No último mês, a Universidade de São Paulo (USP) foi tomada pela maior greve estudantil dos últimos dez anos. A mobilização exige a contratação de professores e a ampliação das políticas de permanência, além de expressar o acúmulo programático do movimento estudantil. Esse processo foi produto de importantes lutas como a paralisação e ocupação da EACH no 1º semestre e a paralisação da Letras no 2º semestre, além de contar com o “apoio” da desastrosa manobra do diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), que ordenou que os prédios do instituto fossem fechados para impedir o piquete dos alunos, sob a justificativa de “iminente ameaça de depredação do patrimônio público”. Achando que poderia dar um chapéu nos estudantes, o diretor incendiou um movimento que ainda dava passos iniciais.
Hoje, a greve é uma realidade em todos os campi da capital e em diversos cursos do interior, além de contar com a solidariedade dos servidores e uma parte importante de professores.
A crise do quadro de docentes da USP tem como consequência, entre outros exemplos, a possibilidade de fechamento das habilitações de japonês e coreano no curso de Letras e de ⅓ das disciplinas obrigatórias do curso de Artes Visuais, na Escola de Comunicação e Artes (ECA). Apesar de haver diferenças entre os cursos e institutos, o déficit de docentes e funcionárias precariza o funcionamento geral da universidade e afeta a instituição como um todo.
A luta contra o projeto privatista da reitoria e do governo do Estado:
Está cada vez mais nítido que no centro da problemática das pautas levantadas pelo movimento estudantil está o projeto imposto à USP e implementado nos últimos 10 anos, de desmonte da universidade para abrir caminho para ampliar a participação da iniciativa privada. Sabemos que a universidade vêm passando por intensas mudanças: sob o argumento de crise orçamentária, ela avançou na terceirização dos serviços meio da instituição, como os “bandejões”; desvinculou os Hospitais Universitários; dispensou técnicos-administrativos; e aprovou os “Parâmetros de sustentabilidade econômico-financeira da USP”, que impuseram uma mudança estrutural nos limites ao gasto com pessoal, aprovado em 2017 (gestão Zago-Agopyan).
Concretamente, abriram espaço para o oferecimento de cursos pagos de pós-graduação lato sensu, ofereceram instalações para Faculdade Privadas como Intelli no campus Butantã, ao mesmo tempo que buscam reorientar a produção acadêmica da universidade. Exemplo disso é o “Edital de Contratação de Docentes por Concorrência e Mérito”, diante do qual parte das vagas de docentes são distribuídas a partir da competição entre os cursos, segundo critérios de “pesquisa e inovação”, em detrimento das demandas de reposição docente, precarizando alguns cursos menos interessantes ao “mercado”, especialmente de humanidades. Cada vez mais, o projeto da burguesia paulista para a USP se assemelha ao projeto das grandes instituições educacionais dos Estados Unidos e Europa, que são competitivas nos rankings internacionais e guiadas pela lógica da alta produtividade acadêmica, com terceirizaçöes e pioras de condições de trabalho de diversas funçöes que fazem a universidade funcionar – lembrando que em muitos desses casos, como nos EUA, há a cobrança de mensalidade -, mas muito distantes de um modelo público, popular e democrático, voltado aos interesses da maioria do povo paulista e brasileiro.
Na contramão desse projeto, implementado nos últimos anos, vemos a aprovação das cotas pela USP, em 2017, que significou uma grande mudança de paradigma na composição estudantil. Essa conquista nada tem a ver com uma guinada progressista na orientação da reitoria e do governo do Estado, mas sim com as décadas de luta dos movimento negro e estudantil. O enegrecimento e a popularização do corpo discente foram fundamentais para a força da atual greve e contribuíram para uma maior unidade entre os institutos, incluindo aqueles historicamente mais elitizados e que muitas vezes ficavam à parte das mobilizações gerais.
Sobre as propostas arrancadas da reitoria pela greve: avanços ou migalhas?
Na última quarta-feira (04/10), após vários atos organizados pelos estudantes, dentro da USP (21/09), em caminhada até o Largo da Batata (26/09), no MASP (05/10), diversas movimentações em frente à Reitoria, espaços de decisão estudantis massificados, a forte experiência de greve dos servidores públicos (Metrô, CPTM e Sabesp) no dia 03/10 e a deflagração da greve estudantil na UNICAMP, a Reitoria avançou em uma primeira proposta a partir das demandas dos estudantes.
Em primeiro lugar, é necessário combater a narrativa da Reitoria, que tenta criar uma imagem benevolente em torno da sua própria imagem, desta maneira, diminuir a importância da maior greve estudantil da USP em dez anos. As propostas colocadas na mesa não são meras concessões de um corpo docente que está comprometido com a popularização da USP. Pelo contrário: o que conseguimos foi imposto pela força da nossa mobilização.
O documento apresentado avança na ampliação das contratações de docentes para 1027 ao todo, tendo sido acrescidos 148 contratações em relação à proposta inicial, que não seriam abarcadas pelo Edital de Concorrência e Mérito. Além disso, a contratação dos claros seria adiantada para junho de 2024 (anteriormente a previsão era 2025), podendo ser contratados professores temporários em caráter urgente (em até 45 dias), os quais são automaticamente substituídos pela pessoa que for aprovada no concurso. Não menos relevante, está a sinalização de compromisso da Reitoria de que nenhum curso será fechado em razão dos déficits presentes na Universidade.
A negociação também avançou para a criação de uma comissão para deliberar acerca do acesso indígena na universidade, com participação do movimento indígena de dentro e fora da USP, o que representa de fato uma conquista histórica dos povos originários e, em particular, do Levante Indígena da USP. Certamente, um passo muito importante no sentido da reparação histórica e democratização do ensino superior.
