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Colunas

Relato 32: “Comunidade terapêutica não é lugar de adolescente”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Rodrigo Azambuja Martins

A discussão sobre a não internação de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas existe há muito tempo, desde quando se regulamentou o acolhimento de adultos e todas as críticas que esse modelo de “atenção” das pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas acarretam. Elas reintroduzem um modelo manicomial de atendimento a pessoas com questões de saúde mental e que por isso não poderiam ser admitidos. Há uma disputa muito acentuada a respeito da própria eficácia desse modelo baseado na abstinência, que contrasta com o fato da vida que é a existência e circulação da droga nas sociedades. Por isso, muita gente defende que o modelo de atenção para pessoas que fazem uso prejudicial é aprender a conviver com a circunstância em liberdade e aplicando toda a teoria da redução de danos.

Especificamente das crianças e adolescentes, em 2020, o governo Bolsonaro regulamentou essa modalidade de atendimento para meninos e meninas que tivessem questões relacionadas ao uso abusivo e álcool e outras drogas. Essa foi uma resolução questionada na justiça, porque tivemos a impressão que essa matéria não poderia ser um decisão exclusivamente do Conselho Nacional sobre Drogas (CONAD). A Constituição, no artigo 227, estabelece uma corresponsabilidade entre sociedade, estado e família em assegurar os direitos da criança e do adolescente e diz que essa atenção especial vai envolver a prevenção ao uso de álcool e outras drogas e a atenção aqueles que fazem uso abusivo. Porque as políticas públicas relacionadas a criança e ao adolescente também devem ser assegurados pela sociedade, vão ser deliberados por um órgão estatal que tem composição paritária, no caso nacional, é o CONANDA (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente). Esse órgão, exatamente por ter expertise na matéria e reconhecer que essa é uma fase muito peculiar da vida em que as pessoas estão se afirmando para construir sua vida adulta e construindo suas identidades, define que esse cuidado deve ser realizado em base cuidado.

Os efeitos da privação de liberdade para uma criança ou adolescente são muito graves, justamente por ele estar nesse momento. Então, a construção dessa identidade em um espaço total em que ele é afastado da família, da comunidade, onde tem reduzido contato com o mundo exterior, esse modelo é muito inadequado. Então o CONANDA sempre se posicionava contra, mas, ainda assim, o governo Bolsonaro resolveu regulamentar.

Nós da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, da Defensoria Pública da União e diversas outras Defensorias Estaduais questionamos esse modelo. Um modelo que não só não tem em conta essa situação peculiar do adolescente, mas também viola a forma que o Estatuto da Criança e Adolescente dispõe sobre a maneira de aplicação de medidas de proteção, que no caso do uso prejudicial de álcool e outras drogas, estão em situação de violação de direito por comportamento próprio.

O Estatuto prevê que deve ser aplicada medidas de proteção e essas medidas são providenciadas pelo Conselho Tutelar e, no caso de afastamento da família, assinadas e ratificadas por autoridade judicial. E o “acolhimento” em comunidade terapêutica subvertia toda essa lógica. Não havia sequer deflagração de processo para acompanhar esse afastamento da família e a reavaliação dessas medidas a cada três meses por autoridade judiciária, a elaboração de um plano individual de atendimento que constaria metas e ações a serem desenvolvidas exatamente para fazer a reintegração familiar. O afastamento da família é sempre excepcional, por ser o lugar do cuidado em que se desenvolvem vínculos em que o ser humano constrói seus projetos de vida.

A sentença reconheceu esse pedido, houve audiências, foram ouvidas várias pessoas, inclusive os técnicos do governo federal a época. Conseguimos demonstrar que esse modelo de atendimento é dotado de uma baixíssima fiscalização, que permitia diversas violações de direitos e acabavam sendo consumadas sempre com difícil reparação, porque os mecanismos de fiscalização são muito ruins e estamos falando de pessoas ainda em desenvolvimento que tem dificuldades naturais de acessar a justiça e acessar seus direitos. Se cometem algum ilícito contra um adulto, ele tem mais facilidade de buscar um advogado, um defensor público; um adolescente, pela questão etária, tem mais dificuldade de fazer isso, ainda precisa de apoio. Dessa maneira conseguimos anular essa decisão por força de sentença. Esse processo estava em grau recursal, o governo havia recorrido, mas nesse período houve mudança no governo e a gente conseguiu convencer o CONAD a revogar essa permissão e vamos começar um projeto de desinstitucionalização dos meninos que ainda se encontram nesses lugares.

Queremos que esses meninos e meninas tenham um projeto de vida de muita felicidade. Que tenham oportunidades, e que aprendam e consigam fazer boas escolhas e, portanto, queremos dar a atenção a saúde que eles merecem. Então, celebramos muito isso, realmente acredita que esse é um modelo inadequado.

Agora teremos que monitorar essa desinstitucionalização e lutar para que a Rede de Atenção Psicossocial seja financiada, que tenha equipes multidisciplinares para atender essa meninada e que façamos bons programas de prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Eu acho que a gente não consegue imaginar um mundo sem a presença de drogas, determinadas lícitas ou ilícitas pela discricionaridade de quem está no poder. Temos que aprender a lidar com esse fato e fazer boas escolhas. Esperamos reposicionar esses gastos para comunidades terapêuticas para atendimentos na Rede de Atenção Psicossocial ofertando cuidado comunitário.