Desta vez, a controvérsia envolve diretamente o Brasil, para onde o músico está vindo em outubro e novembro com uma série de shows da turnê This is Not a Drill (Isso não é um exercício), que vai passar por Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
No último dia 17 de maio, o cantor realizou em um show em Berlim uma performance que incluía vestir um uniforme similar ao da Waffen-SS, braço armado da Schutzstaffel, a famigerada SS, organização paramilitar de apoio ao regime nazista de Adolf Hitler. Embora a performance já tenha acontecido dezenas de vezes em dezenas de shows desde 1980, desta vez a polícia berlinense resolveu se envolver e abriu um inquérito para investigar uma suposta apologia ao nazismo e antissemitismo.
Com shows de Waters marcados no Brasil, o advogado Ary Bergher, vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil, dirigiu um requerimento ao Ministério da Justiça pedindo que o cantor britânico seja impedido de entrar no país e, caso entre, seja monitorado pela Polícia Federal com o objetivo de impedir a repetição da performance realizada em Berlim. Bergher alega que a performance de Waters caracteriza apologia ao nazismo e discurso de ódio. A extrema-direita do país, claro, não perdeu a oportunidade, e passou a atacar o músico nas redes sociais, fazendo coro à exigência de perseguição e censura prévia.
A acusação é simplesmente estapafúrdia. Filho de um soldado britânico morto na luta contra o nazismo, Roger Waters é há décadas um crítico radical de todo e qualquer regime autoritário. Toda a sua obra é testemunha disso. Em 1979 o Pink Floyd lançou The Wall, um de seus álbuns mais famosos, que vendeu 19 milhões de cópias até 1990. Trata-se de uma complexa ópera-rock que conta a história de Pink, um jovem cujo pai morre na Segunda Guerra Mundial na luta contra o nazismo. Pink se torna então um astro de rock com diversos problemas psiquiátricos. Em um de seus delírios, se imagina um líder fascista violento e autoritário. Pink veste então um casaco de couro preto com o desenho de dois martelos cruzados no braço direito, mesmo símbolo usado por Waters em sua performance. Ao final da ópera, o muro é derrubado, em uma alusão à vitória da democracisa sobre o autoritarismo. Em 1982, o disco virou um filme dirigido pelo icônico Alan Parker e estrelada por Bob Geldof. Toda a performance de Water é uma referência a essa obra clássica, uma verdadeira ode à democracia e à liberdade individual.
Na verdade, a tentativa de censurar Roger Waters se liga muito mais à sua luta contra o genocídio do povo palestino impetrado pelo Estado de Israel do que com a imaginária apologia ao nazismo. Desde 2006, quando visitou um campo de refugiados palestinos, Waters tem se destacado como uma importante figura da luta palestina, com uma importante contribuição ao movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), uma iniciativa que busca penalizar Israel pela violência aplicada contra os palestinos. Ao conhecer de perto a situação dos árabes no país, Waters cancelou um show que faria em Tel Aviv, e transferiu a apresentação para Neve Shalom, uma vila cooperativista fundada por judeus e palestinos. Desde então, tem sido perseguido pelo movimento sionista. Recentemente, o músico britânico voltou aos noticiários brasileiros ao dirigir uma carta a Caetano Veloso e Milton Nascimento, pedindo que ambos cancelassem seus shows em Israel. A carta, no entanto, não atingiu seus objetivos e os shows aconteceram.
Pois bem, o caso teve seu desenvolvimento neste sábado (10), quando o ministro da Justiça Flávio Dino declarou publicamente que não haveria censura prévia ao show do ex-Pink Floyd. Dino declarou em seu twitter que não havia ainda recebido o pedido dirigido ao ministério e assim que o recebesse, faria uma análise paciente e cuidadosa. O ministro salientou, no entanto, que a legislação brasileira proíbe apenas a apologia ao nazismo, mas não a exposição de símbolos em contextos educativos ou artísticos e que portanto a situação deveria ser analisada em detalhes antes de qualquer ação por parte do governo. Dino lembrou ainda que a luta contra a imaginária apologia ao nazismo pode trazer de volta o inimigo real que é a censura prévia.
Waters há muitos anos vem se radicalizando em suas posições políticas, mas sempre à esquerda. Em seus shows, exibe em telões os nomes de grandes lutadores pela liberdade e democracia, como Sophie Scholl, da Rosa Branca, movimento de resistência alemã antinazista, morta em 1943, Mahsa Amini, que morreu após ter sido detida pela polícia da moralidade no Irã no ano passado, além de George Floyd, morto sufocado pela polícia dos Estados Unidos, o que desencadeou uma série de protestos organizados pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e até Marielle Franco. Ao mesmo tempo, expõe os ditadores do mundo atual, como Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Donald Trump.
As atuais gerações de jovens podem não ter uma ideia precisa da importância de Roger Waters e do Pink Floyd. Ele é o exemplo perfeito de um artista que soube fazer aquilo que todo artista deve fazer: se conectar com o seu tempo, não permancer alheio ao mundo que o cerca. Nenhuma obra precisa ser engajada para ser boa. O único requisito da arte é a liberdade completa, a anarquia criativa. Mas o artista que não se conecta com as demandas de seu tempo perde em profundidade e amplitude porque deixa de refletir a vida. É esse o crime que não podem perdoar a Waters. Mas a luta dos sionistas e verdadeiros fascistas é inglória. Roger Waters é do tipo de artista que não pode mais ser calado. Em The Wall, ele critica o sistema educacional, o controle ideológico sobre a juventude e nos lembra que somos apenas mais um tijolo no grande muro que nos separa do reino da liberdade. Mas assim como nos shows, esse muro há de ser derrubado.
Veja a íntegra da declaração de Waters:
“Minha recente apresentação em Berlim recebeu ataques de má-fé daqueles que querem me caluniar e me silenciar porque discordam de minhas opiniões políticas e princípios morais.
Os elementos de minha performance que foram questionados são claramente uma declaração em oposição ao fascismo, a injustiça e ao fanatismo em todas as suas formas. As tentativas de retratar esses elementos como algo diferente são dissimuladas e politicamente motivadas. A representação de um demagogo fascista desequilibrado tem sido uma característica dos meus shows desde “The Wall”, do Pink Floyd, em 1980.
Passei minha vida inteira falando contra o autoritarismo e a opressão onde quer que os veja. Quando eu era criança, depois da guerra, o nome de Anne Frank era frequentemente falado em nossa casa – ela se tornou uma lembrança permanente do que acontece quando o fascismo não é controlado. Meus pais lutaram contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, com meu pai pagando o preço final.
Independente das consequências dos ataques contra mim, continuarei a condenar a injustiça e todos aqueles que a cometem.”
Twitte de Flávio Dino:
Ainda não recebi petição sobre apologia a nazismo que aconteceria em show musical. Quando receber, irei analisar, com calma e prudência, a partir de duas premissas fundamentais:
1. Consoante a nossa Constituição, é regra geral que autoridade administrativa não pode fazer…
— Flávio Dino ?? (@FlavioDino) June 10, 2023
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