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Relato 34: Só os lokos sabem: Arte é Medicina!

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Viviane de Cassia Ferreira

Meu nome é Viviane de Cassia Ferreira. Estou com 58 anos. Sou uma performer ArTeVida.

Isso significa que me esmero em viver a vida como arte e fazer arte com matéria da minha própria vida.

Há 21 anos rompi a tênue linha da saúde mental e transtornei.

Desde então, nos períodos de estabilidade, ilumino os porões da minha loucura com a arte, buscando apaziguar o sofrimento psíquico, recolher aprendizado e amenizar a dor, a vergonha e o sentimento de inadequação que se arrastam depois das crises.

Sei que a autoexpressão, o autocuidado e o autoconhecimento são 3 chaves valiosíssimas para a saúde mental.

O amor incondicional é a chave mestra, desconfio fortemente.

Tive meu primeiro surto psicótico em 1985, aos 19 anos. Naquela época, tive um filho que nasceu prematuro e faleceu com apenas 3 dias de vida. Depois de varar noites sem dormir, saí certa manhã logo que rompeu o dia em direção ao cemitério onde estava enterrado meu filho Pedro.

Ao tentar atravessar a Av. Amazonas, um carro vermelho passou e a inundou de sangue, até meus calcanhares. Ali mesmo perdi os sentidos, o juízo, e fui parar num hospital psiquiátrico.

Diagnosticada com esquizofrenia, passei a fazer uso diário de antipsicóticos, estabilizadores de humor, antidepressivos e ansiolíticos. Trataram-me por meses, eu não reagia. Por fim, fugi alucinada para o Rio de Janeiro. Minha mãe me resgatou e devagar fui me sentindo melhor.

Mais forte psiquicamente, consegui até mesmo trabalhar no comércio, num regime especial oferecido por tios, e superei a crise.

Naquela época, minha família, amigos e eu não acreditamos no diagnóstico e entendemos o episódio como luto e severa depressão pós-parto. Abandonei o tratamento e só voltei a ter surtos psicóticos em 2003, aos 37 anos, pressionada com excesso de responsabilidades no trabalho, na família.

Nessa época, comecei a sentir uma dor indizível no braço direito. Procurei tratamento, mas a médica me prescreveu um remédio para depressão monopolar, o que só fez aumentar minha crise.

Até esse momento eu havia tido uma vida produtiva, conquistando cargos importantes no mercado formal de trabalho, criando com sucesso minha filha que tinha 3 anos quando o irmãozinho faleceu. Formei em História e Teatro.

Depois desse novo surto, em 2003, passei a ser diagnosticada com transtorno bipolar tipo I. Vivi loucas escaladas maníacas, surtei feio algumas vezes e sofri depressões impiedosas que, pensava, roubaram-me anos e anos de vida.

Mas finalmente consegui acertar com um psiquiatra que, para minha felicidade, eu encontrei no SUS.

A partir daí, segui uma rotina rigorosa de medicação, dosagem e psicoterapia, onde também “perdi” algum Tempo.

Hoje, porém, considero que tudo foi fundamental para que me tornasse quem sou.

Sinto-me verdadeiramente uma cientista que estuda com diligência o próprio corpo.

Fiz grandes encontros com profissionais da saúde mental, conheci a esquizoanálise, que me ensinou a enxergar minha loucura como diferença, não como inferioridade. Descobri e inventei estratégias, linhas, rotas de fuga da má loucura, da opressão social, do abuso do “bom senso”, das armadilhas dos jogos de representação neuróticos e capitalistas.

Aprendi a ressignificar traumas, reconhecer sintomas, aceitar e compreender o transtorno, identificar pessoas, contextos, assuntos, lugares, atitudes, projetos e comportamentos que me potencializam ou inversamente, que arruínam minha energia vital, fragilizando-me psiquicamente.

Consegui na justiça a aposentadoria por invalidez (trabalhei por 25 anos com carteira assinada) e entreguei definitivamente meu corpo à arte. E me recriei.

Sou uma faquireza que tira partido da dor. Uma palhaça sagrada que transmite ternura e alegria na sua doida jornada. Expresso-me em performances, nas letras, nos palcos e recentemente entrei para aulas de desenho e mosaico no Centro de Convivência onde trabalho com meus pares.

Organizo meus pensamentos escrevendo, danço minhas glórias, desejos e misérias, desenho medos, coloro possibilidades, crio personagens no teatro que facilitam a compreensão da multiplicidade do meu ser. Encontro refrões no cancioneiro popular que me salvam das descidas aos infernos, dos tombos nos abismos e me permitem sonhar. Arrisco-me a compor músicas.

A arte tem um movimento mágiko, pra dentro, pra fora, pra cima, pra baixo, pros lados, pro infinito. Nos tira do lugar.  Eleva. Expande a consciência. Transforma tudo. Enriquece a vida.

Agora sou também estrela de cinema.

Quando me vi na telona, no documentário experimental “As linhas da minha mão” pensei com toda verdade e emoção:     – Amo essa linda mulher.

Vou cuidar dela e fazer tudo para agradá-la e protegê-la. Não vou depreciá-la nem abandoná-la nunca mais.

Ela é livre, corajosa e tem uma grande missão.

Essa obra sincera tem absoluta coerência com sua vida e pode, com sorte, inspirar outras pessoas.

Um conhecimento foi revelado ali, no vivo cinema de João Dumans.

São 21 anos diuturnamente na lida com as oscilações do transtorno bipolar e afecções de toda ordem (emocional, financeira, profissional, cognitiva, sexual, espiritual…).

Vê-la assim, uma artista tão loucamente dona de si, me faz acreditar que arte é medicina.

Medicina é a arte de cuidar.

Sou muitíssimo bem-cuidada no filme que se apresenta forte e a um só tempo delicado, poético…

Que precioso elogio à loucura, ao meu modo de existência!

Sinto-me perfeitamente realizada e feliz.

Com plena saúde integral!

Viva o cinema brasileiro!

Marcado como:
cinema / cultura