Há apenas quatro dias do primeiro turno das eleições de 2022, uma polêmica iniciada em Porto Alegre ganhou repercussão nacional: deveriam os governos conceder o passe livre irrestrito no domingo de votação? Em poucas horas, a tag #Domingo0800 foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter Brasil.
Ao extrapolar a órbita do extremo-sul do país, uma maioria em prol da gratuidade no transporte público foi se estabelecendo entre influenciadores digitais, jornalistas, lideranças políticas e comunitárias das mais variadas matizes. O argumento que dominou a discussão era a necessidade de garantias do Estado a uma obrigação instituída pela própria Constituição Federal: o voto obrigatório.
Se a lógica que une uma determinação legal a outra é tão coerente que chega a ser óbvia, ainda mais num país de intensas desigualdades econômicas, com certeza, alguém já teria pensado nisso. E é aí que se diferencia o caso portalegrense. O que para a grande maioria das metrópoles brasileiras se tratou de uma inovação e soou como mais um elemento da mobilização democrática contra o bolsonarismo, por aqui remetia a um costume de mais de três décadas que estava em perigo: desde 1990, todos os domingos eleitorais aconteceram com gratuidade nos ônibus e, entre 1995 e 2021, o passe livre se transformou num acontecimento mensal garantido por lei.
Incidi intensamente nessa disputa através do nosso mandato, da articulação jurídica e da mobilização total dos esforços da nossa candidatura ao parlamento estadual. Nesse processo, me dei conta que valia a pena interpretá-la mais a fundo a partir de algumas lições do historiador inglês E. P. Thompson sobre costumes, direitos e a resistência plebeia na Inglaterra do século XVIII. Observei similaridades entre o enfrentamento à ruptura dessa tradição no transporte público àqueles movimentos que se insurgiam contra as novidades culturais, morais e econômicas das “leis de mercado” do capitalismo nascente.
Quando veio a público o fim do passe livre eleitoral em Porto Alegre, conversei com dezenas de pessoas revoltadas, que junto da indignação também se espantavam, pois viveram até então convictas que esse benefício existia por todo o país, tamanha a naturalização do hábito. Este trecho de Thompson que evidencia o sentimento de legitimidade presente na multidão inglesa também é válido para refletirmos sobre esta situação:
Entendo que os homens e as mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que, em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando, esse consenso popular era endossado por alguma autorização concedida pelas autoridades. O mais comum era o consenso ser tão forte a ponto de passar por cima das causas do medo ou da deferência.
A minha hipótese é que a melhor forma de entender a irrupção desse movimento vitorioso é irmos além das suas circunstâncias conjunturais – a luta pela democracia e a justa defesa de um benefício econômico aos mais pobres -, e observarmos a força desse costume que transformou o passe livre eleitoral num “direito consuetudinário dos pobres” em Porto Alegre.
O potencial do Passe Livre
O resultado praticamente imediato dessa contenda foi a concessão de diferentes formas de gratuidade, no dia 2 de outubro, em Porto Alegre e outras onze capitais, além de algumas dezenas de municípios de médio e pequeno porte. Já no segundo turno, de acordo com a campanha “Passe Livre pela Democracia”, quase 400 municípios e mais de 73 milhões de brasileiros usufruíram do passe livre em ônibus – incluindo sistemas intermunicipais – trens, metrôs e barcas. É pouco ante os mais de 5 mil municípios brasileiros, mas o potencial disruptivo é inegável.
Levantamentos iniciais apontam que a abstenção caiu mais nas cidades em que o passe livre foi instituído, uma diferença de 0,4%, pequena, no entanto, dois fatores precisam ser destacados: primeiramente, a tendência histórica é o aumento da abstenção no segundo turno, ou seja, o passe livre pode ter contribuído para uma situação inédita; em segundo lugar, numa eleição definida no detalhe, não é exagero afirmar que a ampliação da circulação de pessoas influenciou decisivamente no resultado final.
Aliás, Bolsonaro teria expressado essa opinião recentemente a seus interlocutores, referindo-se às gratuidades como “mais uma interferência do poder judiciário na eleição”. Na sua lógica golpista, após a tentativa frustrada de derrotar o passe livre pela via judicial, restou contar com o apoio do comando da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para a realização das operações criminosas sobre os ônibus no dia da votação.
