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TEORIA

Uruguai – 1973: Uma derrota estratégica

Quinta-feira, 12 de julho de 1973. Dezenas de milhares de trabalhadores voltam ao trabalho. Em fábricas, canteiros de obras, oficinas, bancos, frigoríficos, hospitais, escritórios. A “normalidade” do trabalho começa a ser restabelecida.

Ernesto Herrera, com tradução de Waldo Mermelstein

50 anos do golpe de Estado

Correspondência de imprensa, 2-7-2023

Em muitos desses lugares, assim que os trabalhadores chegam ao trabalho, encontram as mesmas imagens perturbadoras: outdoors sindicais e placas de solidariedade arrancadas. Vestiários com gente faltando, armários vazios. Nenhum vestígio de organização ou luta recente.

Na véspera, a Mesa Representativa da já proibida CNT (Convenção Nacional dos Trabalhadores) decidiu suspender a Greve Geral: 22 sindicatos a favor, 2 contra, 4 abstenções. A resolução observou:

“Nas circunstâncias atuais, seu prolongamento indefinido só levaria ao desgaste de nossas forças e à consolidação das do inimigo. Não saímos dessa batalha derrotados ou humilhados. Pelo contrário, o heroísmo demonstrado ao longo de seu desenvolvimento, particularmente pelos destacamentos mais fortes da classe operária (…) mostra que a força dos trabalhadores, apesar das feridas recebidas, não foi fundamentalmente amassada. [1]

Àquela altura, centenas de grevistas e militantes já estavam presos em quartéis e no Cilindro Municipal de Montevidéu, o maior estádio de basquete do país. Aqueles que conseguiram escapar da caça repressiva se refugiaram na clandestinidade. Alguns vagando ao ar livre, outros acolhidos por amigos, familiares, centros paroquiais. Tudo escondido.

Ao contrário da direção da CNT, os empresários leram o quadro com precisão. Fizeram as contas e agiram, sem demora. Revigorados pela vitória golpista, impediram qualquer esforço de reorganização sindical pela base, proibindo até mesmo os distintivos em forma de roseta. A palavra “companheiro” tornou-se suspeita para capatazes e gerentes. Tinha que ser pronunciada em tom sussurrado. Os “encrenqueiros” mais proeminentes foram demitidos quase imediatamente. Era o teste do empregador para medir a capacidade de reação dos trabalhadores. Não havia.

Imediatamente, os acordos firmados e as categorias funcionais foram ignorados. Turnos de trabalho, “vales” quinzenais (adiantamentos salariais), férias anuais foram “remarcadas”. As horas extras voltaram a ser pagas “sem um plus”. As roupas de trabalho passaram a ter um custo. Todas as conquistas anteriores foram pisoteadas.

Não havia razão para se confundir. Foram os primeiros sinais de uma derrota estratégica indisfarçável. A Greve Geral que enfrentou o golpe de Estado de 27 de junho não conseguiu impedir a consolidação de um regime “cívico-militar” que devastaria todas as liberdades democráticas por mais de uma década.

Nos dias e semanas que se seguiram ao levantamento da greve, a indignação acelerou-se. Inúmeras “listas negras” começaram a circular. Nelas, as câmaras empresariais e o Ministério do Interior “marcaram” os ativistas. Eles foram impedidos de conseguir um emprego em qualquer ramo da economia. Milhares foram demitidos no setor privado (mesmo sem indenização). Muitos outros “convocados” e depois demitidos na administração pública.

Era preciso se reciclar para sobreviver. E muitos não encontraram outra opção senão fazê-lo nos bicos eventuais, que não exigiam antecedente laboral, nem ficha policial limpa. Passaram por várias “profissões”. Assim, improvisaram um novo “saber operário” em condições de superexploração. Entre 1974 e 1981, os salários caíram 30%.

Foram impostas “novas formas de relações de trabalho”. Geradas pela “queda dos salários reais, pelo aumento da jornada de trabalho e sua intensidade, e pela maior participação das mulheres, com salários médios mais baixos, no mercado de trabalho. Tudo isso resultou em um aumento substancial da mais-valia absoluta e relativa extraídas. Isso foi complementado por uma desqualificação do conhecimento dos trabalhadores resultante do exílio forçado do contingente mais qualificado da força de trabalho.” [2]

Em meados de 1974, milhares de trabalhadores e suas famílias haviam se exilado economicamente na Argentina, Europa, Canadá, Austrália. Com o mal-estar em suas malas. Alguns nunca mais voltaram. Outros apenas em 1985, quando ocorreu a “restauração democrática”.

