Entrou em cartaz no dia 28/03, o documentário Nada será como antes – A música do clube da esquina.
Dirigido por Ana Rieper, o longa busca resgatar, através de entrevistas exclusivas e de materiais de arquivo – no caso das passagens de Milton Nascimento – todo aquele ambiente no qual se forjaram os laços de amizade entre a geração de jovens mineiros (nem todos, já que Milton, Robertinho Silva e Luiz Alves são cariocas, diga-se de passagem) que animaram o Clube da Esquina, entre as décadas de 60 e 70.
O documentário pode ser assistido em mais de 20 cidades: Aracaju, Belém, Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Niterói, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória.
Trem de doido
Sem dúvidas, aquele Clube de jovens músicos e compositores, nascido na emblemática esquina das ruas Paraisópolis com Divinópolis, no bairro de Santa Teresa, na capital mineira, foi um dos mais mais belos e criativos movimentos musicais da história da música brasileira. Contudo, o Clube não foi exatamente uma banda, mas sim um grupo de amigos, mesmo. Um clube, de fato, do qual cada membro participava com seu talento particular.
Em seu imenso legado musical, o Clube conseguiu sintetizar uma mescla muito rica de gêneros e estilos, aportada por cada um dos artistas. Milton e o saxofonista Nivaldo Ornelas eram apaixonados por Bossa Nova e se viam como as versões nacionais dos jazzmens Miles Davis e John Coltrane; Toninho Horta também era fã de Jazz. Já para Beto Guedes, o Jazz até que “tem seu valor”, como afirma no documentário, em umas de suas tiradas bem humoradas, mas era o rock do Genesis e dos Beatles que fazia mesmo sua cabeça. Aliás, foi Lô quem lhe apresentou o quarteto de Liverpool, segundo revela o próprio Guedes. Já a praia de Wagner Tiso sempre foi mais a música clássica. A música afro-brasileira, advinda dos ritmos das comunidades negras mineiras, a exemplo das toadas e do congo, dos terreiros de umbanda e candomblé, está presente na marcante levada percussiva que acompanha os versos Ê morena quem temperou? / Cigana quem temperou? / O cheiro do cravo / Cigana quem temperou? / Morena quem temperou? / A cor de canela, cujo trabalho ficou por conta do lendário percussinista Robertinho Silva, um dos mais importantes da música brasileira. “Isso num é rock não, isso é afro”, afirma Robertinho, enquanto toca bateria. Nessa mescla maravilhosa também entraram o chorinho, a música sacra das procissões mineiras, o samba, o cancioneiro latino-americano e até mesmo elementos de música cigana do Leste Europeu.
Para Márcio, o movimento estudantil também foi uma influência importante no Clube. Não por acaso o verso, “em meio a tantos gases lacrimogênios”, em uma de suas composições mais conhecidas.
Toninho Horta também agrega que a geografia montanhosa de Minas foi decisiva: “Não temos mar, então as melodias acentuadas são como as montanhas, cheias de subidas e descidas”.
Como explica a própria diretora do longa: “Tem uma coisa que eu fui entendendo, fazendo o filme, que tá ali na base da musicalidade desse pessoal, um encontro entre o povo que vinha do Jazz, que era o Bituca, o Nelson Angelo, o Wagner Tiso, o Nivaldo Ornelas, com a molecada que ouvia Rock and roll, que ouvia Beatles”.
Além das influências variadas, os músicos também cumpriram distintos papéis na gravação do Clube 1, revezando-se nos instrumentos, em um processo artístico completamente livre e espontâneo e eminentemente coletivo: o órgão ficou por conta do Wagner Tiso e o violão de 12 cordas, do Tavito. Toninho Horta ora ficou na guitarra, ora no violão, ora na “cozinha”, rasgando o contrabaixo. O mesmo vale para Beto Guedes. Já Milton e Lô, ora cantaram, ora tocaram piano, ora violão. Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando Brant entraram com algumas das composições, outros com os arranjos. E por aí vai. “Não tínhamos medo ou receio de pegar uma percussão e tocar perto do Robertinho Silva”, afirmou Beto Guedes.
De fato, um belíssimo Trem de doido, como no título da música dos irmãos Lô e Márcio Borges e famosa pelas guitarras psicodélicas de Guedes.
“Lô, a gente vai fazer um disco que vai se chamar Clube da Esquina“
O disco Clube da Esquina foi gravado na cidade de Niterói, em novembro de 1971, em um estúdio de apenas 2 canais. Um desafio nada irrelevante para os músicos da época.
