Nos últimos anos, no Brasil e no mundo, várias organizações de esquerda passaram por crises importantes: rupturas, expulsões, conflitos geracionais, acusações de assédio, perseguição, burocratismo etc. Vale ressaltar que essas correntes têm as mais distintas origens, desde partidos trotskistas até grupos stalinistas ou filostalinistas. O que há de comum entre essas organizações? Muita coisa, mas um traço chama a atenção: todas elas reivindicam o centralismo democrático como método de organização interna. Isso leva algumas pessoas a questionar se não estaria no próprio centralismo democrático a razão dessas crises. Seria esse regime interno capaz de sustentar uma organização saudável? Outros vão mais longe e colocam em dúvida a própria forma partido. Não estaria essa forma superada pela história? Há também aqueles que tratam de particularizar o problema: Trata-se daquela organização. Já a minha organização é perfeita e tudo nela corre bem. A verdade é que não há uma resposta fácil para o problema. Como toda questão complexa, deve ser encarada sem rodeios, tabus e preconceitos. Mas também sem conclusões apressadas.
A hipótese central deste artigo é a de que o problema reside não no centralismo democrático em si, mas no fato de que essa fórmula aberta e flexível foi erronamente interpretada pela maioria esmagadora das correntes de esquerda no país e no mundo. A ideia de um partido com ampla democracia interna e unidade na ação foi sendo paulatinamente – sob pressão e influência do stalinismo – substituída pela ideia de um partido simplesmente disciplinado, onde o aspecto democrático do regime acabou sendo, aos poucos, deixado de lado.
Não abordaremos aqui o problema oposto: o daquelas organizações que abandonaram o centralismo democrático em benefício de um regime frouxo e inorgânico, incapaz de garantir uma ação prática. Esse problema afetou também muitas organizações e é tão importante quanto o primeiro. Mas ficará para outra oportunidade.
O que é o centralismo democrático?
Ao que parece, o termo “centralismo democrático” foi pela primeira vez utilizado por Lênin em 1906, em sua “Plataforma tática para o Congresso de unificação do POSDR”. Este parece ter sido o momento em que o conceito se firma de maneira definitiva como a síntese dialética entre os elementos centralista e democrático no partido. Até então, estes princípios elementares do regime bolchevique apareciam de maneira isolada um do outro, em distintos materiais, enfatizando em cada caso concreto um ou outro aspecto do regime, sem compor ainda uma síntese superior. Analisando os materiais anteriores a 1906 encontramos em Lênin os termos “centralismo”, “disciplina”, “princípio eletivo”, “princípio democrático”, “centralismo burocrático”, “rígido centralismo”, “democratismo” etc., mas nunca “centralismo democrático”, o que parece indicar uma evolução não apenas da terminologia, mas do próprio conteúdo do conceito. Era o laboratório cerebral de Lênin em pleno funcionamento!
A definição que acabou sendo popularizada, principalmente depois da vitória da Revolução Russa, é a mais sintética possível. O centralismo democrático seria o regime partidário em que existe “ampla liberdade de discussão e total unidade na ação”. Ou, dito de outra forma, “discute-se, vota-se e todos aplicam a decisão da maioria”. Como se vê, essa fórmula não resolve, de antemão, nenhum problema. Em cada etapa de seu desenvolvimento, a organização socialista deve preenchê-la com um conteúdo concreto e distinto, a depender das questões colocadas.
Ocorre que o centralismo democrático como princípio organizativo precisa se expressar em uma série de regras (estatuto) e condutas (método), mas a fórmula geral não nos diz que regras e condutas seriam essas. Por exemplo, digamos que as opiniões no partido estejam divididas em uma proporção de 90% contra 10%. Nesse caso, seria fácil exercer a maioria e determinar que a linha a ser aplicada é aquela defendida por 90% da organização. Dificilmente haveria uma crise em função dessa decisão. Mas e se o partido está dividido na proporção de 55% a 45%? Será prudente bater o martelo e dizer que a linha aplicada será a da maioria e ponto final? O estatuto permite. Mas é prudente? Quais seriam os efeitos dessa decisão sobre os 45%? Será que esta importante corrente minoritária não reflete algo real (presente na realidade) que deve ser levado em consideração pela maioria?