***

O levantamento da greve implicou o “regresso ao trabalho” nas condições impostas pelos golpistas. Prova categoricamente de que o equilíbrio da correlação de forças pendeu contra os trabalhadores e suas organizações.

Com o fim da greve, o Estado e as frações dominantes das classes proprietárias restabeleceram o controle da “disciplina social”. Sem a necessidade de se ater às “tradições cívicas”. Que estariam obsoletas. A “velha classe política”, desgastada, “inepta e corrupta”, foi expulsa do poder. Não havia necessidade de artimanhas legalistas. O formato institucional do regime de dominação foi radicalmente rompido. Não só sua fachada. A fábula do “Uruguai liberal”, igualitário e tolerante, famoso por seu modelo “exemplar” de partidocracia, deu lugar a uma duríssima ordem contrarrevolucionária. Atroz, obscurantista.

Pioneiro, vale ressaltar, ao inaugurar o ciclo do terrorismo de Estado no Cone Sul durante os anos 70. Sem os bombardeios e tiroteios massivos desde o primeiro dia, como aconteceu na investida fascista que derrubou o governo popular de Salvador Allende, mas, certamente, com o mesmo instinto criminoso.

Do lado de cá da cordilheira, “apenas dois mortos”: Ramón Peré e Walter Medina, jovens estudantes baleados pela polícia enquanto pintavam alguns muros durante a Greve Geral. Embora a famigerada lista de crimes contra a humanidade, com milhares de presos políticos e torturados, centenas assassinados e desaparecidos, viria a ser feita mais tarde, no âmbito do obscuro Plano Condor que operou na Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.

A máquina totalitária tinha como alvo as organizações sindicais e estudantis, a Frente Ampla e todas as forças de esquerda, a liberdade de imprensa, a criatividade cultural. Eram os principais inimigos, alvos estratégicos a serem destruídos. Isso foi ensinado nos manuais de contrainsurgência da “Doutrina de Segurança Nacional”, inspirados em Washington.

Nesse quadro de terror implacável, qualquer manifestação de resistência rendia uma longa pena pelo crime de “sedição”, ditado por uma Justiça Militar que, por sua vez, colocava os juízes, promotores e “advogados de ofício” (civis e militares) que fingiam defender os acusados.

Em 1964, o movimento sindical havia decidido por uma Greve Geral em caso de golpe de Estado. A medida foi ratificada pela CNT em 1967, logo após sua fundação. Acrescentar-se-ia “com ocupação”, para concentrar a força nos locais de trabalho e “evitar a dispersão”. A resistência seria com “métodos pacíficos”.

Nenhuma das inúmeras sequências fotográficas da época dá conta de policiais e soldados feridos ou atacados durante a greve.  Um sinal inescapável de que a resistência não ultrapassou em nenhum momento as indicações da CNT, hegemonizada pelo Partido Comunista.

As propostas de utilização de métodos mais militantes de resistência foram apresentadas em nome da “unidade” do movimento operário.  As iniciativas isoladas de exercício do legítimo direito de legítima defesa não faziam parte da orientação estratégica da greve. Elas foram criticadas em assembleias de ativistas onde foram debatidas as alternativas: sair do confinamento das ocupações, o que permitia que a repressão fosse focalizada; levar a disputa às ruas com protestos massivos, que insinuassem para a sociedade uma percepção de algo como um “podre dual”; que a greve buscava derrubar a ditadura.

Mas não. Esses objetivos não figuravam nas expectativas da CNT, nem nas da Frente Ampla. Que continuaram a apostar todas as cartas em uma aliança fantasiosa com os setores “constitucionalistas” das Forças Armadas. Que, aliás, se viessem a existir, não tinham poder de comando sobre as tropas, nem de fogo. As unidades militares mais importantes responderam decisivamente aos golpistas.

Nesse contexto, o único arsenal dos grevistas consistia em sua própria convicção, no incentivo dos moradores da vizinhança, no apoio dos estudantes e na inevitável entoação do hino nacional no momento dos despejos.

Pelo contrário, as fotografias dão conta da crueldade repressiva em dezenas de fábricas, na refinaria, no Frigorífico Nacional e em muitos outros lugares ocupados. Trabalhadores espancados, feridos, ensanguentados, submetidos aos gases disparados pelas tropas, algemados e chutados no chão. Obrigados a apagar com a língua, muros e cartazes que diziam palavras de ordem contra o golpe de Estado.

