As eleições de 10 de março foram as mais marcantes das últimas décadas. Assinalam um novo momento da vida política. Uma nova etapa, mais dura para as classes populares e mais exigente para a esquerda – uma etapa defensiva.
Uma grande viragem à (extrema) direita
Sem aprofundar o tema, há que lembrar que não é possível compreender estas eleições sem ter como ponto de partida esta intervenção anormal, de cariz justiceiro, marcadamente política, do MP articulado com a comunicação social, na e contra a «normalidade democrática». Sem ser preciso entrar em teses «conspirativas», é evidente que esse acontecimento marca as eleições, influencia os seus resultados e, mesmo que não tenha articulação direta com o crescimento da extrema-direita, tem causas comuns e converge objetivamente com ele.
A 10 de março, confirmou-se uma grande viragem à direita polarizada pela extrema-direita. Não uma tradicional «mudança de ciclo», mas uma situação nova em que um partido neofascista desequilibra toda a correlação de forças, abrindo um novo momento de cariz reacionário.
A 10 de março, confirmou-se uma grande viragem à direita polarizada pela extrema-direita. Não uma tradicional «mudança de ciclo», mas uma situação nova em que um partido neofascista desequilibra toda a correlação de forças, abrindo um novo momento de cariz reacionário. A vitória da direita, ainda que ofereça o governo à AD e à Iniciativa Liberal (IL), é conseguida pela dinâmica explosiva do Chega.
Face a 2022, as direitas ganham mais de 1 milhão de votos, alcançando um resultado apenas comparável com a maioria absoluta de Cavaco Silva (sem extrema-direita) em 1991 e muito acima da vitória de Passos e Portas em 2011. O Partido Socialista (PS) perde meio milhão de votos num cenário de maior participação eleitoral, o seu pior resultado do século. A subida dos partidos à esquerda do PS, fica muito aquém do que o PS perde – as esquerdas mais o PS perdem mais de 350 mil votos. O crescimento do Chega é sem dúvida o dado mais importante destas eleições: são 750 mil votos a mais, alcançando mais 1 milhão e 100 mil votos. O facto de o aumento da participação eleitoral quase coincidir com o do Chega (ainda assim, aquém) autoriza a conclusão de que muito deste provém da abstenção, mas não todo.
Este cenário configura uma nova correlação de forças política em que o elemento dominante é a força e a dinâmica de crescimento da extrema-direita e uma direitização da sociedade que parece ser mais estrutural do que conjuntural – o que não significa irreversível. A esquerda de conjunto sai enfraquecida e assinala-se que os resultados que o Bloco e PCP tiveram em 2022 não foi momentâneo, e que abriu espaço ao crescimento assinalável do Livre. Trata-se de uma nova configuração política nacional, mais defensiva e até reacionária que tende a acentuar-se. A resistência a essa ofensiva reacionária, na qual se podem acumular forças para inverter o ciclo, traça as tarefas da esquerda e das lutas sociais para o próximo período. Vejamos agora com mais atenção alguns dos dados e das pistas políticas que eles nos dão.
AD e IL
A AD tem uma vitória política e irá formar governo. É beneficiária direta da viragem à direita e emerge (temporariamente) de uma crise prolongada da direita tradicional. Mas será provavelmente uma vitória de Pirro como a maioria absoluta provou ser para o PS. O resultado da AD foi em linha com a soma de PSD e CDS em 2022 e teve menos votos que em 2015, 2011, 2009, 2005 e 2002. É provável que a governação que agora se inicia, com uma oposição à extrema-direita, abra uma crise de grandes dimensões na direita tradicional, possibilitando a sua ultrapassagem pelas novas direitas radicais.
