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BRASIL

Entenda o que é a PEC da Transição

Henrique Canary, de São Paulo, SP
Pedro França/Agência Senado

À medida que os golpistas vão liberando cada vez mais estradas pelo país, as atenções se voltam para a transição de governo, um processo também muito complicado e cheio de armadilhas, e que merece toda a atenção da esquerda. O assunto do dia ontem foi a apresentação, por parte da equipe de transição do governo eleito, da chamada “PEC da Transição”. O que é isso?

A PEC da Transição é uma Proposta de Emenda à Constituição que visa flexibilizar o teto de gastos em 2023 para garantir o financiamento de propostas consideradas essenciais para o novo governo, sobretudo da área social. Ela é também chamada de “waiver” ou licença. A ideia geral da PEC da Transição foi apresentada ontem (dia 03 de novembro) pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin em reunião com o relator do orçamento, senador Marcelo Castro (MDB-PI). Segundo comunicado conjunto feito por Alckmin e Castro logo após a reunião, o objetivo é abrir um espaço orçamentário para o pagamento do Bolsa Família (sic) no valor de R$ 600 ao longo de 2023, junto com o acréscimo de R$ 150 por criança de até 6 anos na escola, bem como outros gastos sociais considerados decisivos, como o Farmácia Popular, DNIT, merenda escolar, saúde e outros. Castro, que tem um papel chave em todo o processo, se mostrou simpático à proposta, observando que o atual orçamento é “seguramente o mais restritivo e o que traz mais ‘furos’ da nossa história” (Fonte: Agência Senado). O senador eleito Wellington Dias (PT-PI) agregou que a PEC visaria também garantir um aumento real (acima da inflação) de 1,3% ou 1,4% para o salário mínimo em 2023.

Na entrevista coletiva que deram, nem Alckmin nem Castro falaram de valores totais. No entanto, o deputado federal Ênio Verri (PT-PR) apresentou algumas hipóteses de números. Segundo ele, o valor total da PEC ficaria entre 85 e 100 bilhões de reais, sendo a maioria para o Auxílio Brasil. Isso mais do que dobraria os recursos destinados por Bolsonaro ao auxílio no atual orçamento (R$ 70 bilhões). Como foi denunciado muitas vezes por Lula durante a campanha, o Auxílio Brasil efetivamente garantido pelo orçamento de Bolsonaro não passa dos R$ 405 na média. Sem PEC, portanto, a proposta de R$ 600 + R$ 150 por filho ficaria inviabilizada.

A forma PEC é necessária porque o teto de gastos do governo é fixado pela Constituição. Como alguns talvez lembrem, a famigerada PEC 95 foi uma das primeiras medidas do governo golpista de Michel Temer e estabeleceu que, durante 20 anos, o governo não poderia aumentar os gastos acima da inflação. A PEC do Teto de Gastos é até hoje comemorada pelo mercado como um sinal de “maturidade fiscal” do país, embora nenhum país sério tenha tal mecanismo inscrito na Constituição. A verdade é que ela é em grande parte responsável pela queda brutal dos investimentos sociais nos últimos 5 anos.

A dificuldade em se apresentar uma PEC é que ela exige duas votações na Câmara de Deputados e duas no Senado e o apoio de pelo menos 3/5 dos parlamentares. Alckmin salientou que a PEC da Transição precisa ser aprovada até dia 15 de dezembro, o que também dificulta o processo. Ministros do TCU (Tribunal de Contas da União) já declararam que não colocarão qualquer empecilho à aprovação do novo mecanismo.

Segundo Alckmin e Castro, a proposta deverá ser amadurecida em uma reunião com Lula na segunda-feira (07 de novembro) em São Paulo. Nessa reunião deve ser batido o martelo quanto ao valor total da PEC e as áreas a serem atendidas. No dia seguinte, 08 de novembro, haverá nova reunião com entre Alckmin e Castro para fechar a proposta. Desde já seguem negociações com os presidentes da Câmara Arthur Lira (Progressistas-AL) e do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já que a PEC precisa ser aprovada ainda nesta legislatura. Outra figura chave que deve ser procurada nos próximos dias é o deputado federal Celso Sabino (União Brasil-PA), presidente da Comissão Mista de Orçamento.

Reações

Mal a proposta de PEC da Transição foi verbalizada, já começaram as reações do bolsonarismo e de outros agentes políticos e econômicos. O atual vice-presidente Hamilton Mourão utilizou o twitter para chamar a PEC da Transição de “rombo” e acusar o governo eleito de “irresponsabilidade fiscal”. Já em entrevista à Rádio Gaúcha o agora senador eleito pelo Rio Grande do Sul classificou a PEC como “estupro no orçamento”. Por sua vez, figuras ligadas ao mercado estão preocupados com a possibilidade de uma “PEC sem limites”, coisa que ninguém nunca falou.

A deputada federal e presidente do PT Gleisi Hoffmann respondeu à altura, também utilizando o twitter: “Declaração de Mourão é no mínimo desonesta. Nem bem acabamos de iniciar a transição e estamos negociando a pauta que interessa ao povo trabalhador. Onde ele estava durante a farra do orçamento secreto e uso perdulário e ilegal da máquina pública nas eleições”, questionou a petista.
A resposta de Hoffmann é precisa e vai direto ao ponto. A elite brasileira só fala em responsabilidade fiscal para evitar investimentos sociais. Trata-se da mais absoluta hipocrisia. No entanto, mais do que uma mera discussão com Mourão, todo o episódio nos alerta para as dificuldades que enfrentará o governo Lula e o modo de superá-las. A PEC da Transição é evidentemente progressiva frente ao cenário desolador em que se encontra o país. Mas negociações de gabinete não bastam para aprová-la. É preciso povo na rua. Ao mesmo tempo, devemos ter presente que as operações golpistas do bolsonarismo continuarão agora e durante todo o mandato. O novo governo Lula precisa ganhar o apoio da maioria inquestionável da nação. É por aí que passa a real governabilidade. Para isso, precisa tomar medidas sociais de impacto profundo, relativas a salário, saúde, educação, moradia, meio ambiente, inflação e emprego. Assim, diante de qualquer questionamento mais sério da burguesia ao seu governo, haverá quem o defenda nas ruas. Toda a experiência histórica da América Latina e do próprio Brasil o comprovam: este é o melhor – na verdade o único – antídoto contra golpes.

In english: Understanding the proposal of Transition Constitutional Amendment (“PEC da Transição”)