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TEORIA

O Novo Curso: 100 anos da luta por um regime partidário saudável

Henrique Canary, da redação

O cérebro humano costuma captar melhor as últimas imagens de qualquer evento. Lembramos melhor das despedidas, da cena final de um filme, da última música de um show. Com os fatos históricos, não é diferente. A história fixa, via de regra, a última forma dos fenômenos, mas prefere desprezar ou, como mínimo, diminuir a importância de seus primeiros estágios e fases intermediárias. Trótski é conhecido como um crítico feroz do stalinismo e da degeneração do partido bolchevique e do Estado soviético. Mas isso só é verdade a partir do final dos anos 1920, e sobretudo nos anos 1930, quando essa degeneração atingiu patamares que não podiam mais ser revertidos e exigiam uma nova revolução no partido e no Estado. Até a primeira metade dos anos 1920, a luta de Trótski não podia ser considerada uma luta revolucionária. A Revolução de Outubro ainda estava muito viva na memória de todos, a burocratização não atingira níveis críticos e se mantinham vivas as esperanças de reforma no partido e no Estado. Essa luta, essencialmente reformista, propositiva, parcial e mediada – mas ao mesmo tempo previdente – está expressa no livro O Novo Curso, recentemente lançado pela Usina Editorial e pela Contrabando Editorial.

Inédito em língua portuguesa, O Novo Curso é uma coletânea de artigos publicados por Trótski em 1923 nas páginas do Pravda, quando apenas se abriu o debate interno sobre os rumos da revolução e do partido. Trata-se de uma série de textos críticos que tinham como objetivo convencer o partido da necessidade de realizar reformas democráticas em sua estrutura e funcionamento, bem como modificar parcialmente alguns elementos da política externa e econômica. Esse é exatamente o traço mais interessante de O Novo Curso: nele vemos o início da luta, seus primeiros estágios, o vocabulário e as palavras de ordem dos primeiros embates.

Em primeiro lugar, salta à vista o esforço de Trótski por engajar a juventude partidária na luta pela reforma e preservação da organização. No primeiro capítulo, intitulado “Questões geracionais”, Trótski reafirma o valor da velha guarda partidária na preservação do programa histórico do proletariado, mas nos lembra que o futuro pertence aos jovens. A experiência de Outubro e pré-Outubro é fundamental, nos diz Trótski, mas a experiência pós-Outubro adquire cada vez mais importância: a luta na Guerra Civil, a condução do Comunismo de Guerra, o enfrentamento dos novos problemas da economia, da política e da cultura. Tudo isso eleva a importância do papel da juventude no seio da organização. Ao mesmo tempo, a juventude se encontra ainda alijada das principais decisões partidárias, da condução do cotidiano da organização, que é o cotidiano do próprio Estado. Trótski nos alerta sobre os perigos da ruptura geracional, do enfrentamento entre distintas gerações ao invés da colaboração entre elas. A proposta de Trótski é a valorização da juventude, não somente a juventude operária, mas inclusive a juventude intelectual e estudantil, principal termômetro das mudanças de humor na sociedade soviética. A incorporação desse setor na condução de fato do partido e do Estado poderia dar um novo impulso à construção do socialismo, dinamizando a vida partidária e modernizando as questões de administração e comando.

A segunda questão levantada por Trótski diz respeito à composição social do partido. O organizador do Exército Vermelho aponta o problema da diminuição do peso operário nos organismos partidários e defende que o partido tenha uma política consciente de promoção de novos dirigentes proletários vindos diretamente das fábricas, ou seja, ainda não contaminados com os vícios da administração estatal. Além de promover operários para a direção, é preciso que a própria base da organização mantenha seu caráter proletário. Trótski defende então o fortalecimento das células operárias, a adaptação do partido às necessidades da classe e a transformação do trabalho de administração em um verdadeiro trabalho político intelectual, no qual os operários fabris terão um pape central. Trótski aponta a distância entre a direção partidária e a base proletária e propõe medidas para reverter essa dinâmica.

