Pular para o conteúdo
Colunas

Por que eles odeiam as cotas raciais?

Danillo Santana/Bancada Feminista do PSOL

Letícia Lé

Letícia Lé é militante do movimento de juventude Afronte!, advogada formada na primeira turma de cotistas da Faculdade de Direito da USP e covereadora em São Paulo-SP pela Bancada Feminista do PSOL

Recentemente, tomou conta das redes sociais e dos jornais um caso emblemático: estudantes da PUC – São Paulo, em meio aos Jogos Jurídicos, espaço de disputa esportiva entre as Faculdades de Direito, proferiram gritos contra os estudantes negros da USP, chamando-os de “pobres” e “cotistas” em forma de ofensa. Ou seja, para estes estudantes da PUC – São Paulo, adentrar a Universidade por meio de políticas afirmativas seria motivo de demérito, tornando os estudantes negros que ali estavam presentes inferiores ao resto.

As políticas de cotas raciais configuram-se como instrumentos fundamentais para a promoção da igualdade substantiva e da justiça social em sociedades marcadas por um legado histórico de discriminação e racismo.

As políticas de cotas raciais configuram-se como instrumentos fundamentais para a promoção da igualdade substantiva e da justiça social em sociedades marcadas por um legado histórico de discriminação e racismo. No Brasil, sua implementação vem sendo justificada pela necessidade de enfrentar desigualdades estruturais que, apesar da abolição formal da escravidão em 1888, persistem até os dias atuais, tornando o acesso à universidade um dos degraus de mais difícil alcance para pessoas negras.

Uma breve análise histórica e da atualidade nos permite compreender a necessidade das cotas raciais. Como explica Florestan Fernandes (1978), a transição para o trabalho assalariado no pós-abolição não incluiu os negros em condições de igualdade, o que perpetuou sua exclusão econômica e social. Clóvis Moura (1977) também nos explica que a partir do final formal da escravidão, o negro é colocado em um lugar de marginalidade que é, sobretudo, simbólica – e que se mantém até os dias atuais. A ausência de políticas públicas efetivas consolida um cenário de desigualdades raciais profundas.

Estudos recentes corroboram essa análise. Segundo o IBGE (2023), negros e pardos representam cerca de 56% da população brasileira, mas continuam sendo maioria entre os mais pobres e minoria nos espaços de poder, como universidades e cargos de alta remuneração. A exclusão histórica privou e priva, até hoje, grupos marginalizados de condições equitativas para desenvolver suas potencialidades. Essa disparidade evidencia o caráter estrutural das desigualdades raciais no Brasil – e a necessidade de políticas públicas que combatam esta desigualdade estrutural.

É neste contexto de profunda desigualdade e racismo que são implementadas as cotas étnico-raciais no Brasil. Resultado de uma longa luta dos movimentos negros por um reconhecimento institucional da necessidade de políticas públicas que promovam a igualdade substantiva e fundamentada em princípios constitucionais de justiça e reparação. Kabengele Munanga (2019) ressalta que a política de cotas no Brasil não se limita a reparar o passado, mas visa também a transformação do presente. Ele defende que, ao garantir o ingresso de estudantes negros e indígenas nas universidades, as cotas criam condições para que esses grupos ocupem espaços de decisão e tenham uma voz ativa na sociedade.

Há um outro aspecto igualmente importante quando se fala deste tema. A implementação da política de cotas mudou a fotografia da USP e de muitas outras universidades do país. Por anos, aqueles que são a base da sociedade foram impedidos de frequentar os espaços públicos devido a diversas barreiras socialmente impostas e, se hoje conseguem ultrapassar estas barreiras graças à política de cotas, é este um dos motivos de incômodo daqueles que desejam manter os seus privilégios históricos. A necessidade de manutenção de privilégios a despeito das desigualdades que formam o que é o Brasil hoje é, sem dúvida, um dos aspectos mais racistas daqueles que se colocam contra as cotas raciais.

Estudos empíricos demonstram o impacto positivo das cotas raciais em reduzir desigualdades educacionais e ampliar o acesso de negros a posições de destaque. Pesquisa realizada por Ribeiro e Schlegel (2019) aponta que a adoção das cotas nas universidades federais brasileiras aumentou em 45% a presença de estudantes negros nos cursos de maior prestígio, como medicina e direito, entre 2012 e 2018. Em 2018, aliás, ingressou a primeira turma de cotistas da Universidade de São Paulo (USP).

Além disso, Francis e Tannuri-Pianto (2012) também mostram que o desempenho acadêmico dos cotistas é comparável – quando não superior – ao de não cotistas, refutando argumentos de que as cotas comprometem a qualidade do ensino. Afinal, foi apenas após a implementação de cotas étnico-raciais que a USP adentrou, pela primeira vez, o ranking de 100 melhores Universidades do mundo. Como destaca Munanga (2004), a presença de cotistas no ambiente universitário promove a convivência com a diversidade e desmistifica estereótipos, contribuindo para a desconstrução do racismo.

É lamentável que, enquanto parte dos estudantes universitários estejam lutando para ampliar a política de cotas, através da implementação de cotas para pessoas trans, outros entendam que ser “cotista” é, de algum modo, uma ofensa e um demérito.

As cotas raciais são, portanto, uma resposta necessária e bem-sucedida às desigualdades históricas e estruturais do Brasil. É lamentável que, enquanto parte dos estudantes universitários estejam lutando para ampliar a política de cotas, através da implementação de cotas para pessoas trans, outros entendam que ser “cotista” é, de algum modo, uma ofensa e um demérito. Isso mostra que o racismo nas Universidades ainda é latente e que, portanto, a política de cotas é ainda mais necessária. É necessária a ampliação, o aprimoramento e acompanhamento dessa política, para que não só os estudantes negros entrem nas Universidades, mas que nela tenham plenas condições de permanecer.

O caso ocorrido nos Jogos Jurídicos foi denunciado pela Bancada Feminista do PSOL ao Ministério Público, em representação que não só pede que os estudantes sejam investigados e processados pelo crime de racismo, mas também que a PUC – São Paulo se responsabilize pelo que aconteceu, tendo sido solicitado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

É importante lembrar, por fim, que estes ataques ocorrem às vésperas do 20 de novembro – Dia da Consciência Negra, celebrado como feriado nacional pela primeira vez neste ano de 2024. É dito no movimento negro que “por menos que conte a história, não te esqueço meu povo, se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”. E é coletivamente que essa resistência é construída.

Em ambas as universidades, os estudantes negros estão organizados contra os ataques racistas. Coletivos negros e de bolsistas, como o Coletivo Saravá, Coletivo Da Ponte pra Cá e Coletivo Quilombo Oxê, postaram notas de repúdio ao ocorrido em suas redes sociais, falando sobre a importância de combater a hegemonia histórica construída pela branquitude e que se reproduz até hoje e expondo que a PUC – São Paulo, embora tenha mecanismos de denúncia, raramente há algum retorno ou acompanhamento aos casos, e que o sentimento dos estudantes negros hoje é de que não há compromisso por parte da instituição às denúncias contra o racismo de seus alunos. A auto-organização de negros e negras aponta o caminho da mudança, sem ela não haverá um combate efetivo ao racismo.