos, no passado dia 15 de maio, desde as grandes mobilizações de “Indignados”, em que centenas de milhares jovens, desempregados, trabalhadores e as classes médias empobrecidas tomaram as praças do Estado Espanhol. Desde esta irrupção popular gigantesca e do período de mobilizações e greves que se seguiram, a vida política espanhola nunca mais foi a mesma.
Se já desde o início da crise de 2008 a economia espanhola caía, foi com o 15 de Maio (15M) de 2011 que todas as contradições do regime vieram à superfície. Desde então, o chamado regime de 78, resultante de uma transição pactuada do franquismo, tem tremido. Nas últimas semanas, novos elementos vieram lembrar que o regime espanhol continua em crise.
O governo atolado na corrupção
Desde o chamado caso Bárcenas, um caso de corrupção envolvendo o tesoureiro do Partido Popular (PP), tem se revelado uma ainda mais complexa rede de corrupção com o epicentro no PP.
Os desenvolvimentos de algumas dessas investigações, como a chamada operação Lezo ou o caso Gurtel, expuseram diversas redes de financiamento ilegal do PP pela mão de uma rede de empresas, com algumas das principais construtores espanholas no centro, a troco de favores na concessão de obras públicas.
Toda a nomenklatura[1] do PP de Madrid e de Valência, dois dos bastiões do partido, foi salpicada ou diretamente envolvida. O ex-presidente da Comunidade de Madrid, Ignacio Gonzalez foi detido junto com o seu irmão. A presidente do PP-Madrid, Esperanza Aguirre, demitiu-se, e a atual Presidente da Comunidade de Madrid, do mesmo partido, Cristina Cienfuegos, também foi chamuscada, sendo alvo de uma moção de censura do Podemos.
Mas o alarme chegou ao vermelho, quando o Primeiro-Ministro Mariano Rajoy, foi chamado a testemunhar no caso Gurtel. Rajoy precisou, em 2016, da repetição das eleições e de um longo impasse até conseguir que o PSOE se abstivesse no parlamento para formar um governo minoritário. Poucos meses depois, esta solução vê-se abalada por outros escândalos. O efeito dominó pode levar a que a vida do governo seja de facto muito curta.
“Hay que echalos!”
O PP conseguiu voltar ao governo no final de 2016. Fê-lo já com a sua popularidade socavada por anos de políticas de austeridade. Os sucessivos escândalos de corrupção fazem a sua base social erodir-se ainda mais.
Sondagens recentes mostram que eleições no atual momento fariam o PP perder cerca de 1,64 milhões de votos face às anteriores, sobretudo em direção dos Ciudadanos (formação de centro-direita). O PSOE e o Podemos aparecem também em crescimento e o PP, ainda que mantenha como partido mais votado, não teria aliados com força suficiente para formar governo.
Apoiado neste momento de fragilidade do governo, a coligação Unidos Podemos, que junta o Podemos de Pablo Iglesias e a Izquierda Unida de Alberto Garzón, colocou-se na ofensiva. Evocando o atoleiro de corrupção em que Rajoy está metido, Pablo Iglesias e os seus aliados, apresentaram uma moção de censura no passado dia 19.
Esta Moção de censura, que só será discutida no dia 13 de Junho, apresenta Pablo Iglesias como alternativa de governo e um programa “de cambio” para o país. Para o dia seguinte, 20 de maio, o Podemos convocou uma mobilização para a icónica Plaza Puerta del Sol, sob o lema “Hay que echalos!” (Há que tirá-los). Dezenas de milhares de manifestantes encheram a praça, vindos de todo o Estado Espanhol.
Uma semana depois, no dia 27 de maio as Marchas de la Dignidad, que unem a esquerda, vários movimentos sociais e o sindicalismo independente, marcharam contra o Código do Trabalho (2012) sob o lema “Pão, Trabalho, Teto e Igualdade”, exigindo o fim da precariedade, mais direitos democráticos e o fim da violência machista. Isso é sinal da vontade de luta que ainda há por baixo. Muitos sectores importantes podem ser mobilizados caso a esquerda não resuma a sua luta contra o governo às iniciativas parlamentares.
Ainda que se saiba que a moção será derrotada – o PSOE já deu a entender que não a irá apoiar – trata-se de uma iniciativa de fôlego do Podemos, numa altura em que o PSOE também atravessa momentos conturbados. A organização de Pablo Iglesias quer colocar-se como na primeira linha para uma eventual disputa do governo pós-Rajoy, disputa essa que pode estar para breve.
O braço de ferro catalão
Como se não bastasse, outra bomba relógio ameaça explodir nas mãos de Rajoy: o “processo soberano” da Catalunha. Nos últimos anos, o independentismo tem crescido na Catalunha, levando milhões para as ruas e dando a maioria eleitoral aos partidos que se reclamam independentistas.
