Criada como um incentivo ao audiovisual, um dos setores da economia mais atingidos pela pandemia da Covid-19, a Lei Paulo Gustavo está gerando indignação no setor cultural de São Vicente, na Baixada Santista (SP), cidade que recebeu R$ 1.652.457,42 do Ministério da Cultura para contemplar projetos na área cinematográfica.
Após a divulgação da lista de candidatos habilitados e notas dos projetos, denúncias envolvendo casos irregulares e possíveis favorecimentos passaram a circular em grupos de whatsapp de agentes culturais da cidade.
O caso que mais gerou revolta está na linha de apoio à produção de obra audiovisual de curta-metragem ficcional. A quarta melhor nota foi concedida à Maktub Beauty, uma loja de cosméticos cujo CNPJ aponta como principal atividade “cabeleireiros, manicure e pedicure”. Como atividades secundárias estão ofícios alheios ao audiovisual: serviços combinados de escritório e apoio administrativo; atividades de cobranças e informações cadastrais; comércio varejista de cosméticos, produtos de perfumaria e de higiene pessoal. Todos esses dados estão disponíveis na internet, em sites que listam dados cadastrais das empresas.
Esse fato absurdo seria razão suficiente para o projeto ser desclassificado. Isso porque o edital diz que “o agente cultural que receber pontuação 0 em algum dos critérios será desclassificado do edital”. Como um dos critérios analisa justamente a “trajetória artística e cultural do proponente” é difícil imaginar como uma empresa com este perfil pode ostentar trajetória cultural.
Outros casos chamam a atenção pelos fortes indícios de conflito de interesses. Há relatos sobre “chefe de gabinete”, “esposa de comissionado” e “filha de comissionado” que se candidataram e receberam notas altas. Ou seja, pessoas que ocupam cargos políticos na prefeitura e parentes de comissionados podem ser contemplados por uma lei emergencial direcionada a remunerar quem ficou sem trabalho durante o período mais crítico da pandemia.
Embora questionáveis do ponto de vista ético, essas inscrições são permitidas pelo edital porque o veto a inscrições ficou restrito a quem tenha se envolvido diretamente na elaboração do edital; a membros da Secretaria Municipal de Cultura, da Câmara Municipal e do Poder Judiciário; e a parentes de servidor público do órgão responsável pelo edital. Ainda assim, há questionamentos se essa permissão não fere os preceitos constitucionais que regem licitações e contratos administrativos públicos, como as leis nº 8.666/93 e nº 14.133/2021.
É o que apontou Danilo Tavares, agente cultural da cidade, em vídeo publicado no instagram. Questiona ele: “a presença de indicados políticos em cargos comissionados, mesmo em outras secretarias, não coloca em xeque a integridade e imparcialidade do processo?”.
Desde sua origem, a lei apresentou problemas em São Vicente. São nove linhas diferentes, divididas em dois editais, sendo elas: apoio a produção de obra audiovisual de curta-metragem ficcional; apoio a produção de obra audiovisual de curta-metragem documental; apoio ao desenvolvimento de roteiro; produção de websérie; produção de games; produção de videoclipes; primeiros projetos; apoio à formação; apoio a festivais de cinema.
Apesar de serem linguagens com distintas especificidades, que exigem diferentes níveis de experiência e referência cinematográfica, a Prefeitura optou por estabelecer o mesmo critério de avaliação a todos eles, criando mecanismos genéricos de julgamento. Na linha de desenvolvimento de curtas de ficção, por exemplo, não foram exigidos itens básicos como roteiro, argumento e desenvolvimento dos personagens.
É urgente que a Prefeitura de São Vicente se posicione sobre as denúncias que já estão sendo comunicadas à Secretaria Municipal de Cultura. É preciso oferecer não só respostas, mas ações concretas para garantir a lisura e a transparência do edital.
Até o fechamento desta reportagem, a classificação final ainda não havia sido publicada pela Prefeitura. Por ora, só há a publicação dos projetos habilitados, com suas respectivas notas, o que já permitiu visualizar os possíveis classificados. Dentre eles, o absurdo caso de uma loja de cosméticos.
Ainda é possível corrigir as irregularidades apontadas pelo movimento cultural. Cabe à prefeitura garantir que a verba chegue a quem mais precisa e produz, de fato, cinema na cidade.
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