AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa, no poema “Autopsicografia”, aborda poeticamente, com sua genialidade, o tema da relação entre quem produz o texto e quem o lê. O texto é uma representação da realidade. Pode ser mais ou menos fiel a ela. Segundo Pessoa, a “dor”, a realidade ao ser transformada em palavras torna-se uma representação dessa realidade. Por isso, o poema fala das duas dores do poeta. A real e a que virou texto. Esta última seria a dor, a realidade “fingida”, a representação daquela primeira realmente sentida. O leitor não sente as duas dores do poeta. Sente uma outra “dor”, uma outra realidade, a sua. Em outras palavras, o leitor pode interpretar algo bem diferente do que disse o autor. Isso vale bastante para textos poéticos, metafóricos, nos quais predomina a linguagem figurada. Mas também vale para textos em que predomina a linguagem denotativa, direta, não figurada, como artigos jornalísticos por exemplo. Quando isso ocorre, aí é erro grave do leitor. Infelizmente esta interpretação que nada tem a ver com o texto produzido tem sido muito comum em debates, inclusive entre setores da esquerda.
Lembrei-me deste poema ao ler um artigo escrito por Júlio Turra do Trabalho, corrente interna do PT e da CUT. Neste artigo intitulado “Sobre o anúncio de uma volta à CUT”, Turra quer polemizar com o artigo “40 anos da CUT. Passado, presente, futuro” escrito por mim e publicado no site do Esquerda Online. Qualquer leitor atento e bem intencionado, em nenhum momento, lê no meu artigo qualquer anúncio de uma volta à CUT. O objetivo do texto, aproveitando as comemorações dos 40 anos da Central, é, à luz da sua história, discutir as tarefas atuais dos movimentos sociais e do movimento sindical em particular, na visão deste escriba. Entre as tarefas está recompor o organismo de Frente Única que se formou durante a campanha Fora Bolsonaro com todas as entidades dos diversos movimentos sociais, da juventude, partidos políticos da classe, as Frentes Povo sem Medo, Brasil Popular além das centrais sindicais. Aliás é bom lembrar que os movimentos de moradia, de negros e negras, de mulheres, dos povos originários, LGTBQI+, estudantil tiveram papel mais importante que as próprias centrais nas mobilizações pelo Fora Bolsonaro. Insisto no meu texto que em Frente Única se organize mobilizações com um programa de reivindicações da classe trabalhadora cobrando do governo seu atendimento. Dessa forma se combate a ultradireita e os fascistas, além da direita liberal que pressiona o governo Lula a ceder cada vez mais numa política de conciliação de classes.
Júlio é militante antigo, dirigente da CUT há anos, com boa formação, por isso espantou-me a confusão que fez entre Fórum das Centrais e organismo de Frente Única como a descrevi no parágrafo acima. Obviamente, o Fórum das Centrais não é organismo de Frente Única de toda a classe. Surpreendeu-me também, além da confusão entre as duas coisas, a pouca importância que deu à necessidade da Frente Única na atualidade. Em seu artigo de polêmica, faz uma crítica pesada a mim e à Resistência/Psol dizendo que anunciamos uma volta à CUT, mas não fazemos balanço das rupturas ocorridas no passado. Comete dois erros. O primeiro é que não existe anúncio de volta à CUT. O segundo é exigir balanço para algo que não está proposto no artigo. O artigo “40 anos da CUT…” constata um fato sem fazer avaliações: que houve rupturas, algumas por razões políticas, outras por razões financeiras, grana, dinheiro. E perante o enfraquecimento da maioria dos sindicatos, a fragmentação das centrais, as tarefas da atualidade, o peso da ultra direita, da direita liberal, é preciso reorganizar democraticamente o movimento sindical em base a independência diante dos patrões e governos e a autonomia em relação aos partidos. É preciso reorganizar com um programa que atenda as necessidades da nossa classe, inclusive dos setores que não estão organizados nos sindicatos atualmente. O movimento sindical precisa fortalecer a relação com os movimentos de moradia, de luta pela terra, movimento das mulheres, de negras e negros, ambientalistas, juventude, LGTBQI+. Assim os sindicatos se fortalecem também.
Meu caro amigo, a Resistência-PSOL é uma corrente democrática. Não funciona por decisões de seus dirigentes. Tem responsabilidades na luta de classes porque tem inserção social. E com responsabilidade e democracia debatemos a situação da conjuntura e possíveis tarefas colocadas. Com certeza debateremos a atual fragmentação das Centrais e o que fazer diante disso, inclusive fazendo os balanços necessários. Caso sejamos convidados a saudar o Congresso da CUT ao lado de outras centrais e organizações políticas, o faremos com o maior prazer, porque respeitamos os 40 anos da CUT, mesmo que tenhamos críticas. Nessa saudação colocaremos nossas opiniões. Meu artigo alinhava algumas. Há uma crítica que nos poderia ter sido feita com clareza: atacar a Resistência/Psol por defender permanentemente e com afinco a Frente Única. Esta é uma boa polêmica e um balanço do período recente comprova que tivemos razão. Júlio Turra em outras polêmicas comigo costumava ser mais atento e sempre bastante respeitoso ao que eu escrevia ou falava. Por isso me surpreendeu agora. Talvez, quando tenha lido meu texto estivesse com o coração meio eufórico o que teria ofuscado a razão. Como diz Fernando Pessoa, é “o comboio de corda que se chama coração”. Compreendo. Então sugiro que o releia, agora com um pouco menos euforia e com um pouco de mais peso na razão.
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