Sem dúvidas, esse disco é o principal legado deixado por aquela geração, contudo ele não resume toda ela. Alguns fãs e críticos chegam até a reunir vários outros discos, num trabalho cartográfico de reconstituição de todo a produção da geração Clube da Esquina. Assim, dela também fazem parte o Clube da Esquina 2, de 1978, é claro; mas também os discos Milton (1970), Minas (1975) e Geraes (1976), da carreira solo do Milton; o disco homônimo da banda Som imaginário, de 1970, cuja composição reunia ninguem menos que Victor Biglione, Luiz Alves, Wagner Tiso, Robertinho Silva e Nivaldo Ornelas; Lô Borges, de 72, disco de estreia da carreira solo de Lô Borges, que acabou sendo conhecido pelo nome de “Disco do Tênis”; o disco conjunto de Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli e Toninho Horta, lançado em 1973; A página do Relâmpago Elétrico, disco individual do Beto Guedes, de 1977; O disco homônimo do Wagner Tiso, de 1978; Terra dos pássaros, primeiro trabalho solo do Toninho Horta, de 1980; e o seminal Angelus, lançado pelo Milton em 1993, ao lado de figuras como Herbie Hancock e Peter Gabriel. Um disco que, para muitos, é considerado o “Clube da Esquina n° 3”.
Por razões óbvias, o documentário não aborda todos esses outros trabalhos, mas mostra os irmãos Borges tocando e cantando de forma muito descontraída Para Lennon e McCartney, música que não está no disco Clube da Esquina, mas sim na abertura do disco Milton, de 1970. Uma cena emocionante para os amantes do Clube.
Duas crianças pobres na beira de uma estrada de terra
A história da capa do Clube 1, carregada de brasilidade, com duas crianças pobres sentadas na beira de uma estrada de terra e um fio de arame farpado passado por cima, uma forma de simbolizar a ditadura civil-militar que vigorava no país, infelizmente foi um tema que ficou de fora do documentério.
Rieper explicou, em uma das várias entrevistas concedidas, que esta foi uma escolha consciente: “O Cafi era um super-personagem desse filme. (…) Ele era dessa galera. (…) Mas ele morreu antes da gente filmar. Então, essa história acho que foi embora junto com ele”. O fotógrafo pernambucano e um dos participantes daquela geração de amigos, Carlos Cafi, faleceu em 2019.
Eu sou da América do Sul
Sem dúvidas, o Clube da Esquina foi fundamental para lançar uma lufada de ar fresco naqueles embotados anos 70, então enquadrados à bala pelas divisas oficialescas e arquirreacionárias ao estilo de “Pra frente Brasil” ou “Brasil: Ame-o ou deixe-o!”, cunhadas pelos milicos de turno.
Uma das mais simbólicas músicas nesse sentido, não por acaso escolhida para abrir o trailer oficial (vídeo acima) do documentário de Rieper é Para Lennon e McCartney, talvez, por sua capacidade traduzir muito bem o clima e o espírito da turma. Aliás, uma composição dos irmãos Lô (que na época não tinha mais de 16 anos) e Márcio Borges, junto com Fernando Brant. O enérgico grito Eu sou da América do Sul, busca contrapor pelo vértice a realidade inglesa vivida por Lennon e McCartney, ídolos da turma, que não tiveram que sofrer a violência e a censura de governos ditatoriais, com a realidade vivida pelos artistas no Brasil. É também um grito de liberdade e de genuíno desejo de viver, entoado por quem não estava de costas ao que ocorria no continente.
Que notícia me dão dos amigos ou “um brinde ao Fernando [Brant]”
Em Nada será como antes Ana Rieper soube captar muito bem o poder da amizade, fator fundamental que constituiu o Clube e intensamente celebrado no documentário.
Isso fica claro na história de absoluta pureza e ingenuidade, como é típico nas crianças, de quando Lô Borges e Beto Guedes conheceram-se. Ainda criança, Lô viu Guedes andando de patinete no Centro de Belo Horizonte. Propos-lhe trocar o patinete por uma coleção de moedas antigas. Negócio feito e daí nasceu a amizade. Logo depois ambos estavam em uma banda de cover dos Beatles. E, não muitos anos depois, essa amizade transbordou no que veio a torna-ser o Clube da Esquina.
Foi um pouco depois que Lô conheceu Milton. Ao descer os 17 andares de escadas do edifício Levy, para comprar pão e leite, Lô foi ouvindo progressivamente uma voz, de alguém um pouco mais velho, acompanhada de um dedilhado no violão. Lô ficou hipnotizado na medida em que descia as escadas e se aproximava daquela voz. Era ninguém menos que Milton Nascimento: “Costumo dizer que primeiro conheci a voz do Milton”, afirma Lô. Naquela tarde de interações com Milton, no 4° andar do edifício Levy, Lô acabou esquecendo-se dos pães que tinha que comprar: “Foi um encontro para sempre. Eu era uma criança e ele era um adulto. Olhei praquele cara e falei: esse cara é meu amigo pro resto da vida. E acho que ele teve a mesma sensação em relação a mim”.
Em um dos melhores momentos do documentário, desses capazes de arrancar não poucas lágrimas dos espectadores nas salas de cinema, Márcio Borges, reunido com mais três companheiros de Clube, na mesa de um bar, propõe “um brinde ao Fernando [Brant]”, compositor, falecido em 2015, autor de letras inesquecíveis como Travessia, Paisagem da janela, San Vicente e Canção da América. Um bonito gesto de afeto e respeito entre amigos, que tanto representa o Clube da Esquina.
Sem dúvidas, Nada será como antes vai emocionar quem já é fã do Clube e encantar aqueles aqui ainda não são.
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