A IL mantém o número de eleitos e ganha mais 40 mil votos face a 2022. Num cenário de voto útil à direita e com uma liderança mais fraca e desconhecida, mostra uma resiliência importante, que pode ser explicada pelo financiamento milionário que lhe provêm das elites (diretamente ou via o instituto + Liberdade), mas também pelo avanço da ofensiva ideológica ultraliberal entre setores das classes médias qualificadas, em particular os mais jovens. Ambos são fatores marcantes de uma viragem «sociológica» à direita que alça agora os ultraliberais ao governo.
O que explica o crescimento do Chega?
Como já foi dito, o crescimento do Chega é o grande fator destas eleições. Tal era previsível e já o tínhamos assinalado há muito. Abre-se uma discussão sobre as causas desse crescimento, para a qual já demos antes alguns contributos.
A primeira explicação está nas elites: o financiamento do Chega e a promoção das ideias de extrema-direita com a conivência e/ou participação de parte dos média, assim como a ação do poder judiciário e das polícias contra a «normalidade democrática» são faces de uma mesma viragem nas alturas. A crise de 2008 levou a um impasse nos ritmos de crescimento capitalista, sobretudo na Europa, que nunca foi retomado. A elite exige ajustes ainda mais profundos do que os que foram feitos no período da Troika para poder competir com outras nações (semi) periféricas na captação de capital estrangeiro (daí a obsessão com a competição da Roménia, a Polónia, etc.). Os mecanismos tradicionais de gestão burguesa da vida política não têm permitido superar esse impasse – veja-se os queixumes das elites sobre os «políticos», a sua dificuldade em «fazer reformas», o peso do Estado (social), os resquícios de fiscalidade progressiva, as greves, etc. Isso leva a uma aposta em formas mais extremas de combate político pró-capitalista, abrindo espaço (e os cofres) para o Chega.
Ao mesmo tempo, a crise de 2008, e depois a pandemia e a crise inflacionária, deixaram marcas nas classes médias e reconfiguraram as classes trabalhadoras. A crise não superada dos serviços públicos, e o avanço do privado na saúde, educação e outras esferas antes garantidas por provisionamento público, «divorciaram as classes médias do Estado social» – e, desta forma, da referência no regime democrático-liberal. Ao mesmo tempo, fenómenos como a especulação imobiliária, enquanto esmagaram as classes populares, criaram uma camada social privilegiada, desejosa de acabar com todos os mecanismos de solidariedade e direitos laborais e sociais – ou seja, esmagar o «socialismo» e a «extrema-esquerda».
Esta pressão, vinda de cima, atinge também as classes populares. A sucessão de crises operou uma engenharia social de larga escala que mudou as classes populares. Mais gente viu-se obrigada a autoempregar-se; centenas de milhares de trabalhadores foram excluídos da contratação coletiva; avançou a uberização e a entrada no país de centenas de milhares de novos trabalhadores migrantes (sem integração social por políticas públicas e representação democrática) fragmentaram a classe trabalhadora. Na ausência de mecanismos de representação social, contratação coletiva, disputa ideológica antirracista e mobilização de classe unitária, os trabalhadores menos oprimidos veem as novas vagas, racializadas e ultraexploradas como competidores. Um longo lastro de racismo, xenofobia e ciganofobia sistémicos, nunca combatidos pelo Estado e pouco contrariados por parte da esquerda, pôde ser ativado politicamente, como nunca antes, por um partido neofascista.
Assim, a viragem à direita e a irrupção da extrema-direita resultam das profundas mudanças sociais no país (e no mundo) herdadas da soma de crises que vêm de 2008. Uma burguesia insatisfeita com a governação tradicional; novas e velhas classes médias afastadas do Estado social; uma classe trabalhadora fragmentada política e socialmente; a herança colonial e racista, sempre presente, mas agora empolada – eis os ingredientes da viragem à extrema-direita.