Há muitas outras questões não respondidas pela fórmula “ampla liberdade de discussão, total unidade na ação”: A direção nacional pode intervir em organismos locais em nome da pureza da linha? Os membros da direção podem expressar suas opiniões em organismos de base? Em que casos e com quais mecanismos se expulsa um militante? Questões teóricas estão sujeitas ao centralismo? As discussões nacionais internas devem se dar somente durante os pré-congressos? Permite-se e criação de tendências e frações? Ou toda luta política só pode ocorrer de maneira individual? Em que momento a luta por uma posição política se torna “fracionalismo”? Quem julga esse “fracionalismo”? Posições minoritárias devem ser proporcionalmente representadas na direção? Os artigos de militantes publicados no órgão central da organização devem passar pelo crivo ou edição de algum organismo de direção?
Além dessas questões puramente regimentais, há outras que devem ser levadas em consideração: Em que medida as novas gerações partidárias estão representadas na direção? E os setores oprimidos? Por fim, questões bastante subjetivas: Qual é a cultura de debate dentro da organização? Aqueles que organizam tendências e frações para lutar por suas posições são excluídos e marginalizados internamente? Ou, ao contrário, são integrados e ouvidos e têm suas opiniões valorizadas?
O grande dirigente trotskista norte-americano James Cannon disse certa vez que, na atividade de direção partidária, não há substituto para a inteligência. Isso quer dizer que o centralismo democrático precisa ser pensado constantemente por toda a organização. Em todo o momento é preciso se perguntar: Temos suficientes mecanismos de participação democrática em nossa organização? Temos uma cultura interna que valoriza o debate em busca da melhor linha política? Ou a dissidência interna é apenas “tolerada”, mas demonizada nas entrelinhas da discussão?
Como era o partido bolchevique?
Opinamos que o partido bolchevique de Lênin era muito mais democrático do que as lendas que chegaram até nós. O mito de um partido ultracentralizado, ultradisciplinado e de pensamento monolítico é, nas palavras de Trótski, um “mito da decadência”, um produto, primeiro da Guerra Civil, e depois, da burocratização do partido e do Estado. Em seu clássico O partido bolchevique, o historiador trotskista francês Pierre Broué nos conta:
“De fato, nenhum argumento é mais eficaz na hora de desmentir abertamente a lenda do partido bolchevique monolítico e burocratizado do que o relato destas lutas políticas, destes conflitos ideológicos, destas indisciplinas públicas que, definitivamente, nunca são punidas. (…) Lênin, que, no calor da discussão, foi o primeiro a chamar Kámenev e Zinóviev de “covardes” e “desertores”, uma vez superada esta etapa, é igualmente o primeiro a manifestar veementemente seu desejo de conservá-los no partido, onde são necessários, pois desempenham um papel de dificílima substituição. No fim de 1917, o partido tolera mais que nunca os desacordos e inclusive a indisciplina, na medida em que a paixão e a tensão das jornadas revolucionárias os justificam e que, enquanto o acordo sobre o objetivo da revolução socialista permanece como fundamento, o acordo sobre os meios para realizá-la não pode surgir a não ser da discussão e do convencimento”.
O clima de polêmica e debate existente dentro da fração ou partido bolchevique pode ser comprovado por inúmeras e diversas fontes, e isso desde o início da construção do partido. Ainda em 1894, em sua polêmica com o populista Mikhailóvski, Lênin afirmava:
“É rigorosamente correto que não existe entre os marxistas completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não demonstra a debilidade, mas sim a força dos social-democratas russos. O consenso daqueles que se satisfazem com a unânime aceitação de ‘verdades reconfortantes’, essa tenra e comovedora unidade, foi substituída pelas divergências entre pessoas que precisam de uma explicação sobre a organização econômica real, sobre a organização econômica atual da Rússia, uma análise de sua verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do restante de suas superestruturas”.
Mesmo na etapa inicial de construção do partido e luta contra a autocracia czarista, Lênin sempre se esforçou por garantir ao partido o máximo possível de democracia interna e iniciativa de ação na base. Pierre Broué, mais uma vez, descreve:
“Desde a época de Stálin, a maioria dos historiadores e comentaristas insiste sobre o regime autoritário e fortemente centralizado do partido bolchevique, e encontram nisto a chave da evolução da Rússia durante mais de 30 anos. No que se refere à forte centralização do partido, certamente não faltam fatos que podem dar base às suas teses. No entanto, as referências de sentido oposto são igualmente abundantes.
E mais adiante:
“A clandestinidade é evidentemente favorável ao centralismo autoritário, na medida em que a eleição não tem mais sentido entre homens que não se conhecem, não podendo por isso se controlar mutuamente. No entanto, seus efeitos são amenizados por uma menor tensão nas relações entre os diferentes graus da hierarquia partidária, deixando aos comitês locais uma importante margem de iniciativa”.