Enquanto o líder fascista se preocupava em criar barreiras para o direito de ir, vir e votar, especialmente nas camadas mais pobres da classe trabalhadora, Lula defendeu o passe livre em diversas manifestações públicas. Roberto Andrés, intelectual e ativista que ainda observa inquieto os acontecimentos de junho de 2013, opina que esse movimento pode fazer Lula e o PT se reconciliarem com a reivindicação pela gratuidade no transporte público e agenda dos movimentos sociais.
De fato, dentre os malfadados “traumas de junho”, está a ferida aberta pelo esquecimento da reforma urbana e de políticas de mobilidade realmente democratizantes. Se as ruas naquele momento discutiam a diversificação dos modais de transporte em prol da qualidade de vida dos moradores das periferias, programas de tarifa zero, passe livre para estudantes e desempregados, ampliação do investimento público nas três esferas governamentais e políticas justas ecologicamente, atualmente, o centro das preocupações nas metrópoles passou aos transportes individuais por aplicativos, suas tarifas dinâmicas em meio aos congestionados horários de pico e as péssimas condições de trabalho impostas por essas multinacionais.
Resta saber agora se o presidente eleito irá realizar um esforço para que a medida se consolide nas duas eleições em que estará à frente do país, 2024 e 2026, além de contribuir para a desobstruir a imobilidade urbana e suas trágicas consequências sociais e econômicas.
Governo popular contra a mercantilização do transporte
É preciso reencontrar o elo entre os governos de esquerda e a auto-organização popular pelo direito à cidade. Se observarmos esse processo com a visão retrospectiva da história, poderemos encontrar um bom exemplo na gestão petista de Olívio Dutra, em Porto Alegre (1989-92). As chamadas administrações populares da Frente Popular foram marcadas por medidas que visavam equalizar o sistema de transporte ao que está prescrito na Constituição: dever do Estado e direitos de todos.
O auge do enfrentamento ao controle empresarial foi a intervenção por três meses nas permissionárias que ameaçavam realizar um lockout para aumentar a tarifa e se negavam a publicizar as suas planilhas de cálculo. Naquele momento, a passagem de ônibus da capital gaúcha era a mais barata dentre as capitais e assim seguiu até o Plano Real. A Carris, mais longeva empresa pública de transporte, começou a ser transformada em padrão nacional de qualidade. Em diálogo e tensão permanente com o Orçamento Participativo e o Movimento de Pavimentação Comunitária, inúmeras linhas de ônibus passaram a adentrar as periferias. Uma série de gratuidades foram concedidas, sendo o caso mais relevante a Lei 362/95, que instituiu “os dias de passe livre (…) não podendo extrapolar a quantidade de 12 dias anuais e nem de mais de 02 dias no mesmo mês”.
A partir daí, nessas datas estabelecidas, os fluxos da cidade se alteravam radicalmente: os moradores dos morros e periferias circulavam com liberdade em ônibus que lotavam nos três turnos. Vale lembrar que não há metrô e o trem cobre uma parte ínfima do território, além disso, estamos falando de uma cidade que é e sempre foi altamente segregada, como mostra o último Censo do IBGE, que classificou Porto Alegre como a capital mais desigual entre negros e brancos. Um dos elementos que escancara essa realidade é cisão territorial: cerca de 50% da população negra, estimada em mais de 20% dos quase 1,5 milhão de habitantes, vive em apenas 6 dos 94 bairros, excluída nos extremos das regiões Sul, Norte, Leste e no Arquipélago ao Oeste.
