Com esse breve texto pretendemos contribuir para a agenda da esquerda brasileira, que precisa pautar a questão das Emendas Parlamentares como um problema grave a ser enfrentado. Muitas vezes observamos certa adesão acrítica da esquerda às emendas, bem como concessões pragmáticas a elas buscando compensar a falta crônica de recursos para políticas públicas de forma pontual. Sabemos da correlação de forças desfavorável à extinção desse mecanismo no parlamento brasileiro, mas defendemos que as emendas parlamentares sequer deveriam existir, já que o legislativo tem as funções precípuas de definir o orçamento brasileiro (o ciclo orçamentário com suas leis) e controlar sua prestação de contas, após análise dos tribunais de contas. Esse mecanismo, de viés nitidamente clientelista e patrimonialista, promove a confusão entre os poderes, a chantagem política permanente nessa relação, e se constitui – muitas vezes – em uma gambiarra de recursos para fins não-públicos. Então, vejamos.
Observando os resultados das eleições nos 5.570 municípios brasileiros em 2024, disponíveis no portal de resultados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)1, notamos que elas foram, indiscutivelmente, desafiadoras para a esquerda brasileira, quando seus principais partidos políticos saíram derrotados das urnas. Ao todo, a esquerda elegeu-se em apenas 735 municípios, número que representa pouco mais de 13% do total de municípios brasileiros.
O partido, considerado de espectro político de esquerda, que mais elegeu prefeituras foi o Partido Socialista Brasileiro (PSB), totalizando 309 prefeituras, concentradas nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul. O histórico Partido dos Trabalhadores (PT), partido do atual presidente da república, Lula da Silva, elegeu-se em apenas 252 prefeituras, concentrando-se no Nordeste.
Ficando em terceiro lugar, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), elegeu-se em 151 prefeituras, sem concentração expressiva em nenhuma região, embora, observarmos uma presença maior nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste. Em terceiro lugar, está o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), elegendo-se em 19 municípios, em sua quase totalidade, concentradas também na região Nordeste. Por fim, o último partido de esquerda a eleger-se em prefeituras nas eleições desse ano foi o Rede Sustentabilidade (REDE), ganhando em apenas 4 prefeituras, distribuídas nas Regiões Nordeste, Norte e Sudeste. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) não conseguiu eleger-se em nenhuma prefeitura, apesar da disputa acirrada na maior cidade brasileira, São Paulo, travada pelo deputado federal Guilherme Boulos, no segundo turno.
Se, por um lado, a esquerda enfrentou dificuldades para eleger seus representantes políticos nas prefeituras, conforme os resultados acima, por outro, não se observou o mesmo quando analisamos os principais partidos de espectro de direita, sejam eles mais de centro- direita ou mais alinhados à radicalidade e ao conservadorismo, ou seja, do campo da extrema- direita.
O grande vencedor das eleições municipais de 2024 foi o Partido Social Democrático (PSD). O partido em questão, liderado por Gilberto Kassab, elegeu-se em 887 prefeituras. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), seguiu em segundo lugar, elegendo-se em 854 prefeituras. O Progressistas (PP), levou 747 prefeituras, enquanto o União Brasil (UNIÃO), elegeu-se em 584. O Partido Liberal (PL), que abriga o ex-presidente da república, Jair Bolsonaro, onde se localiza, portanto, parte expressiva da extrema direita, ainda que não exclusivamente, elegeu-se em 516 municípios. O Republicanos (PRB) levou 435 prefeituras e, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), elegeu-se em 274. Totalizando, estes 7 partidos, acumularam 4.297 prefeituras eleitas, representando em torno de 78% do total. Não coincidentemente, são estes os partidos que integram majoritariamente o fenômeno político suprapartidário conhecido por “centrão”, atualmente, o bloco de partidos mais influente no Congresso Nacional desde a redemocratização, agregando mais de 300 parlamentares, grupo, portanto, que desempenha papel crucial na formação de maiorias parlamentares e no processo de pactuação – marcado por fortes chantagens – com o Executivo.