Como sempre na história, só a mobilização popular, e em particular proletária, pode alterar o cenário. A reconstrução de um bloco político das classes populares, em luta por direitos sociais e laborais, liberdades democráticas e atravessado por uma perspetiva antirracista e anticapitalista, é a única forma de enfrentar a extrema-direita. Trazer para o centro da luta de classes os setores mais exploradores e marginalizados – periféricos, racializados, migrantes, femininos, proletários – em aliança (e não em oposição) com os setores «tradicionais» da classe trabalhadora será determinante para encurralar a minoria reacionária, travar a viragem à direita e iniciar o contra-ataque.
Esquerda: resultados e tarefas
O PS foi um dos derrotados das eleições. Golpeado pela intervenção do Ministério Público, não soube (ou não quis) rearmar-se para uma nova fase. Incapaz de um balanço crítico do costismo e de soluções de esquerda para a habitação, os salários e os serviços públicos, o PS teve uma campanha zigzagueante. Perdeu quase meio milhão de votos, mas ficou acima do resultado de Costa em 2015. Quando forem escrutinados os votos da emigração, o PS pode ficar empatado com a AD. Com o Bloco, PCP, Livre e PAN, teria mais deputados que a AD a IL juntas. Mas Pedro Nuno Santos jogou cedo a toalha ao chão. Assume a derrota antes de tempo e diz votará contra o próximo orçamento de Estado. Contudo, sem se reposicionar à esquerda, com um novo programa e rompendo com o legado da maioria absoluta, esse reposicionamento ficará incompleto e dificultará aquilo por que grande parte do «povo de esquerda» anseia: um campo amplo de oposição à direita que responda na habitação, salário e serviços públicos. Limitar-se a esperar pela crise da direita não é uma estratégia suficiente, mas parece ser a de Pedro Nuno Santos.
O Livre foi um dos grandes vencedores da noite, quase que triplicou a votação e multiplicou por quatro a representação parlamentar. Torna-se um interlocutor incontornável na esquerda, com resultados muito próximos do Bloco e, sobretudo, do PCP. O seu crescimento é uma refração da viragem à direita da sociedade. Setores que antes seguiriam Bloco e PCP, perante a ofensiva mediática contra os «estremos», procuram uma alternativa de centro-esquerda. Ao mesmo tempo, expressa um voto contra o PS, o que é progressivo. Assinala, ao mesmo tempo, um afastamento de setores médios de esquerda do Bloco e do PCP. Sem nunca deixar de dialogar com essa base – e portanto, com o Livre – o caminho para a esquerda combativa é o de reforçar as suas raízes nos setores mais explorados e periféricos da classe trabalhadora e da juventude.
A CDU, reduzida ao PCP, teve o seu pior resultado de sempre, uma tendência que vem de trás. Conseguiu mobilizar a sua base própria, mas não mais do que isso. Há que assinalar que esta fragilização do PCP não expressa uma reorganização positiva pela esquerda, mas antes a face mais vísivel do risco da marginalização da esquerda combativa. É, portanto, negativa. Ao mesmo tempo, o PCP preserva capacidade de mobilização e influência social, pelo que nós, no Bloco, tendo as nossas justas críticas, temos de construir diálogo e alianças para a luta social também com o PCP.
O Bloco de Esquerda resistiu de forma positiva às dificuldades destas eleições e à pressão do voto útil, tendo crescido 30 mil votos e preservando os cinco deputados. A campanha combativa, que gerou uma simpatia popular mais ampla que a votação, e motivou uma ofensiva da direita e dos média, foi correta. Foi acertado identificar a direita e o neofascismo como principais inimigos, sem abdicar de um duro balanço do Governo PS. Foi, num cenário difícil, provavelmente a campanha da esquerda em muitos anos que mais apontou baterias ao grande capital – na questão da habitação, dos juros, das rendas monopolistas, do salário e da saúde privada. As votações mais altas em zonas periféricas e proletárias, assim como o retorno recebido nas ruas, mostram que essa postura abriu diálogo com a população mais explorada (como revelam até alguns estudos de opinião). Nem tudo isso reverteu em votos, mas colocou o Bloco numa melhor posição para responder à perda de base eleitoral e social, aprofundando a sua influência nos setores mais precários da população.
