Por Pedro Costa e Sara Figueiredo, de Brasília-DF
No dia 15 de julho, foi apresentado o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 322/2024, de autora dos Deputados Federais Ismael (PSD/SC) e Missionária Michele Collins (PP/PE). O referido PDL objetiva suspender “a aplicação da Resolução nº 249, de 10 de julho de 2024, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que proíbe o acolhimento de adolescentes com dependência do álcool e outras drogas em comunidades terapêuticas”.
Antes de refutar as colocações do referido PDL, é fundamental reforçar que, a despeito do que as CTs defendem – estando inclusive na Lei nº 13.840/2019 -, o que elas fazem é internação, e não acolhimento. E mais, elas fazem internação de caráter asilar-manicomial, afinal se pautam na/pela segregação das pessoas nelas internadas.
as CTs não só têm sido instituições manicomiais, mas também prisões, igrejas e senzalas
Como uma série de pesquisas vêm demonstrando, as CTs não só têm sido instituições manicomiais, mas também prisões, igrejas e senzalas. Elas não só segregam e manicomializam, como também se pautam na obrigatoriedade do trabalho forçado, não-pago, quando não análogo à escravidão, bem como na violência religiosa, sendo majoritariamente instituições religiosas.
Como supostas razões para a revogação da Resolução do CONANDA, os deputados apontam, em primeiro lugar que: o “CONANDA não possui o poder legal ou constitucional para estabelecer proibições”. Logo de cara, é preciso reafirmar o óbvio, que consta logo no início das considerações da Resolução nº 249 do CONANDA: “compete ao CONANDA elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 do ECA”. Ou seja, a disposição do CONANDA para a proibição de internação de crianças e adolescentes nas CTs, está dentro do rol de suas atribuições e competências legais.
Cabe ressaltar que o CONANDA é o principal órgão do Sistema de Garantia de Direitos e responsável por garantir a efetividade do ECA, sendo, portanto, o principal órgão de controle das políticas públicas infanto-juvenis. Segundo a Lei nº 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas, toda política pública infanto-juvenil deve passar pelo crivo e deliberação do CONANDA. Não ocorrendo, se trata de vício de competência.
Além disso, se o CONANDA não possuísse o poder legal ou constitucional para estabelecer proibições, o CONAD também não possuía quando autorizou a internação de crianças e adolescentes nas CTs na Resolução nº 3/2020. Portanto, a “argumentação” do PDL, mesmo que fosse válida, significaria a revogação da Resolução do CONAD, que permitia a internação de crianças e adolescentes em CT, com tais procedimentos voltando a ser proibidos.
Soma-se a isso a recente Resolução nº 249, de 10 de julho de 2024 do próprio CONAD, que suspende a sua Resolução anterior (nº 3/2020), dispondo também sobre a proibição da internação de crianças e adolescentes em CTs.
Não sendo o suficiente, a internação de crianças e adolescentes em CTs vai na contramão do que apregoa o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – ao contrário do que afirmam os deputados. Segundo consta no PDL, o motivo pelo qual o ECA supostamente autorizaria a internação em CTs seria o seguinte trecho: “IV – inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente”. Contudo, sabemos que as CTs, para além da retórica não são serviços ou programas comunitários. Pelo contrário, são pautadas na segregação, no isolamento, sendo instituições manicomiais. Logo, elas ferem o princípio legal da liberdade e convivência familiar/comunitária do ECA.
a internação em CTs não só desrespeita o ECA, mas também a Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, e até a Constituição Federal
E a internação em CTs não só desrespeita o ECA, mas também a Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, e até a Constituição Federal. Para uma análise mais detalhada sobre estes pontos, recomendamos a Nota do CFP e de 21 Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) contra a Resolução nº 3/2020 e, por conseguinte, contra a internação de crianças e adolescentes em CTs.
Também na contramão o que argumentam os deputados, existem decisões judiciais contrárias à antiga Resolução nº 3/2020, que autorizava a internação de crianças e adolescentes em CTs. Citamos como exemplo a decisão da 12ª Vara Federal de Pernambuco, que declarou ilegal a referida Resolução, em decisão numa Ação Civil Pública, 0813132-12.2021.4.05.8300, ajuizada pelas Defensorias Públicas da União e dos estados de Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso e Paraná. Citamos também que reitera o que é expresso na Lei nº 11.343/2006, ao evidenciar que a Resolução nº 3/2020 não passou pelo CONANDA, sendo que deveria ter sido deliberada por ela.
O último ponto de justificativa do PDL é o mais vexatório. De acordo com os deputados: “Segundo Eficácia e Reconhecimento do Modelo Comunidade Terapêutica: Estudos nacionais e internacionais comprovam a eficácia das comunidades terapêuticas no tratamento de dependentes de álcool e outras drogas”. Além de não mencionar quais estudos (nacionais e internacionais), muito menos os seus achados, os deputados negam as evidências científicas. Ao contrário do que eles dizem, a aposta nas CTs e seu modelo asilar-manicomial, segregatório, tem se dado à revelia das evidências. Temos estudos em larga escala de que demonstram o que são, verdadeiramente, as CTs: instituições de violência, novos-velhos manicômios, de caráter aprisionante e escravizante (ao ser pautado em trabalho não-pago, quando não análogo à escravidão). A título de introdução, sugerimos o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, produzido pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Ministério Público Federal.
Dessa forma, o referido PDL se trata de simples negação da realidade. Ele vai na contramão da ciência, da justiça, das normativas, da realidade. E mais, vai na contramão do bom senso, da humanidade.
Quem se preocupa de fato com a assistência de crianças e adolescentes com problemas associados ao consumo de drogas, deveria defender os Centros de Atenção Psicossocial infanto-juvenis (CAPSi), as Unidades de Acolhimento Infanto-juvenis (UAIs), entre outros serviços não-manicomiais, laicos e públicos. Quem defende os direitos de tais crianças deveria defender a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a Reforma Psiquiátrica e o Sistema Único de Saúde (SUS). A principal instituição que sintetiza e intensifica o conjunto de retrocessos à RAPS e ao SUS, caracterizados como Contrarreforma Psiquiátrica, se chama justamente Comunidade Terapêutica.
A partir do exposto, cabe a nós questionarmos: os deputados Ismael e Missionária Michele são realmente favoráveis à prisão e manicomialização de crianças e adolescentes? Por quê? A quem interessa a manicomialização de crianças e adolescentes?
Pelo fim das CTs!
Pelo fim de todos os manicômios!
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