Armas de guerra contra panfletos impressos em hectógrafos caseiros. Bairros operários invadidos, militarizados, para desmantelar a ampla solidariedade popular aos grevistas. Uma luta tremenda, heroica, desigual, onde os trabalhadores demonstravam uma vontade constante de lutar e se sacrificar:

“Sem direção ou diretrizes claras, os despejos e a repressão foram resistidos firmemente, para reocupar assim que os militares saíssem (…) chegaram, como em Alpargatas, para ocupar e reocupar a fábrica até 8 vezes, para acabar continuando a ocupação em Cervecerías quando o Exército se instalou na fábrica”. [3]

Desde fevereiro que se sabia que o golpe de Estado era “iminente”. No entanto, a CNT não deu um passo na direção do confronto decisivo. Sem preparação centralizada. Sem recomendações defensivas mínimas. Zero “fundo de greve”. Cada sindicato, cada comissão de base, todos os grevistas, tinham que responder com o que tinham em mãos.

Fizeram-no, disciplinados às poucas diretrizes da central sindical. 1) Ocupar e não resistir em caso de despejo; 2) Reocupar se as condições o permitirem; 3) Nenhum estranho no local ocupado, exceto outros trabalhadores despejados, 4) Apoiar-se na solidariedade do bairro, realizando atividades com os vizinhos, pequenos comerciantes e feirantes.

Mas a escala da greve estava se enfraquecendo. No quinto dia, os transportes urbanos e suburbanos, dirigidos por sindicalistas do Partido Comunista, desertaram. A partir desse momento, as grandes áreas comerciais voltaram à plena atividade. No interior do país, a mesma coisa. O clima de confronto dos primeiros dias foi diluído.

Em sucessivas reuniões com dirigentes da CNT (no decurso da própria greve), os comandantes militares já tinham rejeitado as reivindicações que resumiam o “programa” da greve “para a recuperação do país”. Pleno exercício dos direitos sindicais e políticos; liberdade de expressão; medidas de “saneamento econômico”, como a nacionalização do sistema bancário, do comércio exterior e da indústria frigorífica; recuperação do “poder de compra” dos salários e pensões; Controle de preços subsidiando produtos de consumo popular.

Sem mencionar Juan María Bordaberry (Partido Colorado), presidente da República, que havia acordado um “cogoverno” com as Forças Armadas em fevereiro de 1973, instituindo o Conselho de Segurança Nacional (COSENA), um verdadeiro órgão de poder do Estado desde então. Nem sobre sua renúncia e a exigência de convocar novas eleições, antecipando-as, sem esperar por 1976.

Nesse sentido, a direção da CNT manteve sua coerência irresponsável durante a greve. Apostando até o último momento, no ilusório “contragolpe” da ala “progressista” das Forças Armadas.

Na segunda-feira, 9 de julho, “às cinco horas” da tarde, no centro de Montevidéu, cerca de 30.000 pessoas desafiaram os tanques do exército e os lançadores de água da polícia com pedras e alguns coquetéis molotov improvisados. Centenas de manifestantes foram alvejados a tiros e outros foram presos, incluindo o general da reserva Líber Seregni, presidente da Frente Ampla. Foi a única convocação da CNT para um protesto em massa em duas semanas. Demonstração tardia de força. Àquela altura, a greve havia sangrado.

Foram necessárias décadas para que um dos principais dirigentes da CNT e do Partido Comunista desses anos esclarecessem o “balanço” apresentado na resolução de 11 de julho, quando a greve foi finalizada. O relato mudava a história:

(…) A greve geral ocorreu muito isolada da sociedade como um todo, com muita simpatia popular, mas sem forças políticas e sociais que se somassem de alguma forma. Não se tornou uma greve cívica, uma greve nacional (…). Foi uma greve de resistência, que resistiu enquanto pôde. Servir, certamente serviu. Nunca disse que os derrotamos. Eles nos derrotaram e nos massacraram, mas de alguma forma a greve isolou socialmente a ditadura.” [4]

Embora não tenha havido autocrítica sobre o cúmulo de desinformação e desorganização que foi a CNT durante a greve, nem sobre a estratégia adotada, o relato estava mais próximo da realidade do que aconteceu.

