Lembramos hoje os 60 anos do golpe que deu origem a um dos mais sombrios períodos de nossa história: a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. Foram duas décadas de perseguição, morte, tortura, assassinato, desprezo e aniquilamento das populações indígenas, cerco cultural, econômico e policial contra as periferias e povo negro, corrupção, censura, carestia e endividamento internacional.
Tudo começou como agora: primeiro, a negativa das elites nacionais em aceitar reformas mínimas e parciais que dessem algum grau de dignidade ao povo mais sofrido; depois, o terror político, o “fantasma do comunismo”, o mito da destruição da família; mais tarde, o apelo ao “poder moderador” das forças armadas e sua suposta incorruptibilidade e patriotismo. Todo esse poderoso movimento, com bases nas classes médias e privilegiadas, que vinha pelo menos desde 1961, triunfou em 1964 em um golpe sangrento que teve o apoio e o financiamento de empresários nacionais e estrangeiros, meios de imprensa, TSE, governadores e prefeitos, parte do Congresso Nacional, e contou com o suporte político e logístico da Embaixada dos Estados Unidos.
O país mergulhou em uma noite de horror. Foram milhares de mortos, dezenas de milhares de perseguidos, demitidos e exilados. O governo militar reprimiu manifestações, partidos de esquerda, organizações sindicais, entidades da sociedade civil, jornalistas e artistas. O povo resistiu como pôde. Alguns ativistas se mantiveram inativos por longos anos, outros foram para o caminho desesperado da luta armada e outros ainda atuaram de maneira clandestina, molecular, esperando uma oportunidade para voltar à luta aberta.
Ao final, a ditadura foi derrotada pela força irresistível da classe trabalhadora em uma nova onda de reorganização política e sindical que começou no final dos anos 1970. A ditadura saiu de cena de maneira melancólica (lembremos a famosa frase de João Figueiredo ao deixar a presidência: “Me esqueçam!”), mas não sem antes oferecer a si mesmo e a seus agentes uma anistia que os livrou do destino que vários ditadores de outros países tiveram: a cadeia.
Militares impunes
Assim, a ditadura deixou o poder, mas os assassinos e torturadores nunca foram punidos. O país declarou seu “ódio e nojo à ditadura” (expressão famosa de Ulisses Guimarães quando da promulgação da Constituição de 1988), mas nunca acertou de fato as contas com o seu passado. A elite brasileira – mesquinha, covarde, inculta e vende-pátria – nunca permitiu um verdadeiro processo de democratização.
Depois da ditadura, as Polícias Militares se mantiveram na prática como entidades absolutamente onipotentes e autônomas, apenas de longe submetidas à autoridade civil dos governadores (e até com isso eles querem acabar agora!). Exército, Marinha e Aeronáutica preservaram uma estrutura arcaica, afastada do povo e uma ideologia interna reacionária e desligada das reais necessidades de defesa e proteção do país. Para os militares brasileiros, o “inimigo interno” (leia-se a esquerda e os movimentos sociais) segue sendo principal inimigo. Enquanto isso, ganham salários altíssimos, vivem no conforto de suas vilas militares, deixam suas pensões para filhas adultas, fazem exercícios conjuntos com o Exército norte-americano e recebem instruções de militares israelenses. As forças armadas brasileiras são a coisa mais alheia ao povo que se poderia imaginar em um país sofrido como o nosso.
O golpe ontem e hoje
Hoje, 60 anos depois do golpe, a serpente fascista segue viva nas forças armadas e no apoio dado a elas pela classe média e alta do país. Vimos isso de maneira bastante gráfica no dia 08 de janeiro de 2023, quando uma turba enfurecida tentou dar um novo golpe no país. A superfície patética daquela tentativa não deve nos induzir ao erro: tratou-se de um operativo sério. Houve reuniões com os comandantes das forças armadas, minuta do golpe, planos para fechar o STF, prender e enforcar Alexandre de Moraes e instalar um estado de sítio no país, com a supressão dos direitos civis e liberdades democráticas. Por muito pouco, a história de 1964 não se repetiu.
Por isso, mais do que nunca, é importante lutar pela memória sobre o que foi o golpe e a ditadura. Lula cometeu um erro importante ao entrar em um acordo tácito com os militares onde ninguém fala do ocorrido e todos “olham para frente”. Ledo engano. Enquanto o governo cancela suas atividades de lembrança, os fascistas continuam com sua campanha nas redes sociais sobre a necessidade de um novo golpe e uma nova ditadura. O governo abriu mão de cumprir um papel educativo (principalmente para a juventude, que tem muito pouco ideia sobre o que foi a ditadura), enquanto a agitação golpista do bolsonarismo não parou um só minuto. Não é difícil perceber quem saiu ganhando nessa troca.
Desde a instauração da República que as forças armadas brasileiras, apoiadas pela elite nacional, sempre tiveram uma vocação ditatorial e golpista. É por isso que o perigo se mantém real. Para evitar um novo golpe e uma nova ditadura, é preciso, em primeiro lugar, condenar e prender Bolsonaro e os generais golpistas que tentaram um golpe de Estado entre o final de 2022 e o início de 2023. Além disso, é preciso proceder à desbolsonarização do Estado: promover uma reforma democrática radical nas forças armadas, incluindo as Polícias Militares, que devem ser controladas pelos governantes eleitos e pelas entidades auto-organizadas da sociedade civil. É urgente um verdadeiro controle externo.
Mas mais do que tudo, para afastar de vez o perigo do golpe, é preciso entregar o que foi prometido: reformas estruturais, significativas, que mexam com a vida das pessoas. O povo precisa ser chamado às ruas para apoiar ativamente as medidas progressistas do governo. Mas isso só pode acontecer se essas medidas existirem: aumento salarial, alimentos mais baratos, geração de empregos de qualidade, investimento em educação, saúde e transporte, perspectivas concretas para os precarizados do trabalho e para juventude negra e pobre. Não será possível efetivar um governo assim de mãos dadas com o centrão de Artur Lira, a atual cúpula militar e os setores da direita neoliberal. É preciso construir e apostar na mobilização popular.
Em 2022, a maioria do povo rejeitou a narrativa violenta e reacionária do fascismo e decidiu dar uma nova chance a Lula e ao PT. Essa chance não pode ser desperdiçada. O bolsonarismo está acuado judicialmente, mas muito ativo e forte politicamente, fazendo uma dura oposição, apenas esperando pelo erros do governo para retomar sua agitação para voltar ao poder no país, seja pelas eleições ou por uma nova tentativa de golpe no futuro. Não podemos deixar.
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