Na metade do ano, a esquerda francesa estava em ascensão. Pela segunda vez em dois anos, seus partidos frequentemente fraturados formaram uma aliança eleitoral, essa vez nomeado como Nova Frente Popular (Nouveau Front Populaire – NFP). Ela superou as expectativas nas eleições legislativas antecipadas, vencendo mais cadeiras que qualquer outra força no segundo turno em 7 de julho. Ela não ganhou uma maioria absoluta, mas privou Emmanuel Macron da estabilidade que almejava alcançar, enquanto negava a Marine Le Pen sua vitória amplamente antecipada.
A França brevemente pareceu oferecer um exemplo: caso se possa unir a esquerda e a centro-esquerda mais amplamente em um programa radical, pode-se derrotar a extrema-direita. Ainda assim, uma aliança que vai desde o ex-ministro macronista Aurélien Rousseau até Philippe Poutou do Novo Partido Anticapitalista encobriu muitas rachaduras. Agora, elas estão surgindo.
Já quando a esquerda francesa selou uma aliança prévia (Nova União Popular Ecológica e Social – NUPES) para as eleições de 2022, muitos senadores da ala direita do Partido Socialista (PS) se mostraram angustiados com a decisão do líder do partido, Olivier Faure, de aderir. Eles lamentaram a “submissão” do partido à França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, e se preocuparam que eles — autodenominados “reformistas” de centro-esquerda (cujas reformas ocorreram diretamente nas propostas do neoliberalismo) — seriam forçados a se alinhar à agenda supostamente revolucionária de Mélenchon
Essa reticência só aumentou desde então, mesmo com o equilíbrio do poder tendo mudado um pouco em direção ao Partido Socialista, que fortemente impulsionou seu grupo de parlamentares no verão como parte da NFP. As posturas da França Insubmissa sobre Gaza e Ucrânia, bem como o estilo político de Mélenchon, provocaram ataques regulares dessa ala do Partido Socialista, assim como do Place Publique, um micropartido mutante que serve às ambições presidenciais do candidato liberal de esquerda Raphaël Glucksmann.
Membros dessa fração do Partido Socialista por vezes romperam com a linha do partido em eleições complementares, incluindo duas disputas eleitorais atualmente previstas. Os socialistas anunciaram um candidato dissidente na primeira distrito de Isère, alocado à França Insubmissa nos acordos da NFP em junho, antes de desistirem e apoiarem o candidato oficial da França Insubmissa-NFP. Em Boulogne-Billancourt, o Partido Socialista local anunciou unilateralmente um candidato em um distrito em que o pacto da NFP havia alocado aos Verdes. Isso levou a líder dos Verdes, Marine Tondelier, a dizer que “alguns estão jogando jogos extranos em nível local… está fora de questão usar esses tipos métodos para destruir a NFP” e afirmar seu apoio à candidata dos Verdes-NFP, Pauline Rapilly-Ferniot.
Diferente de Isère, o Partido Socialista permanece na corrida em Boulogne-Billancourt, embora ainda haja tempo para desistir antes da eleição prevista para fevereiro. Tondelier não publicou uma condenação mais enérgica. Desde que sua tentativa de ser a primeira a romper com s NUPES durante as eleições para o Parlamento Europeu falhou em trazer ganhos significativos, ela tem se colocado como uma construtora de consenso dentro da NFP.
A França Insubmissa, que também reivindica o papel de defensora da unidade, reagiu fortemente à quebra dos acordos de junho. Nathalie Oziol, deputada da França Insubmissa pela segunda circunscrição de Hérault, disse ao Jacobin: “O que o PS está fazendo é inaceitável. É uma violação do acordo, no início da principal batalha, que é a batalha [sobre o orçamento do governo].” Ela acrescentou que “as batalhas internas no PS não são o problema do povo francês. Três meses atrás, eles assinaram nosso programa, e esperamos que eles o cumpram”.
Elefantes¹
As batalhas internas que Oziol se refere colocam a liderança da ala esquerda do Partido Socialista contra uma fração de direita — composta principalmente por senadores, pelo ex-presidente François Hollande e prefeitos locais — que deseja romper com a NFP e seguir um caminho separado. O atual líder partidário, Olivier Faure, considera a unidade ampla da esquerda como um objetivo estratégico fundamental. No início de outubro, Hollande solicitou uma nova figura para liderar o partido e abri-lo para pessoas como Raphaël Glucksmann, o eurodeputado liberal e intervencionista que, embora não seja membro do partido, liderou sua lista nas eleições europeias de junho.