A outra conclusão era uma verdade bem conhecida. A ditadura uruguaia nasceu “órfã” de uma base social ativa a seu favor. Uma diferença, que também vale a pena registrar, em relação aos golpes do Chile (setembro de 1973) e da Argentina (março de 1976). Mas o custo político e econômico, social e humano, pago pela classe trabalhadora, era muito semelhante. Trágico.

***

Alguns meses antes, em 9 de fevereiro (quando o golpe de Estado já estava em curso), as Forças Armadas tornaram públicos os “Comunicados 4 e 7”. Foram recebidos com entusiasmo pelo Partido Comunista que, pela boca de seu principal teórico, Rodney Arismendi, propôs a frente única “entre macacão, batina e farda”. Outras forças da Frente Ampla e a direção da CNT adotaram a mesma posição. Concordaram com o diagnóstico: o pronunciamento militar expressava “objetivos programáticos comuns” e a existência de uma corrente nacionalista de pensamento “peruano” [5] dentro do aparato militar. Tinha que ser apoiado. Porque reafirmava que o dilema fundamental continuava a ser entre “Oligarquia ou Povo”, e as Forças Armadas eram, nessa lógica, parte do povo e não simplesmente o braço armado da oligarquia.

Algum tempo depois, os próprios militares reconheceriam que os comunicados serviram para “neutralizar” a esquerda a caminho da ditadura. E outra coisa: que algumas das questões econômicas mencionadas nos comunicados haviam sido resultado de negociações com líderes do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (a maioria deles já presos) no Batalhão da Flórida. [6]

Em 27 de junho, a longa “crise nacional” terminou. O bloqueio do regime de dominação foi destravado. O Parlamento, caixa de ressonância do fracionamento dos “partidos tradicionais”, foi dissolvido. A “solução autoritária” tinha o caminho pavimentado.

Embora sua gênese tenha vindo de muito tempo atrás. Com os governos colorados de Jorge Pacheco Areco e Juan María Bordaberry, a repressão liderou a agenda: “medidas de segurança imediatas” [7] para esmagar greves, militarização de funcionários públicos, assassinatos de estudantes, tortura de presos políticos (principalmente da esquerda “guerrilheira”), esquadrões da morte, proibição de partidos de esquerda, fechamento de meios de comunicação.

Com a derrota estratégica de junho-julho, encerrou-se o ciclo de ascenso das lutas operárias e populares, que atingiu seu ponto mais alto nos anos 1968-1972. Com isso, o processo de “acumulação de forças” do movimento popular foi bloqueado. As organizações de “intenção revolucionária”, destruídas.

Os debates sobre o programa de “reformas estruturais”, o papel da greve geral, as “vias de aproximação ao poder” e o “armamento da vanguarda” não voltaram a estar presentes. Tampouco foi recuperada a força das correntes “classistas e combativas” que, nos “anos duros”, disputaram espaços de influência à hegemonia “reformista” no movimento sindical. Os métodos de “luta política com armas” do MLN e de outros grupos inspirados no guevarismo haviam sido derrotados, muito antes do golpe de Estado.

***

De certa forma, o fio da “memória histórica” foi cortado. Mesmo que as comemorações rituais continuem a evocar, legitimamente, aquela “gloriosa greve”. Meio século depois, a classe trabalhadora é muito diferente, não apenas por razões geracionais.

A “consciência de classe” foi dando prioridade à “identidade nacional” numa sociedade em que os principais agentes políticos, de todos os partidos do sistema, se reconhecem como “adversários, mas não inimigos”. A Frente Ampla foi reciclada no “campo progressista” e governou por 15 anos. A “mudança possível” mantinha trancafiada sob sete chaves qualquer ideia de horizonte anticapitalista. Agora, a “luta de classes” pode realizar-se, sem antagonismos radicais, no quadro de uma indissolúvel “convivência democrática” que segue rigorosamente o rito do “Nunca Mais”.

Na terça-feira, 27 de junho de 2023, o PIT-CNT convocou uma “greve geral parcial” entre 9 e 13 horas por dia, e uma marcha da refinaria ANCAP (estatal de petróleo) até a sede da Federação do Vidro, onde, em 1973, a CNT decidiu iniciar a Greve Geral, no emblemático bairro operário de La Teja. Como homenagem aos combatentes contra o golpe de Estado. Algumas centenas de manifestantes acompanharam a convocação.