A garantia de café da manhã e almoço aos sábados em todos os restaurantes universitários e também uma sinalização de uma possível inclusão das demais refeições aos finais de semana, também representam um primeiro passo em relação às reivindicações historicamente apresentadas especialmente pelos moradores do CRUSP e das demais moradias da USP. Por fim, a Reitoria também sinalizou que irá recomendar a adoção de critérios sócio-econômicos na distribuição das bolsas PUB.
É preciso enquadrar a proposta da reitoria dentro do contexto histórico em que a universidade se insere, considerando os retrocessos que acumulamos no último período. Estamos em uma grande luta que, em trinta dias, busca reverter as derrotas de dez anos. Nesse sentido, considerando todo esse cenário, a proposta apresentada pela reitoria significa uma conquista arrancada pelos estudantes. É, portanto, uma vitória do movimento, que ainda precisa ser consolidada.
Ao mesmo tempo, não podemos superdimensionar o que está na mesa e não podemos ter dúvidas de que os pontos apresentados não revertem estruturalmente o projeto da burguesia paulista para a USP. A reitoria seguirá tentando aplicar um plano de terceirização de todas as atividades meio e de incentivo à lógica do produtivismo acadêmico, além de buscar implementar a cobrança de mensalidade e abrir maior espaço para parcerias e concessões à iniciativa privada. A luta contra isso seguirá ao longo dos próximos anos.
Por outro lado, não podemos menosprezar o que foi apresentado, como fazem alguns coletivos, que idealizam a luta de classes e apostam em uma lógica de “tudo ou nada”.
Vamos construir uma forte mobilização para aprofundar nossas conquistas nesta segunda-feira (09/10)
Para a próxima reunião de negociação, nesta segunda-feira (09/10), é tarefa do movimento, representado pelos estudantes que compõe a comissão de negociação, pautar os pontos específicos sobre o PAPFE, as demandas de infraestrutura da EACH, a reposição docente automática, o fim do Edital de Concorrência e Mérito, concursos com vaga reservadas para docentes e funcionários pretos, pardos e indígenas, que candidatos envolvido em casos de racismo e assédio sejam eliminados dos concursos, as necessidades envolvendo funcionários e as viagens de campo, além de reivindicações programáticas como as cotas trans, conforme encaminhado na última reunião do Comando de Greve.
É também muito importante exigir que a reitoria se comprometa com a não punição a nenhum estudante, seja em termos institucionais, acadêmicos ou políticos. Essa é uma medida fundamental, ainda mais considerando a postura de alguns docentes e diretorias, que tentaram ao longo de todas essas semanas intimidar o movimento. Lutar é um direito!
Para isso, é essencial estarmos em peso no calendário de mobilização deliberado para segunda-feira, com um forte ato em frente à Reitoria, a Audiência Pública sobre Permanência Estudantil protagonizada pela EACH na ALESP e a Assembleia Geral dos Estudantes.
A greve foi a melhor tática possível para o movimento estudantil até esse momento e não é um fim em si, mas uma tática, dentre várias outras possíveis, que precisam ser consideradas a cada novo passo da nossa mobilização. É a Assembleia Geral quem decidirá o que fazer daqui para frente, a partir do resultado da nova negociação de amanhã. Nós do Afronte vamos aplicar o que for decidido pela maioria estudantil e seguiremos na luta para derrotar a estratégia da reitoria e da burguesia paulista para a nossa universidade, com o objetivo de colocar em seu lugar um projeto popular e democrático, voltado aos interesses da maioria do povo trabalhador do nosso estado e do nosso país.
Essa tarefa só será vitoriosa a partir da aposta na mobilização permanente do movimento estudantil em unidade com os movimentos sociais de dentro e fora da USP, combinando diferentes iniciativas políticas. O que essa histórica greve já demonstrou é que lutando podemos de fato transformar a realidade, obtendo conquistas nas reivindicações que apresentamos. Seguiremos em mobilização por mais vitórias e saíremos de todo esse processo de luta com um movimento estudantil mais forte para enfrentar os projetos privatistas de Tarcísio e defendendo a universidade e o seu orçamento frente aos debates sobre a reforma tributária.
Nas ruas, nas praças, quem disse que sumiu? Aqui está presente o movimento estudantil!
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Cronologia das políticas da Reitoria até a aprovação dos “Parâmetros de Sustentabilidade” (Fonte: Revista da ADUSP – Setembro de 2017, nº 61)
Maio/2014: USP propõe zero de reajuste salarial para funcionários
Agosto/2014: Reitor anuncia desvinculação do HU e HRAC; CO aprova desvinculação do segundo
Setembro/2014: Governo estadual rejeita incorporar HU e HRAC; Aprovado no CO 1º PIDV (Plano de Incentivo à Demissão Voluntária)
Janeiro/2015: Reitoria fecha a Creche do HU e corta 141 vagas nas Creches da USP
Agosto/2015: Estadão revela ilícitos na FUSP e Reitor abafa o caso; PRCEU adia seminário sobre direitos e desconvida Adusp e Sintusp
Fevereiro/2016: Reitoria retira tapumes que cercavam área contaminada na EACH
Abril/2016: Codage (órgão da Reitoria) ameaça despejar o Sintusp da sua sede;
Junho/2016: Denúncia contra FDTE e Escola Politécnica; Reitoria se cala;
Julho/2016: CO aprova PIDV 2, proposto por Reitor;
Dezembro/2016: Iniciada construção da grade em torno da Reitoria, ao custo de R$ 651 mil
Janeiro/2017: Reitoria fecha a Creche Oeste
Março/2017: Aprovação dos “Parâmetros de Sustentabilidade” pelo CO
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