O resultado alcançado pelo centrão é expressivo. Muitos analistas analisam e afirmam que a ideologia da direita brasileira, incluindo centro-direita e extrema-direita, está consolidada de norte a sul do país, o que corrobora a caracterização de que estamos em meio a uma situação reacionária no Brasil e alhures. As recentes vitórias de Javier Milei, na Argentina, e nas últimas
semanas, de Donald Trump, nos EUA, são dois indicadores muito importantes da condição geral da luta de classes. Porém, queremos ressaltar nessa análise aspectos que remetem à tradicional e velha estratégia política brasileira, do toma lá da cá com o dinheiro público, mecanismo bastante utilizado pelo próprio centrão, especialmente neste processo eleitoral de 2024.
É nesse sentido que apontamos a relação entre a consolidação da direita nas eleições municipais de 2024, com o aprofundamento do uso de um instrumento político, em evidência nos últimos anos: as Emendas Parlamentares. Afinal, o que um instrumento utilizado pelo Congresso Nacional no processo de elaboração orçamentária anual, conforme preveem legalmente os artigos 165, 166 e 198 da Constituição Federal de 1988, teria a ver com o expressivo resultado da direita nas eleições municipais de 2024?
Vimos monitorando e analisando, desde o ano de 2021, no Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS/UERJ), que as Emendas Parlamentares não só desempenharam e vem desempenhando um papel fundamental na (des)estabilização da tensa relação entre o Poder Executivo e o Legislativo, crise que se aprofunda cada mais vez mais na atualidade, envolvendo as instituições que compõem a democracia liberal representativa. Contudo, agora em 2024, elas se transformaram no maior e mais exitoso cabo eleitoral das eleições municipais, irrigando as candidaturas daqueles/as prefeitos/as que compõem os partidos do centrão.
Para tamanho impacto, as Emendas Parlamentarem passaram por uma profunda transformação ao longo da última década, com alterações não só na sua natureza e função no ciclo orçamentário. Sobretudo, aumentou significativamente o número de emendas aprovadas e, portanto, os recursos alocados por meio delas foram turbinados, contraditoriamente, num período marcado pelo acirramento do ajuste fiscal sobre as despesas primárias, sobretudo, aquelas relacionadas aos direitos sociais. Nesse exato momento, estamos acompanhando mais um passo na restrição das contas primárias do Governo Federal, para a implementação e sustentabilidade do Novo Arcabouço Fiscal (NAF)2, e que pouco ou nada toca na lógica das Emendas Parlamentares. Mas façamos um breve percurso histórico para entender este mecanismo que literalmente confunde o papel dos poderes da República, atribuindo ao legislativo ares de executivo nos vários níveis federativos.
Tal processo se inicia com a aprovação da Emenda Constitucional N. 86/2015, que alterou os artigos 165, 166 e 198 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 2015), conhecida como a PEC do Orçamento Impositivo, a qual não teria sido aprovada sem a atuação e esforço político do Ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), em 2015. Esta Emenda Constitucional, tornou as Emendas Individuais, apresentadas por deputados/as e senadores/as impositivas, no limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, condicionando, ainda, a destinação de metade deste percentual para as ações e serviços públicos de saúde. Tal feito, não podemos esquecer, foi alcançado no bojo da crise econômica e política brasileira, na qual se esgotou a conciliação entre o bloco mdbista e o petista, expresso nos conflitos entre Eduardo Cunha e a presidenta Dilma Rousseff (PT), que sofreria o impeachment meses depois, o que foi na verdade, um golpe de Estado de novo tipo, segundo Felipe Demier3.
Desde 2015, as Emendas Parlamentares saíram da lógica autorizativa, modelo que rege todo o orçamento público brasileiro, e se tornaram impositivas. Além disso, a Emenda Constitucional N. 105/2019, que acrescentou o artigo 166-A à Constituição Federal de 1988, aprovado pelo Congresso Nacional, na época presidido pelo Deputado Federal Rodrigo Maia (PSDB), também alterou a forma como ocorre a transferência dos recursos das Emendas Individuais, criando aquilo que se convencionou chamar de Emenda PIX, modalidade de transferência especial em que os recursos das Emendas Parlamentares caem diretamente nas contas de Estados e Municípios, sem que ocorra a formalização de convênios com o governo federal (Brasil, 2019).