Enquanto isso, como em todas as “greves gerais parciais” decretadas pelo aparelho sindical, a maior parte dos assalariados, mais de 60%, foi para seus postos de trabalho. Eles se adaptaram à rotina horária de cada dia. Ou seja, não tiraram as quatro horas de descanso para recordar. Os sindicatos dos transportes também não paralisaram, embora desta vez tenham “aderido” à convocação.

De qualquer forma, grande parte dos trabalhadores acompanhou de perto a intensa cobertura midiática das comemorações. Muitas delas emocionantes. Em meio, é claro, da precariedade do emprego, dos salários “submersos” e da pobreza generalizada imposta pelas formas “modernas” de exploração capitalista.  Que não contemplam como produtivo o tempo perdido na memorização de experiências formidáveis de lutas coletivas. Por outro lado, irrepetível.

Anotações

1] “A CNT de fevereiro a junho de 1973”. Documentos do PIT-CNT.

2] A ditadura financeira. Livro escrito por Juan Berterretche e Aldo Gili, sob o pseudônimo de Juan Robles e Jorge Vedia. Editorial LETRO, Montevidéu, 1983.

3] 15 dias que abalaram o Uruguai. Ensaio escrito por Pablo Ramírez, pseudônimo de Jorge Guidobono, publicado originalmente na Revista de América, abril-maio de 1974, Buenos Aires.

4] Entrevista com Vladimir Turiansky no livro de Alfonso Lessa, O “Pecado Original”. A esquerda e o golpe militar de fevereiro de 1973. Editorial Sul-Americana, Montevidéu, 2012.

5] Em referência ao regime militar presidido pelo general Juan Velazco Alvarado no Peru, e caracterizado como nacionalista e progressista.

6] Negociações realizadas quando a estrutura militar do MLN já havia sido desmantelada pela repressão. Eles foram suspensos pelos militares, que exigiram uma rendição política “incondicional” dos guerrilheiros.

7] As Medidas Imediatas de Segurança são competências emergenciais previstas na Constituição da República, que permitem ao Poder Executivo suspender temporariamente certas garantias em casos graves e imprevistos de agressão externa ou comoção interna.

Anexo

O colapso dos transportes *

Por que os ônibus da capital não foram dispersos nas fábricas ocupadas? Ou outra alternativa proposta pelos trabalhadores das oficinas, por que não foi retirada alguma parte do motor dessas unidades, o que teria impedido seu uso sem prejudicá-las? Essas perguntas não foram respondidas na época e poderiam explicar por que o transporte não desempenhou o papel que deveria ter desempenhado na greve geral.

Uma das explicações admitidas 20 anos depois dos acontecimentos poderia ser muito simples, mas teve um impacto muito importante. Héctor Bentancurt, principal dirigente do Sindicato AMDET (sistema municipal de transporte urbano de Montevidéu, que não existe há décadas) e da Federação dos Trabalhadores em Transportes (FOT), assustou-se e desapareceu, deixando a organização à deriva. Que assim fosse, indicava que naquele sindicato as relações eram totalmente verticais.

Segundo um dos presentes, Bentancurt estava na reunião na sede do Partido Comunista, na noite de 26 de junho, quando Gerardo Cuesta (metalúrgico) noticiou a iminência do golpe de Estado e propôs a que se organizasse a greve geral planejada pela CNT. Quando a breve reunião terminou e a maioria partiu para a união, Bentancurt hesitou em sair.

“E agora o que eu faço?”, disse Bentancurt, sentado, com a cabeça nas mãos e chorando, segundo a versão de outro dos presentes na reunião. “Vá cumprir com seu dever”, teria respondido um de seus colegas comunistas. Bentancurt saiu, mas não se sabe para onde e foi impossível encontrá-lo nos dias seguintes, no sindicato ou nos locais de trabalho onde a greve foi decidida.

Ignacio Huguet (Partido Socialista), secretário do COT (Congresso dos Trabalhadores Têxteis) e membro do Comando da CNT, encontrou-se com Bentancurt na rua no sábado, 30 de junho, perto da Avenida General Flores. Segundo o dirigente têxtil, Bentancurt lhe disse que estava procurando o Comando da CNT para informar que a greve dos transportes era insustentável.

Um homem desapareceu e um sindicato ruiu? Bem, sim, isso era possível naquela época. Havia muitos sindicatos que dependiam da presença de um, dois ou três dirigentes, sem estruturas intermediárias e de base bem-organizadas e capazes de suprir a ausência de um dirigente. Esse verticalismo ocorreu com mais frequência nos sindicatos que seguiam as orientações do Partido Comunista.