O ex-presidente Hollande disse à Jacobin na sessão de autógrafos de seu recente livro em Londres que
“o Partido Socialista deveria mudar de direção no próprio sentido do termo… que é permanecer fiel aos seus ideais e à ideia de unidade. A união da esquerda sempre foi um fator que permitiu vitórias, mas isso deveria seguir a orientação da social-democracia, já que a esquerda radical não pode vencer nem atrair a esquerda em sua totalidade… Foi o que o novo primeiro-ministro do Reino Unido [Keir Starmer] fez para conquistar o poder: ele conseguiu se dirigir ao seu próprio partido, se livrou dos que estavam na esquerda com posições muito radicais, tranquilizou o eleitorado centrista e apresentou um programa que pudesse convencê-los”.
Hollande e seus colegas fazem regularmente esse tipo de declarações, atacando a França Insubmissa e também a liderança do Partido Socialista por se aliar a eles. Um ponto de particular disputa para os hollandeístas foi o fato de que, após o resultado fragmentado das eleições, Macron aparentemente estava considerando Bernard Cazeneuve, uma figura da facção de Hollande, como primeiro-ministro, possivelmente como parte de uma ampla coalizão “centrista” ou de “unidade nacional.” David Assouline, membro do órgão executivo nacional do partido, ficou furioso com seus colegas por se recusarem a concordar por escrito de que eles não iriam, por princípio, em não bloquear a nomeação de Cazeneuve.
Para a facção pró-Faure, isso era claramente uma armadilha. Sarah Kerrich-Bernard, secretária nacional do partido, disse ao Jacobin:
Não é que nós não apoiemos Bernard Cazeneuve; o que nós dissemos é que o que importa é o projeto. Cazeneuve foi o único político na esquerda que não apoiou a NFP. Em todo caso, Olivier Faure não disse que não apoiava Cazeneuve; ele disse que, se Cazeneuve estivesse disposto a defender a NFP com certas medidas simbólicas — por exemplo, o cancelamento da reforma da previdência, que foi imposta por Emmanuel Macron no ano passado —, nós o apoiaríamos…
Cazeneuve encontrou Macron e deixou claro que ele queria revogar parcialmente a reforma da previdência, e ele foi imediatamente descartado. Então, Macron estava jogando conosco ao tentar nos fazer acreditar que ele poderia nomear um primeiro-ministro vindo da esquerda, mas desde julho ele tinha Michel Barnier em mente. Macron pensa que a França está à direita e, portanto, deve se aliar com a direita. Isso foi de má fé, uma armadilha para nos dividir.
Kerrich-Bernard acrescentou que os ataques de seus “adversários internos” eram de “má fé” e que continuam insistindo nessa linha “porque, quando você fala coisas ruins do seu próprio partido, isso se repercute e cria um burbúrio”. Uma das demandas da fração hollandeísta é um novo congresso partidário em que os membros votariam sobre a adoção de uma nova linha e liderança. Kerrich-Bernard acredita que, mesmo nesse caso, sua fração permaneceria no controle: “Eles [Hollande e aliados] têm muito mais base entre a liderança do que entre os ativistas do partido”.
Os fauristas e a França Insubmissa concordam sobre o retorno indesejável à proeminência da facção hollandeísta. Oziol disse ao Jacobin:
Isso já é muito antigo: foi a batalha entre François Hollande e Jean-Luc Mélenchon de 2012 a 2017. Temos o retorno de Hollande, que foi praticamente expulso do cargo e que não conseguiu se candidatar novamente em 2017, levando a Macron… e ao caos político que temos agora. Este não é o tipo de renascimento que se esperaria.
Na França Insubmissa, nós temos lutado por um programa de ruptura, basicamente rompendo com [o neoliberalismo], o capitalismo e a extrema-direita. Estamos propondo uma alternativa para medidas sociais, ecológicas e democráticas, como a mudança da constituição. Nós temos insistido nesse programa porque sabíamos que o risco era esse tipo de batalha sobre a linha política.