O ano de 1906 coincide com a saída do POSDR à legalidade, como partido unificado, disputando as eleições da III Duma, e por isso as questões democráticas e de ampliação do contingente operário da organização se colocavam em primeiro plano, muito mais do que as questões de clandestinidade e disciplina do período anterior. Pierre Broué escreve:
“Segundo os bolcheviques, o ‘regime interno’ é um reflexo, no partido, das condições gerais da luta de classes; no entanto, também possui certa autonomia. Lênin elabora sobre este problema em sua própria fração, ao enfrentar-se com os komitétchiki, que, segundo o testemunho de Krúpskaia, não admitem nenhum tipo de democracia interna e rejeitam qualquer inovação, por sua impotência em adaptar-se a novas condições: são hostis ao ingresso de operários nos comitês, pois acreditam que não vão poder trabalhar no seu interior; pretendem controlar minuciosamente toda atividade e manter uma centralização e hierarquia rígidas. Lênin lhes recorda que ‘não é o partido que existe em função da direção, e sim esta em função do partido’. ‘Muitas vezes penso que noventa por cento dos bolcheviques são profundamente formalistas. É preciso recrutar, sem medo, jovens com os critérios mais amplos possíveis e esquecer todas as práticas embaraçosas a respeito de graus de hierarquia etc. (…) Devemos dar a cada comitê de base, sem colocar muitos empecilhos, o direito de escrever panfletos e distribuí-los. Se cometerem algum erro, não terá muita importância, os corrigimos ‘amavelmente’ no Vperiód. O próprio curso dos acontecimentos ensina-os em nosso mesmo espírito’. Krupskaia afirma que Lênin não se inquietou muito por não ter sido escutado pelos komitétchiki: ‘Sabia que a revolução estava em marcha e que ela obrigaria o partido a admitir mais operários em seus comitês’”.
O próprio Lênin confirma as palavras de Broué ao escrever:
“O Partido Social-Democrata, apesar da ruptura, e antes dos demais partidos, aproveitou o breve intervalo de liberdade para criar uma organização legal, com uma estrutura democrática ideal, com eleição de cargos e a representação nos congressos em conformidade com o número de membros organizados do partido.” (Prefácio ao compêndio Em doze anos)
Assim, o que vemos é a preocupação de Lênin em, mantendo-se a ideia fundamental de uma organização de revolucionários profissionais, adaptar a estrutura concreta do partido e também seu regime a cada etapa concreta, com suas tarefas, dificuldades etc. Em cada etapa da luta de classes, Lênin garantiu ao partido todos os mecanismos democráticos que eram possíveis.
Infelizmente, Lênin e Trótski também cometeram erros. Cento e dois anos depois, devemos admitir que a proibição das frações em 1921, por ocasião do X Congresso, foi um erro. Não havia motivos suficientes para tal. A Guerra Civil estava acabando e a Rússia entrava em uma etapa de estabilização. Em A Revolução Traída, de 1936, Trótski justifica o apoio à medida com o argumento de que ela era necessária para a preservação do partido e que, além disso, todos sabiam que, sob a direção de Lênin, tratar-se-ia de uma decisão excepcional e temporária, a ser revogada assim que as condições permitissem. Mas não foi o que ocorreu. A proibição das frações foi depois amplamente utilizada pelo stalinismo para perseguir a Oposição de Esquerda e exterminar definitivamente a democracia partidária e depois os próprios dirigentes oposicionistas, por meio de julgamentos forjados e fuzilamentos na calada da noite.
Assim, o que a esquerda mundial recebeu de herança foi uma narrativa mitologizada do partido bolchevique, teleológica, onde todo o destino final já estava contido no início “em embrião”, o que é absolutamente incompatível com o próprio espírito da história.
A influência e pressão stalinista sobre o trotskismo
Nossa hipótese é que o trotskismo, corrente derrotada na luta contra a burocratização do Estado soviético, apesar disso, acabou absorvendo parte da mitologia, concepção e método stalinistas na organização partidária, o que levou a enormes distorções no processo de construção dessas organizações.
Com raras exceções, as correntes trotskistas sempre foram bastante marginais, e isso em um duplo sentido. Por um lado, estavam à margem da sociedade, sem influência política real sobre a classe operária que diziam representar. Por outro lado, viviam nas margens (periferia) das organizações stalinistas, militando sobre a base desses partidos.
Isso fez com que as organizações trotskistas acabassem adquirindo certos vícios de seus adversários stalinistas. A marginalidade, a romantização da derrota, um certo messianismo e a ideia de que eram uma “fortaleza sitiada” levaram essas organizações a construírem correntes em muitos casos bastante autoritárias, sectárias, marcadas pela desconfiança contra qualquer dissidência. Ocorreu dentro dessas organizações, muitas vezes, um culto à personalidade, um “dirigentismo” que lembra o das organizações stalinistas.