O governo autonómico da Catalunha, a Generalitat, foi eleito com base nesta expectativa. O seu Presidente, Carles Puigdemont, reforçou o braço-de-ferro com Madrid para a convocatória de um referendo para decidir sobre a independência da Catalunha.
A Assembleia Nacional Catalã, assim como a Associação de Municípios pela Independência também se colocam ao lado da Generalitat. Puigdemont convocou para uma reunião os partidos favoráveis a uma consulta popular, onde segundo ele, se inclui o Podemos, que não sendo favorável à independência, cada vez se opõe menos a um referendo.
Por sua vez, Rajoy recusa-se sequer a negociar qualquer referendo ou uma alteração no financiamento da Catalunha para um modelo mais próximo ao do País Basco. A tensão cresce a cada dia e a hipótese de um referendo convocado de forma unilateral pelos catalães, embora improvável, não pode ser descartada. Isso significaria um aprofundamento importante da crise do regime.
Será Sanchez (PSOE) uma alternativa?
Por vias diferentes das do PP, a crise do regime também contaminou o PSOE, na senda do que tem acontecido com grande parte da social-democracia europeia.
A derrota em duas eleições seguidas face ao PP e a recusa do secretário-geral Pedro Sanchez em se abster no parlamento para que Rajoy governasse, levaram a que fosse removido da liderança do partido num verdadeiro golpe interno no final de 2016. A nova liderança provisória – a Gestora – era muito mais simpática à política do aparelho do partido. Isso fez com que o PSOE se abstivesse perante a tomada de posse do governo da direita. Porém, Sanchez não desistiu e candidatou-se contra Suzana Diaz, a líder do PSOE andaluz e favorita dos barões do partido e dos grandes capitalistas para a liderança do PSOE.
Nas eleições internas, a 21 de maio, o jovem Sanchez venceu a favorita Diaz, que contava com o apoio de todas as figuras históricas do PSOE, desde Felipe Gonzalez a José Luís Zapatero. Numa votação com participação de quase 80% da militância, Sanchez teve 50% contra 39% de Diaz e cerca 10% de Patxi Lopez.
Prova-se que na base popular do PSOE continua a expressar-se uma tendência para a esquerda, que em parte também alimenta o Podemos. Ao contrário da “Gestora” que tem dirigido o PSOE, Sanchez quer terminar com a complacência face ao PP e preparar a sua substituição, provavelmente em aliança com o Podemos, Ciudadanos ou com ambos. Se Diaz e o aparelho do partido são mais favoráveis à aproximações ao PP, Pedro Sanchez mostrou-se mais favorável ao um modelo como o que vigora em Portugal, em que o PS governa com o apoio da esquerda.
Seja como for, tudo indica que no terreno interno, Sanchez será cauteloso e conciliador. Para o Congresso do PSOE que se aproxima, Sanchez tem vindo a construir listas de delegados conjuntamente com a derrotada Suzana Diaz.
Um possível fim de Rajoy e o desafio da esquerda socialista
Se é verdade que Pedro Sanchez já demonstrou que não vai secundar a Moção de Censura do Podemos, a guerra com o PP segue dentro de momentos. A nova direção do PSOE já declarou que a partir de setembro, depois do Congresso do partido e do verão, está aberta a época de caça a Rajoy. O PSOE não descartaria então uma moção de censura, que, ao lado do Podemos, poderia derrubar o governo.
Esta perspectiva, somada aos escândalos de corrupção, a retomada das mobilizações e a crise catalã, coloca a possibilidade de que o ciclo Rajoy chegue ao seu fim. Se assim for, um novo desafio se abre à esquerda, em particular ao Podemos. Depois da capitulação do Syriza e o seu governo à austeridade, é no Podemos que repousam as esperanças de grande parte da esquerda europeia. Entretanto, é preocupante que na Plaza del Sol, Pablo Iglesias tenha reivindicado o governo do Syriza, que continua a fustigar o povo grego com austeridade.
Já o PSOE parece inclinar-se para uma solução à portuguesa, com uma governação conjunta entre PSOE e Podemos, algo que Iglesias não descarta. Caso isso ocorra, significa que se retiraram as conclusões erradas do processo do Syriza: em vez de reforçar uma estratégia anti-capitalista, os novos referentes de esquerda optam por governar com os partidos da “casta”, inevitavelmente gestores do neo-liberalismo. É o que se passa em Portugal e pode repetir-se no Estado Espanhol.
É necessário que o Podemos siga outro caminho, apontando uma saída à esquerda que aponte na direção de uma estratégia anti-capitalista pela via das mobilizações, para derrotar não só o governo, mas avançar na superação do decrépito regime de 78. Definitivamente, é urgente seguir um caminho oposto ao do Syriza para que a esquerda possa retomar a confiança dos trabalhadores europeus, fechando o caminho para o avanço da direita e da extrema direita.
[1] Era como se designava a “burocracia”, ou “casta dirigente” da União Soviética.
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