No Partido Socialista, Kerrich-Bernard quer manter a aliança de esquerda unida. Ela duvida da sabedoria dos conselhos de Hollande:
Hoje, a NFP é a principal força política de esquerda na França e o PS deve permanecer nela… Não devemos voltar à linha de François Hollande, que é neoliberal e excessivamente aberta ao mercado… François Hollande ou Raphaël Glucksmann não passarão do primeiro turno [das eleições presidenciais de 2027], porque eles não estão suficientemente à esquerda: eles são muito centristas. Os eleitores de esquerda querem votar na esquerda, não no centro, e os eleitores centristas votarão no candidato macronista; eles não votarão em Hollande ou Glucksmann.
No entanto, alguns socialistas estão totalmente em desacordo com ela sobre isso. Membros da fração de Hollande, como Jérôme Guedj (que se recusou a se juntar à NFP) e Arthur Delaporte, recentemente têm sinalizado que não votarão no texto da França Insubmissa que propõe retornar a idade de aposentadoria para sessenta anos.
No que diz respeito à fração pró-Faure, a estratégia é clara: lançar um candidato comum da NFP que seja suficientemente de esquerda para passar do primeiro turno das eleições presidenciais de 2027, mas moderado o bastante para atrair eleitores centristas no segundo turno. Hollande discordou, apontando para Benoît Hamon, que fez uma campanha presidencial socialista mais à esquerda em 2017 e obteve apenas 6% dos votos. O ex-presidente disse à Jacobin: “O PS deve ser a primeira força na esquerda e manter seu pensamento independente… a fim de impor uma coerência e uma coesão que atualmente estão faltando. Cada vez que nos colocamos sob a influência da extrema-esquerda, não conseguimos convencer as pessoas”.
O desafio de 2027
A França Insubmissa insiste, em sua própria maneira, em ir além da coalizão NFP. Os economistas Bruno Amable e Stefano Palombarini argumentam que a política francesa está estruturada pelo conflito entre os três blocos sociais que estão politicamente representados pelo NFP, o bloco macronista, gaullinista e a extrema-direita. A abordagem da França Insubmissa é especificada em um texto que adapta essa análise para argumentar que o único modo da esquerda reunir a coalizão de que precisa é ativar os membros do “quarto bloco”, ou seja, os abstencionistas que ainda não escolheram aderir a um dos outros três.
Pesquisas mostram que os valores sociais e os interesses materiais desse grupo está relativamente mais próximo dos eleitores do bloco de esquerda – e a França Insubmissa argumenta que eles só podem ser ativados por meio de uma mensagem consistente de ruptura com o sistema político do qual eles se afastaram e com o sistema econômico que se sentem decepcionados. A união da esquerda é necessária para acrescentar credibilidade e números à coalizão em favor dessa ruptura.
Oziol afirmou ao Jacobin:
Se [os socialistas] decidirem se afastar do acordo, então precisam dizer isso claramente e explicar por que estão fazendo isso, e isso significaria que não existirá um candidato conjunto na próxima eleição. Por exemplo, Raphaël Glucksmann, com seu partido Place Publique, tem sido muito claro ao dizer que não quer mais uma aliança com a França Insubmissa. Nós apontamos isso toda vez que o PS se afasta do acordo, porque isso é a dissolução do que acordamos [em junho].
Perguntado se a NFP poderia sobreviver, Hollande concordou com a especulação de Oziol de que poderiam existir mais de um candidato em 2027: “Se houvesse eleições legislativas amanhã, sim, seria necessário reconstituí-la [a aliança], talvez com um equilíbrio de poder diferente. Mas se fosse uma eleição presidencial, haveria dois candidatos, um da esquerda reformista e outro da esquerda radical”.
Dois candidatos não necessariamente significariam uma ruptura final na NFP. Os “Elefantes” do Partido Socialista nunca apoiaram a antiga aliança NUPES em 2022 e vários deles concorreram como dissidentes contra a NFP em 2024. Resta saber como a esquerda moderada, representada pelos fauristas, os Verdes e o comunistas (Partido Comunista Francês – PCF), reagiria se ocorresse uma cisão.
O líder do PCF, Fabien Roussel, disse que não entraria em outra eleição aliado à França Insubmissa, alegando que, se não tivesse aderido à NFP, teria mantido seu assento desta vez. Sua parcela de votos aumentou acentuadamente entre 2017 e 2022, quando se juntou ao NUPES, enquanto em 2024 caiu 3%. No entanto, mesmo se ele tivesse mantido sua quantidade de votos anterior, ele ainda teria sido derrotado pela onde de apoio à extrema-direita, que o viu eliminado no primeiro turno – tornando seu contrafactural implausível.