O controle social e territorial imposto pela mercantilização do transporte público era subvertido por completo nesses dias que se tornaram parte do folclore local. O impacto dessa política pública no imaginário popular foi eternizado pelos rappers do grupo Da Guedes, que descreveram os dias de passe livre na música com o título homônimo. O ponto de vista jovem e malandreado que marca o refrão – “Muito aperto, só os muito louco, banzo de graça ó, que sufoco. Sei que é nós na fita, o coletivo hoje é do povo, lá de cima desce o morro, vem lotado é bicho solto” – não impede que as rimas expressem sentimentos intergeracionais que definem as 24h sem catraca como “um direito adquirido pelo cidadão comum”, “um dia de visitas e de encontrar os irmãos”, em que as famílias podiam transitar sem preocupação, já que o “cobrador tirou uma folga” e o “vale-transporte” não era mais um empecilho na vida dos mais pobres. Mesmo assim, algumas figuras preferiam continuar pulando a roleta para não perder o costume, ou, talvez, ao menos nesse dia, fazer isso sem qualquer repreensão, já que em poucas horas aquela muralha giratória estaria ali novamente.
Obviamente que isso revoltava a burguesia e a classe média conservadora. Muito antes dos rolezinhos, famosos nacionalmente no início da década de 2010, os proprietários de shoppings e centros comerciais ficavam em choque com a presença negra e periférica no interior de seus estabelecimentos. Nos bairros nobres, o “fique em casa” (quem diria… risos) era a orientação mais comum em dias de passe livre.
Quando as gestões municipais começam a variar no espectro da direita, a partir de 2005, paulatinamente, a gratuidade mensal passa a ser desrespeitado. Todavia, a gratuidade eleitoral permaneceu intocada. Esse processo coincide com a mudança nas demandas e nos agentes das mobilizações populares pelo transporte público. Enquanto o neoliberalismo começa a vestir as políticas de mobilidade urbana numa camisa de força de várias camadas – gestão cada vez mais privada, desinvestimento estatal, tarifas subindo muito acima da inflação, produção e consumo de veículos nas alturas, metrópoles se expandindo para os extremos sem infraestrutura e acesso a direitos básicos – Porto Alegre sedia, no Fórum Social Mundial desse mesmo ano, o nascimento do Movimento Passe Livre, no embalo das revoltas de Salvador e Florianópolis. De fato, o passe livre pela democracia não foi um raio num céu azul.
Mais uma derrota dos bolsonaristas
Eis que, em 2021, o comando da cidade chegar no extremo bolsonarista com o prefeito Sebastião Melo (MDB), a Câmara de Vereadores aprova o fim do passe livre nas eleições com a restrição da gratuidade para apenas duas datas, o feriado religioso de 2 de fevereiro e um dia de vacinação anual. A crise do transporte público aprofundada na pandemia foi a justificativa que sustentou o restante do pacote: privatização da Carris, limitação do acesso ao meio-passe estudantil para quase 50% dos estudantes que antes o usufruíam, fim da gratuidade a idosos entre 60 e 64 anos, extinção gradual dos cobradores e as caóticas unificação e diminuição de disponibilidade de inúmeras linhas de ônibus.
Não havia luz no fim do túnel em Porto Alegre. Todos aspectos dessa “economia moral dos pobres” vinham sendo desfigurados, até que a divulgação da inexistência do passe livre no primeiro turno das eleições chacoalhou as consciências e trouxe à tona o descontentamento popular. Ainda que sem a realização de grandes manifestações, as redes sociais foram o palco da disputa e ofereceram as métricas para captarmos a insatisfação.
Expressão disso foi a virada da classe política, pois, três semanas após o início do movimento pelo #Domingo0800, voltamos a ser única capital do país a ter uma lei que fixa o passe livre nos domingos eleitorais: depois de três derrotas judiciais e um desgaste política nacional, o prefeito bolsonarista e seus asseclas voltaram atrás e, a contragosto, redigiram a nova legislação aprovada em tempo recorde na Câmara, apenas sem os votos do Partido Novo.
Tal ruptura só foi possível devido a legitimidade e o enraizamento popular desse costume estabelecido ao longo de décadas. Thompson pensava as classes sociais como produto das formações históricas surgidas a partir das condições concretas da própria luta de classes, sendo a consciência e a forma política strictu senso os últimos estágios desse processo. É certo que a classe trabalhadora que recuperou esse direito é totalmente distinta daquela que o inaugurou. O nosso “fazer-se”, hoje, incluí o desafio de reanimar essa memória não apenas para retomar direitos, mas, para restabelecê-los em melhores condições. O bem-comum tem força para prevalecer. À luta!
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