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BRASIL

Crise carcerária no Brasil | Entrevista: Luís Carlos Valois, juiz da Execução penal de Manaus

Por: Ítalo Coelho, de Fortaleza

O juiz Luís Carlos Honório de Valois Coelho foi destaque nos noticiários que abriram o ano de 2017, quando o Brasil assistiu à rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, que acabou com a morte de 56 presos, muitos decapitados. A rebelião de Manaus deu início a uma onda de assassinatos em penitenciárias que já contabiliza 134 vítimas em 2017.

“A questão prisional já é a própria irresponsabilidade do Estado porque as prisões brasileiras estão todas fora do que estabelece a lei, sendo o caos e o descaso lugar comum nas prisões”.  Valois sabe do que está falando. Doutor em criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é também membro da Associação de Juízes para Democracia e porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition (Agentes da Lei Contra a Proibição) – LEAP, o magistrado é reconhecido pelo seu posicionamento progressista em defesa de direitos e garantias em particular da população carcerária e posição crítica à política de guerra às drogas. 

Leia a entrevista exclusiva cedida para o Portal Esquerda Online:

Esquerda Online: No dia do massacre, o senhor estava de férias, mas foi buscado em casa pelo próprio secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes. Como foi o seu papel na tentativa de negociação e qual a responsabilidade do Estado?

Luís Carlos Valois: Sim, eu cheguei já por volta das 22 horas na penitenciária e as negociações já estavam em andamento. Depois que cheguei não houve mais mortes. Ajudei na liberação dos reféns, pois havia ainda 10 funcionários sob a posse dos presos. Primeiro liberamos três pessoas, e por volta das quatro horas da madrugada, depois liberamos os outras sete pessoas às 7 horas da manhã, quando a rebelião acabou e polícia conseguiu entrar na unidade.

Sobre a responsabilidade do Estado é sempre responsabilidade do Estado a gerência de uma instituição pública, mas a questão prisional já é a própria irresponsabilidade do Estado porque as prisões brasileiras estão todas fora do que estabelece a lei, sendo o caos e o descaso lugar comum nas prisões.

Esquerda Online: Como funciona a influência das facções nas cadeias? O que pode ser feito em relação a isso?

Luís Carlos ValoisSobre a influência dessas denominadas facções, não posso dizer muito porque é questão de polícia. O que eu penso é que elas proliferam onde não há ingerência do Estado, na falta de poder nasce outro tipo de poder, e o Estado tem abandonado os corredores e pátios das penitenciárias. Fazer alguma coisa só pode passar pelo cumprimento da lei.

Esquerda Online: Disputa entre facções é um assunto que desperta curiosidade e afasta os olhos da sociedade para outros temas que precisam ser debatidos? Na última terça-feira, por exemplo, as redes sociais foram tomadas por um DVD com os “melhores momentos” de uma rebelião que esgotaram rapidamente nos camelôs. Na opinião do senhor, a quem interessa transformar tragédia em espetáculo?

Luís Carlos ValoisA sociedade toda está assim, movida pelo ódio e pelo sangue, não só de rebeliões, mas de linchamentos de uma forma geral, resultado da descrença, falta de expectativa política, ideal, sonho. Esses momentos são propícios para movimentos fascistas que explicam tudo com a simplicidade do ódio. Penso que esse fascismo é uma espécie de política de entretenimento de uma forma geral, as pessoas perdem tempo odiando umas às outras enquanto os verdadeiros responsáveis posam de estrelas na televisão. O fascismo é uma política de “pão e circo” sem o pão.

Esquerda Online: Como a situação dos presídios tem impacto na violência urbana?

Luís Carlos Valois: Há uma retroalimentação em toda a violência, os presídios formam criminosos piores a cada dia, que são postos na rua para cometerem mais crimes, enquanto a violência urbana é composta desses criminosos que saíram das prisões e de milhões de outros que nunca foram presos e nunca serão.  No caso, pensando de uma maneira mais macro, os presídios servem para que o Estado não faça nada realmente relevante para com a segurança pública, pois, afinal, ele já está prendendo muitas pessoas. As pessoas ficam satisfeitas vendo outras pessoas sendo presas, achando que isso vai levar a alguma diminuição da violência, e isso permite que a violência e todos os demais crimes, violentos ou não, continuem.