Em 2022, se autodenominando de “o comunista que ousa dizer não a Jean-Luc Mélenchon”, Roussel concorreu à presidência ao invés de apoiar Mélenchon, assim como o PCF tinha feito em 2012 e 2017. Embora tenha conseguido apenas 2,3% dos votos, a votação combinada entre a França Insubmissa e o PCF teria colocado Mélenchon à frente de Le Pen no segundo turno.
Kerrich-Bernard disse que a fração pró-NFP do Partido Socialista quer que o candidato conjunto seja escolhido em uma primária da esquerda “conduzida com máxima transparência possível”, mas enfatizou que “Mélenchon não pode ser o candidato.” Manuel Bompard, da França Insubmissa, tem criticado as primárias como divisivas e insistiu que uma primária da esquerda que dita quem pode ou não participar “não é séria”. Quando perguntada se era apenas Mélenchon a quem se opunham ou algum candidato potencial da França Insubmissa, Kerrich-Bernard disse que “o ponto de equilíbrio” poderia ser encontrado em François Ruffin ou Clémentine Autain “e outros”.
Ruffin e Autain são ex-parlamentares europeus da França Insubmissa, mas se separaram durante a campanha eleitoral legislativa desse ano, depois que surgiram notícias de que eles tinham planejado uma nova formação e dois de seus colaboradores foram expulsos da França Insubmissa. A relação entre a França Insubmissa e Russin, em particular, explodiram desde sua saída e muitos de seus membros de base estaria infelizes sendo perguntados sobre o retorno de Ruffin.
Parte dos motivos para as alianças instáveis na esquerda está no próprio sistema eleitoral. Nas eleições legislativas, que dependem de chegar em primeiro lugar nos distritos locais, os partidos de esquerda não têm chance se não estiverem unidos – o que demanda pactos como a NUPES e a NFP. Já nas eleições presidenciais, os líderes de cada partido, acima de tudo, objetivam derrotar uns aos outros para se tornarem o candidato com a necessária “dinâmica” para se tornarem o voto tático e tirar o apoio dos demais.
Embora antes da última eleição presidencial de 2022, houve uma tentativa de forçar uma prévia entre os partidos de esquerda, mas ela fracassou. Em vez disso, cada partido apresentou candidatos rivais, com os Verdes, o PCF e os Socialistas tendo votações muito baixas, enquanto Mélenchon alcançou 22%. Ainda assim, mesmo que a NFP se desfaça, não existe garantia de que todos os partidos sigam caminhos separados e agora circulam rumores sobre uma possível aliança entre a França Insubmissa e os Verdes para as eleições municipais em 2026. Em um momento de intensa instabilidade, os acontecimentos podem mudar completamente o cenário, desfazer ou recriar alianças de várias maneiras. No entanto, o incentivo para a unidade a partir da perspectiva de cada partido na esquerda é fraca.
Essa instabilidade pode ter efeitos imediatos. O governo Barnier enfrenta dificuldades para aprovar seu orçamento de austeridade [em 4 de dezembro, esse governo foi destituído] e Le Pen considera colapsar o governo. Nesse contexto, as diferenças entre os dois polos principais da esquerda — o Partido Socialista e a França Insubmissa — ficam mais evidentes que nunca.
Mélenchon quer destituir o presidente Macron, argumentando que “o impeachment de Macron é uma necessidade” e que essa é “a única maneira de devolver o poder ao eleitorado e resolver a crise política que o presidente criou [ao convocar eleições antecipadas em junho]”. Já Hollande insiste que não deve haver uma eleição presidencial para não assustar os mercados e quer encontrar um primeiro-ministro que possa formar uma maioria. Isso abre espaço para que o Partido Socialista apoie o bloco de Macron em um renascimento de algo semelhante à proposta de Cazeneuve feita anteriormente.
Apesar de ocasionalmente falarem sobre unidade, a luta pelo poder na esquerda continua firme. A próxima eleição presidencial oferece a oportunidade perfeita para os partidos menores tentarem melhorar sua posição. Eles já estão disputando posições, prontos para quando esse momento chegar.
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