Além disso, o modelo de partido bolchevique que copiavam era o modelo do partido vencedor da Guerra Civil, o partido-exército ultracentralizado e ultradisciplinado, não o partido da polêmica e da indisciplina que caracterizou o período pré-revolucionário.
Nesse sentido, precisamos admitir que os trotskistas não estiveram à altura de Lênin. Novamente o dirigente trotskista James Cannon disse certa vez que Lênin conseguiu construir uma fração com características de partido (democrática, plural, crítica), enquanto alguns trotskistas construíram partidos com características de fração (fechados, monolíticos, avessos à dissidência). Hoje deveríamos acrescentar apenas que não foram somente alguns troskistas, mas quase todos. Essa é a realidade de nosso movimento, e quanto mais cedo admitirmos isso, em melhor de condições estaremos de combater esse mal.
Que regime precisamos no século 21?
A ideia de que os socialistas aplicaram de maneira equivocada o centralismo democrático não pode significar a negação deste regime. O que quer dizer, em termos do século 21, centralismo democrático? Arriscaremos uma breve descrição.
Em primeiro lugar, a necessidade de um partido orgânico. A solução não se encontra em um movimento frouxo, sem organismos, sem programa ou estatuto, sem funcionamento definido. Ao contrário, o caráter orgânico do partido é uma das garantias de sua democracia. Esse aspecto é muito importante, pois é exatamente ele que dividiu mencheviques e bolcheviques em 1903. Lênin e Mártov não polemizavam sobre a necessidade ou não da revolução russa, da disciplina e da clandestinidade. Sobre isso havia acordo. A polêmica era se o partido deveria ser orgânico (“todos os militantes participam pessoalmente em um organismo do partido” – Lênin) ou funcionar como um amplo e disperso movimento sem a obrigatoriedade da participação dos militantes em organismos (“todos os militantes se sujeitam à disciplina do partido e declaram acordo com seu programa” – Mártov). Essa diferença, que parecia mesquinha na época, era a diferença entre um partido onde as pessoas participam ativamente da organização e um partido onde as pessoas recebem as instruções prontas de algum centro distante.
Em segundo lugar, a necessidade de um partido democrático. Não basta declarar-se tal. É preciso que o partido crie, pense permanentemente e aperfeiçoe todo o tempo os mecanismos de participação democrática da militância: organismos de base funcionando; congressos e conferências frequentes; vida interna rica; formação teórica para enfrentar as discussões; eleição democrática da direção; direção proporcional; possibilidade de travar lutas políticas internas; boletins internos de discussão; capacidade de autocrítica; um pouco de humildade; uma cultura que valorize o debate e o dissenso e integre nas tarefas de direção os militantes rebeldes, os que estão em minoria, os polemistas. Não há receita pronta. Cada organização deve encontrar seus mecanismos e submetê-los ao escrutínio da prática todo o tempo.
Em terceiro lugar, um partido disciplinado, não no sentido da obediência às ordens, mas no sentido da capacidade de levar adiante uma ação prática unificada. O grande problema de um partido frouxo e inorgânico é a incapacidade de agir praticamente. Mas se não for para agir, por que montamos um partido? A disciplina, ou seja, a ação prática a partir da linha votada, não é contraditória com a democracia. Ao contrário, ela é a garantia da democracia, pois é a garantia de que as decisões da maioria são respeitadas (Já analisamos a relação entre disciplina e democracia neste artigo). Métodos como o “consenso progressivo” paralisam a organização e exatamente por isso são a morte tanto da disciplina, quanto da democracia interna.
Dessa forma, como dizia Lênin, é preciso abrir mão de todas as práticas embaraçosas do passado, olhar com humildade para nossa história e admitir que não fomos tão bem assim. Partidos de esquerda não são meios de vivência social. São organizações de luta. Mas não é necessário que sejam ambientes insalubres, opressivos que adoecem e deprimem seus militantes. O capitalismo é duro e cruel e isso terá efeitos na vida interna do partido. Mas devemos nos esforçar para criar organizações que sejam – na medida do possível – agregadoras, onde os militantes encontrem um ambiente saudável e possam desenvolver suas potencialidades especificamente humanas: a fala, a escrita, o pensamento crítico, a polêmica fraternal e a ação coletiva organizada. Este é, no final das contas, o sentido do comunismo. O melhor ambiente para o desenvolvimento dessas habilidades ainda é o centralismo democrático. A questão está em saber construí-lo dia a dia.
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