“Que chama de espírito se apagou!
Que coração deixou de bater!” (Nekrásov, poeta russo)
Tudo começou no dia 30 de abril de 1977. Ou muito antes, mas foi nesse dia que a dor se tornou insuportável e então 14 de mulheres, a maioria donas de casa, resolveram se concentrar na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino para exigir algo tão simples quanto já impossível naquele momento: queriam de volta seus filhos. E vivos.
A ditadura argentina estava em seu segundo ano e os mortos e desaparecidos já somavam as centenas. Chegariam aos 30 mil até o final da ditadura, em 1983. Assim surgiu a Associação Mães da Praça de Maio, oficializada como entidade em 1979 e que teve como sua representante desde o início Hebe de Bonafini. Desde então, a associação cresceu enormemente. As Mães da Praça de Maio possuem hoje uma rádio, jornais impressos, uma universidade, creches e uma série de outras iniciativas sociais, como uma livraria e uma cooperativa de habitação. Tudo isso foi fruto do trabalho e da luta de Bonafini.
Hebe nasceu em 1928 em La Plata, no interior da Argentina. Casou-se aos 14 anos e teve três filhos: Jorge Omar, Raul Alfredo e Alejandra. Em 8 de fevereiro de 1977 seu filho Jorge Omar desapareceu. Em 6 de dezembro do mesmo ano foi a vez de Raul Alfredo e em 25 de maio de 1978 sua nora María Elena Bugnone Cepeda, esposa de Jorge, também foi sequestrada e provavelmente assassinada pelo regime.
As Mães da Praça de Maio realizam há 43 anos vigílias todas as quintas-feiras no mesmo lugar e na mesma hora. Fazem abaixo-assinados, petições, marchas, protestos e promovem ações de solidariedade. Esse é o tamanho da perseverança e da força dessas mulheres, mães e avós de mortos e desaparecidos. Hebe de Bonafini foi, desde o início, o símbolo dessa luta. Sem querer, ela tornou-se também um símbolo da luta e da dor da América Latina, em particular de suas mães, que sofreram com a prisão, a tortura e a morte de seus filhos e filhas.
Mas as Mães da Praça de Maio, sob a liderança de Bonafini, tornaram-se muito mais do que uma associação simbólica para um fim específico. Elas viraram força política real na Argentina: se uniram ao movimento operário, sindical e estudantil em suas lutas, combateram os golpistas da greve agrária de 2008, lutaram contra as invasões imperialistas do Iraque e Afeganistão e se solidarizaram com os povos latino-americanos em seus combates.
Em seus mais de 40 anos de atividade política, Hebe de Bonafini foi perseguida política e judicialmente, caluniada e agredida por policiais, teve sua filha Alejandra também presa e torturada em 2001, quando a Argentina já vivia um período democrático.
Bonafini costumava atribuir sua evolução política ao exemplo de luta de seus filhos. Em 1982, em entrevista a um jornal espanhol, declarou:
“Antes do meu filho ser sequestrado, eu era uma mulher da multidão, uma dona de casa a mais. Eu não sabia de muitas coisas. Não me interessavam. A questão econômica, a situação política do meu país me eram totalmente alheias, indiferentes. Mas desde o desaparecimento do meu filho, o amor que eu sentia por ele, a vontade de buscá-lo até encontrá-lo, de implorar, de pedir, de exigir que me entregessem-no; o encontro e a ansiedade compartilhada com outras mães que sentiam uma angústia igual à minha me colocaram num mundo novo, me fizeram saber e valorizar muitas coisas que eu não sabia e que antes não me interessava em saber. Agora vou percebendo que todas essas coisas com as quais muita gente não se preocupa são importantísssimas porque delas depende o destino de um país inteiro, a felicidade ou a desgraça de muitas e muitas famílias”.
Em 1907, o grande escritor russo Máximo Gorki publicou sua obra prima A Mãe. Nesse belo romance, Gorki conta a história da humilde Pelagueia, mãe do revolucionário socialista Pavel, preso e perseguido pelo regime czarista. Ao lutar pela libertação do filho, Pelagueia acaba se envolvendo ela mesma em atividades subversivas e se tornando uma militante indispensável para a causa da libertação da humanidade. Gorki não tinha ideia de que a América Latina, setenta anos depois, teria também sua Pelagueia e que ela seria uma fonte tão grande de coragem, bondade e inspiração.
Bonafini dedicou sua vida à luta por memória e reparação. Em particular, ela é um exemplo e uma lição para o Brasil, onde os crimes da ditadura foram jogados para debaixo do tapete numa manobra suja que transformou a anistia aos presos e exilados políticos em um perdão para assassinos e torturadores. Mas ela é um exemplo também para a esquerda de como um movimento pode e deve criar raízes sociais, se conectar com os sentimentos mais profundos dos explorados e oprimidos.
Sua mensagem, resumida certa vez em um discurso, é a seguinte:
“Rebeldes, loucas, prepotentes. Nos colocamos diante do poder e dissemos ‘aqui estamos’. Colocamos o corpo, que é a única coisa que temos para colocar […]. Há muito o que fazer. Ainda há fome, desemprego e necessidade de habitação […]. [Outras organizações de direitos humanos] não entendem essa coisa de desfrutar. Nós sim porque vencemos a morte, queridos filhos. Vencemos o carrasco. Isso é vida pura, cheia de amor e abraços […]. Com esses filhos que nasceram depois estamos semeando um novo caminho, que não deixa de ser revolucionário, construindo, marchando junto daqueles que necessitam […]. Queridos filhos, seu sangue não foi inútil, floresce em cada bairro, em cada lugar onde homens e mulheres levantam o punho por trabalho digno, por moradia. […] [Enfatizo] a unidade latinoamericana, indispensável para chegar ao socialismo […]. O imperialismo e a CIA são vorazes, não se cansam […]. Pátria ou morte, venceremos!”
Hebe de Bonafini morreu ontem (20) aos 93 anos em um hospital bonarense. O presidente Alberto Fernandez decretou luto oficial de três dias no país.
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