Em 2019, foi a vez da impositividade avançar para as Emendas de Bancada, que são propostas coletivas das bancadas estaduais ou do Distrito Federal, cujos recursos aprovados são divididos entre os/as parlamentares que as compõem. A Emenda Constitucional N. 100/2019, alterou os artigos 165 e 166 da Constituição Federal e estabeleceu que o valor destinado a essas Emendas não pode exceder 1% da Receita Corrente Líquida (RCL) realizada no exercício anterior (Brasil, 2019). Dessa vez, o esforço político para aprovação dessa emenda veio, inicialmente de seu autor, o Senador Davi Alcolumbre (UNIÃO), na época presidente do Senado Federal e, sobretudo, do presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP) que, naquela altura do campeonato, já se constituía como principal líder do Centrão e, arquiteto principal do que ficou conhecido como “orçamento secreto”. Este fato fez dele um sujeito poderoso junto ao governo federal, constituindo uma relação de profundo apoio e, ao mesmo tempo, dependência, no então governo Bolsonaro.
O orçamento secreto, nome popular atribuído às Emendas do Relator (RP9), foi criado em 2020 pelo Congresso Nacional e, posteriormente, regulamentado pela Resolução N.º 02/2021. Dentre suas diversas questões problemáticas, estava o fato delas omitirem a autoria dos/as parlamentares favorecidos/as, além da motivação pela qual se decide por cada uma das propostas e destino dos recursos. O Relator geral do orçamento desempenhava um papel central nesse tipo de emenda. Durante a vigência do orçamento secreto, nos anos de 2020, 2021 e 2022, foram relatores do orçamento, respectivamente, o Deputado Federal Domingos Neto (PSD), o Senador Márcio Bittar (MDB) e o Deputado Federal Hugo Leal (PSD). Todos integravam os partidos que compunham o “centrão”, o que significa que o orçamento secreto sempre esteve sob controle deste bloco político.
Em razão dessas peculiaridades e distorções, as Emendas do Relator tornaram-se inconstitucionais no final de 2022, durante julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) Ns. 850, 851, 854 e 1014. Na época, a relatora do caso, Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), alegou falta de transparência desse tipo de emenda e, portanto, a incompatibilidade com os princípios constitucionais. A decisão, aprofundou a crise entre o Congresso Federal e o STF, mas não obteve êxito no que se refere a barrar as Emendas Parlamentares, já que, ainda em 2022, o Congresso Nacional forjou uma medida de manobra na tramitação da PEC da Transição. Ao ser aprovada, originando a Emenda Constitucional N. 126/2022, autorizou a transferência de parte dos recursos represados nas Emendas do Relator para as Emendas Individuais, por meio do aumento da alíquota de 1,2% para 2% da Receita Corrente Líquida (RCL). Ou seja, aumentaram a fatia de que dispõem no orçamento público federal.
Assim, as Emendas Parlamentares seguiram e seguem na vigência do governo Lula 3, agora, com impositividade já na ordem de 3% da Receita Corrente Líquida (RCL), sendo limitadas a 2% das emendas individuais e 1% das emendas de bancada. Mais recentemente, em agosto de 2024, o Ministro do STF, Flávio Dino, determinou a suspensão das emendas impositivas e das Emendas PIX, decisão mantida por unanimidade em julgamento no STF, abrindo uma nova etapa na crise entre Congresso e STF, cuja mediação vem sendo realizada pelo próprio presidente Lula da Silva.
Com essa breve recuperação histórica, evidencia-se que desde 2023, o centrão vem dispondo de 3% da Receita Corrente Líquida (RCL), prevista no projeto de orçamento do governo federal, o que significa muito, considerando que no mesmo período, apenas 8% dos recursos do orçamento são de natureza discricionária, ou seja, despesas não obrigatórias. Como o governo federal é obrigado a cumprir as emendas impositivas, os/as deputados/as e senadores/as executam as emendas parlamentares diretamente em obras e projetos nos diversos estados e municípios, alimentando suas bases eleitorais, e atendendo, portanto, seus interesses específicos. Enquanto isso os investimentos em políticas públicas fundamentais são espremidos pelo ajuste fiscal.