Unidade: uma necessidade existencial
O debate sobre as novas tarefas da esquerda, e em particular do Bloco começa agora. Ficam aqui alguns apontamentos. O primeiro é que há que resistir aos apelos para a moderação: dirão que não podemos propagar o «ódio aos ricos»; que há que deixar de falar da extrema-direita; abandonar a luta feminista, antirracista e LGBT; ser menos «populistas», etc. O crescimento do Livre contribui para essa pressão; assim como a possibilidade (que não pode ser descartada) de unidades pontuais com o PS para combater a direita. Mas é essencial manter a postura anticapitalista demonstrada na campanha. A máxima flexibilidade tática não deve ser confundida com moderação programática. Pelo contrário: há que aprofundar a elaboração programática, em particular sobre a articulação dos eixos classe, raça e género, na senda de construir uma unidade mais ampla das classes populares assente nos seus setores mais explorados. Outros temas merecem mais atenção e centralidade, nomeadamente a luta por Justiça Climática, não como uma forma de alarmismo catastrofista, antes como uma visão global de transição ecossocial em todas as instâncias da vida – focada, naturalmente, na rápida redução de emissões.
O centro da tática será, mais do que nunca, o combate à direita e ao neofascismo. Apesar de isso ser algo óbvio, é normal que os perigos com que nos deparamos não estejam suficientemente nítidos. A luta contra o neofasismo é a tarefa histórica que nos coube viver. O neofascismo, o Chega e afins, representam um projeto de subversão das conquistas democráticas, de esmagamento da esquerda e subordinação absoluta de quem trabalha – não são uma mera direita radicalizada, mas uma ameaça existencial.
O centro da tática será, mais do que nunca, o combate à direita e ao neofascismo. Apesar de isso ser algo óbvio, é normal que os perigos com que nos deparamos não estejam suficientemente nítidos. A luta contra o neofasismo é a tarefa histórica que nos coube viver. O neofascismo, o Chega e afins, representam um projeto de subversão das conquistas democráticas, de esmagamento da esquerda e subordinação absoluta de quem trabalha – não são uma mera direita radicalizada, mas uma ameaça existencial. Não há luta sindical, social, climática ou contra a guerra que possa contornar isso. A reafirmação de uma esquerda anticapitalista de combate, a disputa e organização das classes populares são caminho. Mas o determinante é unir todos os explorados e oprimidos através da unidade das organizações que os representam – a esquerda política, social e sindical. As unidades com pontuais com o PS, serão necessárias, mas sempre subordinadas a uma estratégia à esquerda.
Concluindo, a ameaça às classe trabalhadoras e à esquerda é existencial. Não que estejamos perante um esmagamento iminente – temos forças acumuladas para lutar. Mas o acantonamento, a autoafirmação marginal, à espera de dias melhores, é mais desistência que perseverança. É necessário recompor um campo amplo à esquerda – à esquerda do PS, mesmo sem excluir unidades com ele. A tarefa é travar, o quanto antes, a ascensão da extrema-direita e acumular forças para uma contra-ofensiva à esquerda. Pode levar tempo, mas é o único caminho. Estas eleições mostram que nem Bloco nem PCP, menos ainda o Livre, o farão sozinhos. A unidade das esquerda, na lutas sociais, mas também na disputa política global, com mobilizações e iniciativas políticas públicas conjuntas, são os primeiros passos a dar. Recompor um campo das esquerdas e do setores populares para resistir e contra-atacar é a tarefa deste ciclo político. O risco de ficar para trás é a marginalidade ou a ultrapassagem. A unidade das esquerdas – a chamada tática da Frente Única – pode tomar várias formas e há que debater como se pode efetivar taticamente a cada momento. Mas é incontornável.
Juntos para resistir, unidos para contra-atacar, à esquerda, sem cedências nem sectarismos
Original em O que aconteceu nas eleições legislativas e o que fazer agora?
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