Em um terceiro capítulo, intitulado “Grupos e frações”, Trótski nos lembra que o surgimento de uma fração ou de reflexos fracionalistas no interior da organização é, evidentemente, um mal, mas que isso não esgota ou resolve o problema. O fracionalismo deve ser encarado com naturalidade e paciência por parte da direção “atacada”. Deve-se evitar as medidas organizativas meramente estatutárias que apenas agudizam os problemas ao invés de resolvê-los. Uma direção inteligente, diz Trótski, deve enfrentar uma fração com política e educação partidária, com ação revolucionária, nunca com burocratismo e medidas de gabinete. O melhor remédio contra as frações são a atenção para com as demandas dos quadros, a flexibilidade do aparato partidário e o incentivo à ação organizada da base, e não o apagamento das vozes dissonantes nem o levantamento do espantalho da ruptura cada vez que alguém escreve um documento ou faz críticas em uma célula. Trótski afirma que o próprio fracionalismo é, na maioria dos casos, uma reação desequilibrada ao burocratismo do aparato, que tolhe o livre desenvolvimento e a livre iniciativa dos organismos de base. Exatamente por isso, deve ser enfrentado com equilíbrio, inteligência e confiança no programa comum da organização.

Trótski analisa os perigos implícitos no isolamento internacional da Revolução Russa, que já dura a essa época seis anos, rejeita o ultimatismo ultraesquerdista e defende a adoção de quaisquer mecanismos que permitam ao Estado soviético “ganhar tempo”. Mas nos lembra que, do ponto de vista estratégico, não há outra saída a não ser o encontro entre a Revolução Russa e a revolução na Europa Ocidental.

Há ainda inúmeras outras importantes reflexões em O Novo Curso, como sobre a questão da tradição partidária, os desafios da construção econômica socialista num contexto de isolamento, o problema do campesinato (sua importância e limitações), a natureza do leninismo, o método de debate interno, a NEP, o planejamento econômico, a formação e educação do Exército Vermelho e seu papel na construção socialista, o princípio da autoridade, o problema da disciplina e do conservadorismo partidário.

De um modo geral, O Novo Curso é um livro extremamente atual porque foi escrito no contexto de uma luta positiva pela preservação de uma organização e de um Estado que ainda podiam ser considerados socialistas e revolucionários. É claro que não se pode comparar uma organização com centenas de milhares de membros, dirigente do Estado, com as organizações da esquerda atual, com suas poucas centenas de militantes e sua angustiante marginalidade. Ainda assim, O Novo Curso é um horizonte para a as atuais organizações de esquerda que se reivindicam revolucionárias e que enfrentam problemas e desafios naturais e inevitáveis em seu desenvolvimento. É um parâmetro adequado porque não se trata de “derrotá-las” ou extirpá-las da face da Terra como “inimigas”, “traidoras”, “reformistas” ou “burocráticas”, mas de fortalecê-las e preservá-las para os embates futuros. É preciso um pouco de humildade entre todos para reconhecer que ninguém sabe ao certo qual organização ou frente de organizações vai cumprir um papel decisivo na inevitável futura revolução brasileira. Portanto, a preservação e o fortalecimento de todas as organizações atualmente existentes colaboram com o nosso fim comum. Nesse sentido, O Novo Curso pode ser um aprendizado importante.

A edição da Usina Editorial em conjunto com a Contrabando Editorial traz ainda anexos inéditos e importantíssimos para entender o contexto da obra, sua história e influência posterior. Em especial, destacam-se a “Declaração dos 46”, uma plataforma assinada por vários dirigentes bolcheviques diante dos primeiros sinais de burocratização do partido, e “A luta pelo Novo Curso”, um longo e aprofundado estudo de Max Shachtman sobre a história e significado do texto de Trótski. A tradução ao português e o posfácio são de Euclides Agrela, historiador que há muito tempo vem se dedicando ao tema em geral e a este texto em particular. Por fim, um excelente artigo da pesquisadora russa Valentina Vilkova, contextualizando O Novo Curso na luta que se abriu na URSS em 1923.

Em um momento tão difícil para a esquerda socialista mundial, diante de incontáveis rupturas de organizações que se reivindicam adeptas do centralismo democrático, O Novo Curso é um ponto de apoio, uma lição fundamental e um alento. Alguém viu mais longe e antes de nós e nos forneceu os elementos fundamentais da luta: a firmeza de princípios, o realismo revolucionário, a humildade e a paciência na construção partidária. Sem esses elementos, não há organização revolucionária possível.

Confira no site da Usina editorial ou da Contrabando Editorial