No entanto, essa não foi toda a explicação para o que aconteceu naquele setor durante a greve geral. O Comando de Greve da CNT e o Partido Comunista do Uruguai fizeram uma tentativa de recuperar a paralisação dos transportes e chamaram Salvador Escobar, ex-dirigente sindical da AMDET, que havia sido designado para tarefas internas do partido.

Escobar disse que no domingo, 1º de julho, lhe foi confiada a missão de recompor a greve na AMDET. “Bentancurt começou a dar a orientação para voltar ao trabalho”, explicou o ex-dirigente sindical. De um café perto das oficinas da AMDET, Escobar conseguiu reagrupar os trabalhadores na segunda-feira e chegar a um acordo para paralisar as unidades na terça-feira, em todas as estações, mas estava convencido de que a greve não poderia ir mais longe, caso se quisesse que o sindicato se mantivesse unido.

“Se os azuis (as unidades da AMDET) pararem, a greve estará assegurada”, era o slogan que definia as condições de luta em todo o sindicato. Para Escobar, a resposta do transporte foi dada de forma fundamental. “A classe trabalhadora sozinha não pode, nós vamos nos enfraquecer”, foi sua posição. Mas Escobar disse que o comando da CNT foi consultado e aprovou o fim da greve na AMDET.

“O que aconteceu na AMDET foi uma surpresa. A responsabilidade não é só de Bentancurt, seria uma explicação muito fácil”, disse Mario Plasencia, secretário-geral da Organización Obrera del Ómnibus (Tres O), o sindicato da CUTCSA (a principal empresa privada de transportes urbanos e suburbanos até hoje), que respondeu à CNT. A situação na CUTCSA era complexa, pois havia o Sindicato dos Ônibus Autônomos (SAO), com peso semelhante aos Três O’s, e havia 1.600 trabalhadores proprietários, devido à organização cooperativa da empresa.

“A apropriação de um bem privado nunca foi considerada. Deter as unidades significava um conflito com os empregadores”, respondeu Plasencia quando questionado sobre a dispersão ou a retirada de um pedaço dos ônibus para evitar que eles saíssem para a rua. Os trabalhadores que ocupavam os escritórios, as oficinas e o maior estacionamento de ônibus da CUTCSA, foram despejados no sábado 30 e não puderam reocupá-los, porque os militares deixaram uma guarda permanente no local.

“Os patrões não agiram como agiram num conflito interno, respeitaram a atitude dos trabalhadores em defesa das instituições, mas não iam parar de qualquer maneira”, explicou o líder dos Três O’s. Após os decretos repressivos de 4 de julho e os “plebiscitos” organizados pelos militares, o sindicato autônomo voltou ao trabalho. Os Três O’s mantiveram a greve até o final da greve resolvida pela CNT, mas isso representou um quarto do quadro de funcionários da empresa.

“As informações que tínhamos na CNT sobre o nível de organização no transporte eram falsas. Talvez para um protesto tivesse funcionado, mas na greve rapidamente desmoronou”, explicou Luis Iguiní (líder da Confederação dos Funcionários do Estado, membro do Partido Comunista), então membro do secretariado da central. Salvador Escobar, envolvido em algum momento desse episódio, lamentou que não tenham sido abertas instâncias no movimento sindical para analisar o que aconteceu nos transportes durante a greve geral.

Vários sindicatos propuseram ao Comando de Greve incendiar as unidades de transporte que saíram às ruas. Com milhares de militantes determinados, a medida era perfeitamente viável, mas a CNT naturalmente rejeitou a proposta. Tanto por ter endossado o retorno ao trabalho na AMDET quanto por não considerá-lo uma medida adequada de confronto. As tendências mais radicais tentaram colocá-la em prática, mas não tiveram capacidade para isso.

Na fábrica têxtil La Aurora, na assembleia para levantar a greve geral, o líder Juan Angel Toledo (Partido Comunista) disse que, quando foi feito um balanço do que aconteceu, os líderes dos transportes teriam que receber “uma medalha de merda”. Toledo disse que seus ex-companheiros comunistas o denunciaram por essa atitude perante a direção do partido. Naquela época, não era permitido fazer uma crítica pública a um camarada, por mais errado que ele fosse.

* Fragmento do livro Las historias que no nos contaron. 1973: Golpe de Estado e Greve Geral, de Víctor L. Bachetta. Edição de Sites da Memória Uruguai, 2023.