Os dados4 revelam essa engenharia política operada, sobretudo, pelo centrão. Em 2023, as Emendas Parlamentares movimentaram o montante de R$ 36,27 bilhões, do qual, R$ 23,33 bilhões foram de Emendas Individuais e, desse último montante, R$ 9,26 bilhões foram por meio da transferência especial, ou seja, transferidos diretamente para as contas dos estados e municípios por meio da Emenda PIX. Até o presente momento, em 2024, as Emendas Parlamentares movimentaram o montante de R$ 31,04 bilhões, do qual, R$ 16,3 bilhões foram de Emendas Individuais e, desse último montante, R$ 4,53 bilhões foram por meio da Emenda PIX.
Somando 2023 e 2024, as Emendas Parlamentares movimentaram R$ 67,31 bilhões, sendo R$ 39,72 bilhões de Emendas Individuais e, deste último montante, 13,8 bilhões movimentados por meio da Emenda PIX.
Se projetássemos um gráfico em pizza do orçamento das Emendas Parlamentares relativo aos anos de 2023 e 2024, visualizaríamos que, no ranking dos 8 partidos com maiores percentuais de participação no total das Emendas Parlamentares Individuais, 7 posições são ocupadas, não coincidentemente, por aqueles partidos que se elegeram em 4.297 prefeituras nas eleições de 2024: PL, com 8%; PSD, com 6%; MDB, com 6%; PP, com 6%; UNIÃO, com 5%; PRB, com 4%; e, PSDB, com 3%. Os 7 partidos que conformam o centrão, capturaram nos anos de 2023 e 2024, portanto, 32% do total das Emendas Individuais, o que representa mais de R$ 25,3 bilhões. Isso nos leva, sem sombra de dúvidas, a afirmar que as Emendas Parlamentares, sobretudo as Emendas PIX, foram o maior e mais exitoso cabo eleitoral das eleições municipais, irrigando as candidaturas daqueles/as prefeitos/as que compõem os partidos do centrão eleitos em 78% dos municípios brasileiros.
Cabe mencionar, numa outra dimensão mais profunda da particularidade brasileira, os diversos casos de corrupção que atravessaram essa relação nesse período, envolvendo deputados, senadores, ministérios, prefeitos e empresas públicas e privadas. Dentre os mais absurdos, para mencionar, estão a compra superfaturada de tratores e máquinas; aumento inexplicado da compra e distribuição de caminhões de lixos em diversas cidades do interior; licitações bilionárias para compra de ônibus escolares; compras de inúmeras ambulâncias destinadas a estados; manipulação de dados relativos aos atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) para alocação de recursos, e mais recentemente um caso analisado pela CGU, de repasse de mais de R$500 milhões para organizações da sociedade civil5.
São casos concretos que demonstram notórias distorções na distribuição de recursos públicos por meio desse mecanismo, que se tornou uma gambiarra de recursos públicos para fins privados também ilícitos. Além disso, contraditoriamente, o Congresso Nacional avança ampliando sua influência sobre a alocação e execução do orçamento público, ao passo em que vem aprovando regimes fiscais extremamente rígidos e que penalizam a classe trabalhadora e a população mais empobrecida do país, a exemplo do Novo Regime Fiscal de 2016, aprovado pela Emenda Constitucional N. 95/2016, substituído recentemente pelo Novo Arcabouço Fiscal do governo Lula 3, instituído por meio da Lei Complementar N. 2000/2023.
Até aqui, nos resta questionar não somente até que ponto o Congresso Nacional, especificamente, o centrão vai avançar abocanhando os parcos recursos públicos disponíveis para investimentos sociais e estratégicos, mas sobretudo, até que ponto a esquerda brasileira se ausentará de realizar o debate coletivo e crítico desse grande absurdo e escândalo que são as Emendas Parlamentares.
Aliás, seria essa ausência um sinal de que um segmento da própria esquerda também tem interesse na manutenção das Emendas Parlamentares? O que nos diz, por exemplo, o fato de o PT, partido do atual presidente da república, também ter capturado 7% do total das Emendas Individuais em 2023 e 2024, colocando-o em 2º lugar no ranking dos 8 partidos com maiores percentuais de participação, ao mesmo tempo em que prepara, nos bastidores entre o Palácio do Planalto e os Ministérios do governo, mais um temido pacote de ajuste fiscal?
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