Esquerda Online: Conforme Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2014, 622.202 pessoas estão encarceradas no Brasil. Deste número, quase metade se encontra em situação provisória. Ou seja, ainda sem julgamento e com grandes chances de não participarem de facções criminosas.Tornar a justiça criminal mais eficiente, que se condene com mais celeridade, resolve o problema?

Luís Carlos ValoisAcho que sim, mas para tanto há que se diminuir o número de crimes, porque a justiça está abarrotada de pequenos tipos penais. Não adianta também aumentar a celeridade e diminuir nas garantias que já são poucas, principalmente para os pobres, que sequer têm uma defensoria pública bem estruturada nos Estados.

Esquerda Online: O senhor aponta como caminho para diminuir o encarceramento em massa que há no Brasil, que se repensse a política de combate às drogas. De que forma o uso e comércio regulamentados influenciam na sociedade e no sistema prisional?  

Luís Carlos ValoisCom certeza, o problema do encarceramento em massa passa pela política de drogas, 40% dos homens e quase 90% das mulheres estão presas por isso. Estamos prendendo pessoas que estavam em uma relação comercial com outras, vendendo uma substância para alguém que quer comprar e misturando com assassinos, latrocidas, estupradores etc. Uma temeridade. E pior, estamos prendendo pessoas que estavam vendendo uma substância a outra em um lugar que vende essa substância.

O superencarceramento tornou o sistema um caos e todos sabem que há drogas nas prisões. Também estão morrendo pessoas que não têm nada a ver com as drogas. O policial atira para matar um comerciante ou um usuário comprador e mata que está indo para o trabalho, e com toda essa incoerência estamos ainda lotando o sistema penitenciário, dando dinheiro para as organizações criminosas e perdendo quantias que poderiam ser investidas em educação e na saúde dos usuários problemáticos.

Esquerda Online: A pena de prisão não funciona? Quais alternativas podem ser aplicadas?  

Luís Carlos ValoisA pena de prisão funciona para a segregação, para a exclusão de parcela da população pobre. Há penas alternativas, há o monitoramento eletrônico, mas acho que ainda temos que evoluir bastante no sentido de encontrar um instrumento punitivo que substitua a prisão. Não porque ela funcione, mas porque o sadismo da sociedade exige o sofrimento dessas pessoas.

Esquerda Online: O senhor já se posicionou publicamente contra a redução da maioridade penal. Pode nos expor os motivos?  

Luís Carlos ValoisMenores já são presos, já respondem a processos, têm penas até mais altas que adultos. Sou contra a diminuição principalmente porque colocar um menor de 16 anos em uma cela com homens de 30 é uma sentença de morte. Ou o jovem virará um soldado, poderá ser violentado, ou morrerá. É uma temeridade, um jovem de 16 anos, todos sabem, não tem a força física de um homem de 30, isso objetivamente falando.

Esquerda Online: O senhor declarou, em entrevista recente, que o “Direito Penal real não é o Direito Penal da Lava Jato. O Direito Penal real é muito mais violador do que o da Lava Jato”, referindo-se aos métodos utilizados como prender preventivamente para forçar delações e abuso de conduções coercitivas. Pela sua experiencia, qual o “Direito Penal Real” brasileiro?

Luís Carlos ValoisO direito penal real brasileiro é o direito do Policial Militar na esquina. Depois que o Judiciário permitiu que uma pessoa seja condenada com testemunhos apenas de militares, a pessoa é presa, levada a julgamento pela polícia, e condenada. Quem julga se a pessoa é criminosa ou não é o policial, porque se ele julgou isso, achou isso, os juízes estão aceitando e condenando, avalizando a palavra da polícia, esquecendo que a polícia está em guerra, que a polícia tem metas a cumprir, estatísticas, e que há também corrupção na polícia. Hoje em dia quem diz se uma pessoa é usuário ou traficante é a polícia, e o judiciário apenas faz o papel legitimador da condenação que já aconteceu na rua.

Foto: Divulgação JC