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CULTURA

Com licença, eu sou ateu/ateia

Por Carlos Zacarias, Colunista do Esquerda Online

Entra ano e sai ano, e nas festas de Natal de muitos lares a cena se repete: família reunida, alguns que só se veem de ano em ano, mas que ultimamente andaram se estranhando em grupos de WhatsApp por conta da política. Lá pelas tantas horas e muitas cervejas ou taças de vinho nos juízos, com altas temperaturas sendo registradas nas exasperadas discussões, e alguém lembra que naquele dia se comemora o nascimento de Jesus e propõe uma oração. Você se levanta, pede licença para sair da roda que se forma, dizendo-se ateu ou ateia, e o copo transborda! Então aquele tio ou tia mais exaltado(a), daquele tipo que andou defenestrando o PT durante o ano e hoje quer a prisão de Lula, pois acha que a culpa pelo Brasil estar assim é do PT, toma a palavra e profere a sentença: “onde já se viu?! Tudo bem que seja ‘petralha’ e que ande com essa turma da bandeira vermelha, mas ser ateu/ateia é demais, não podemos aceitar, é uma falta de respeito com a família!”

A situação imaginária pode ou poderia ter acontecido em qualquer família. Se aconteceu, certamente rompeu a fronteira protocolar daquilo que seria aceitável e, possivelmente, implodiu a reunião familiar, causando sofrimento entre os envolvidos, mas não precisava ser assim.

Os brasileiros gostam das festas do fim de ano, e muitos apreciam o Natal, independente de serem cristãos ou mesmo de acreditarem em Deus. Isso se deve ao fato de que o Natal e o Ano Novo, além de promoverem mesa farta até mesmo nos lares mais simples, coincidem com as férias escolares e universitárias e também com o verão, que é a estação mais amada no país. Todavia, o Natal, apesar de tudo, é uma data do calendário cristão-católico que mesmo transformada em data comercial, evoca uma espécie de compromisso ou expiação da parte de muitos que as vezes se lembram se tratar da data que se celebra o nascimento de Jesus.

A religiosidade dos brasileiros não é coisa simples, mas um traço complexo da formação cultural do país que se relaciona com suas raízes multiétnicas e multiculturais. O sincretismo é fruto dessa identidade refeita, quando os povos transladados pela violência da diáspora africana e submetidos à escravidão, foram postos em contato com o europeu e o nativo, este último também submetido a trabalho forçado ou expulso de suas terras. Como marca da nossa formação e elemento de resistência, as antigas identidades foram transfiguradas em novas e estas carregaram as marcas das manifestações populares, um amalgama de diversas formas de miscigenação.

Nascido desse caldeirão cultural carregado de conflitos e violência, a religiosidade popular é plena manifestação litúrgica. Diferentemente da religião europeia, muito mais ligada a contemplatio, a dimensão litúrgica de nossa religiosidade é festiva, colorida e expansiva, o que atrai as camadas populares para a celebração e o culto públicos. Não por acaso, no Brasil, até mesmo as religiões protestantes, especialmente as neopentecostais, incorporaram simbologias concretas em seus cultos como forma de traduzir a abstração que significa Deus em algo visível e palpável, como um copo de água, uma garrafa de azeite ou um lenço ungido, que fazem as vezes do sagrado, como as imagens dos santos no catolicismo.

Uma manifestação de religiosidade em alguma reunião familiar de Natal nem sempre é um atentado ao progressismo. Nem por isso precisamos nos submeter à roda de oração da família, porque reivindicamos nosso direito de não crer. Sabemos que os ateus sofrem preconceito, mas não militamos pelo ateísmo e sim pelo socialismo. Marx entendeu isso cedo e travou seus primeiros combates intelectuais contra os jovens hegelianos que acreditavam que poderiam mudar o mundo se conseguissem superar a religião. Podemos conviver com os que tem fé, e devemos ensinar o respeito aos que professam outras religiões e aos que não professam nenhuma. O que não podemos suportar é o machismo, o racismo e a LGBTfobia, de modo que se aquele parente, de boa fé, lhe chamar para rezar, não se ofenda. Você pode pedir licença e sair, mas também pode sentar com ele e explicar o que é tolerância.