Em 30 de outubro de 2022, Luís Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil pela terceira vez (governou entre 2003-2006 e foi reeleito para o mandato de 2007-2010). O resultado final mostra que Lula derrotou o presidente Jair Bolsonaro por uma margem percentual muito pequena de votos, a menor no período pós-redemocratização. Lula obteve 60.345.999 de votos, 50,90% dos votos válidos. Já Bolsonaro teve 58.206.354, 49,10%.
Assim como ocorreu no primeiro turno, as pesquisas realizadas pelos institutos de maior visibilidade na mídia apontavam uma vitória de Lula com uma vantagem superior. Ao fim do pleito, o que se constatou é que Bolsonaro conseguiu receber aproximadamente sete milhões de votos a mais que no primeiro turno e Lula cresceu sua votação em apenas três milhões.
Diante de um copo com água até a metade de sua capacidade, sabemos que podemos dizer que o copo está meio-cheio ou meio-vazio. No interior do debate da esquerda brasileira há leituras que destacam a força da resistência popular a uma candidatura como a de Bolsonaro, que utilizou de forma pornográfica a máquina pública para permanecer no cargo. De um lado pela via das iniciativas que visavam ampliar sua popularidade, como a aprovação de uma legislação de emergência para permitir a criação, nos meses que antecederam a eleição, de novos benefícios sociais – o Auxílio Brasil de R$ 600,00; os auxílios para caminhoneiros e taxistas; o empréstimo consignado para quem recebe o auxílio Brasil, a antecipação do pagamento de diversos benefícios sociais, entre outras medidas. Ainda assim, Bolsonaro não teve maioria entre os que recebem auxílios do governo Federal.
De outro lado, mantendo vivo o esforço para, através de suas bases mais mobilizadas e de agentes do estado, espalhar o sentimento de medo entre os apoiadores de Lula. A culminância dessas manobras intimidatórias de cariz nitidamente fascista foi o conjunto de operações da Polícia Rodoviária Federal, atrasando e, em alguns casos impedindo, o deslocamento de eleitores e eleitoras, especialmente em áreas onde Lula possuía mais votos, como na região Nordeste do país. Realizar atos multitudinários de campanha, muitos deles sem a presença do candidato ou de figuras públicas mais conhecidas, vestir as cores da campanha de Lula, suas bandeiras e adereços nas semanas que precederam o pleito e especialmente no dia da votação, tudo isso mostra que uma parcela majoritária da população venceu o medo e votou com a esperança de começar tampar a saída de esgoto de onde emergiram os neofascistas bolsonaristas e de viver dias melhores.
Nem as intimidações milicianas, nem as pregações reacionárias de mercadores da fé aliados a Bolsonaro, nem a enxurrada de notícias forjadas, nem o assédio e chantagem patronal foram capazes de impedir que 60 milhões de brasileiros elegessem Lula, impedido de concorrer em 2018 por manobras judiciárias fraudulentas, apoiadas pela mídia corporativa, que acabaram por levá-lo à prisão. É o copo meio cheio.
Há também análises na esquerda que destacam a tragédia representada pela demonstração de força de Bolsonaro e do bolsonarismo. Foram 58 milhões de votos em um genocida, apesar das quase 700 mil mortes decorrentes da pandemia (mais da metade delas evitáveis se o governo tivesse agido de forma menos desumana), apesar dos discursos neofascistas que pregam a violência pública e privada, particularmente contra as parcelas mais empobrecidas da classe trabalhadora, a população negra e indígena e as mulheres, apesar da reentrada do Brasil no Mapa da Fome, com cerca de 30 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar extrema, apesar da destruição sistemática de direitos trabalhistas e previdenciários, apesar da destruição incentivada da floresta amazônica e de outros biomas, apesar dos cortes orçamentários na saúde, educação e nos programas de políticas públicas em geral voltados para a maioria trabalhadora, apesar de tudo isso e muito mais. É o copo meio-vazio.
Acontece que o copo é de fato meio-cheio e meio-vazio. O som dos conflitos políticos e sociais contemporâneos não toca em modo mono e não é gravado em poucos canais. Para manter a metáfora, temos que apreender (e aprender a lidar com) a sonoridade registrada em dezenas de canais e executada em surround. Entender o quadro que permitiu esse resultado eleitoral e o que emerge das urnas e das ruas a partir de agora, exige muito mais do que podemos apresentar nesse pequeno artigo. Mas, precisamos começar de algum ponto.
Quem elegeu Lula (e quem sustentou Bolsonaro)
As pesquisas eleitorais falharam novamente em captar o volume do voto em Bolsonaro no segundo turno. De qualquer forma, as pesquisas publicadas desde o ano passado, incluindo as mais recentes, nos fornecem um perfil que se manteve ao longo do tempo, apesar da oscilação dos percentuais, de quais segmentos da população eram majoritariamente favoráveis a Lula e daqueles que apoiavam Bolsonaro. Conforme a síntese dos dados de uma das pesquisas (realizada pelo IPEC) divulgadas em 29/10, Lula teria 50% (contra 43% de Bolsonaro) de intenções de voto entre todas as pessoas pesquisadas. Entre as mulheres, a vantagem subiria para 51% a 41% (enquanto entre os homens, Lula e Bolsonaro terminaram praticamente empatados segundo aquela pesquisa). Entre os jovens (16 a 34 anos) Lula teria vantagem ampla (51% a 43%), mas a vantagem diminuiria nas demais faixas etárias. Segundo as faixas de renda, Lula teria sua maior vantagem entre os extratos menos remunerados da classe trabalhadora, com 62% a 30% entre quem ganha até 1 salário mínimo e 51% a 42% entre os de renda entre 1 e 2 salários mínimos. Em todos os extratos de remuneração superior a 2 salários mínimos, Bolsonaro levava vantagem. No que diz respeito à escolaridade, Lula liderava amplamente entre os que só possuíam até o ensino fundamental (58% a 35%), quase empatando entre os que foram até o ensino médio e perdendo entre os que chegaram ao ensino superior. Lula tinha maioria de intenção de votos entre católicos e Bolsonaro ganhava entre os evangélicos. Entre os brancos, Bolsonaro tinha maioria de 49% a 44% e entre a população negra, Lula levava vantagem, com 54 a 36%.
Confirmando o que já havia se dado no primeiro turno, Lula venceu as eleições no Nordeste do Brasil, com uma maioria bastante ampla de cerca de 70% a 30%. Perdeu nas demais regiões, com maior percentual de votos para Bolsonaro no Sul (61%) e uma vantagem mais apertada no Norte, onde Lula havia ganho no primeiro turno. É importante registrar, porém, que a votação do candidato do PT foi proporcionalmente maior no Sudeste do que nas eleições presidenciais de 2018 e que o partido recuou alguns pontos percentuais no Nordeste, em relação às votações que vinha obtendo para a presidência desde 2006.
Síntese da síntese: Lula foi eleito pelas mulheres, pelos(as) jovens, pelas frações mais empobrecidas e de menor escolaridade da classe trabalhadora, pela população negra e pelos(as) nordestinos(as). Obviamente, são características que se articulam na vida real das pessoas. Se fosse preciso fazer um retrato de uma única pessoa que votou em Lula, seria uma mulher negra, nordestina, com menos de 35 anos, ensino fundamental e rendimentos de até dois salários mínimos.
A segmentação das pesquisas eleitorais nos fornece pistas para uma aproximação com o sentido de classe da votação, mas é preciso ir além delas.
Voltando à imagem do copo. É digna de registro a resiliência do voto em Lula nas frações mais precarizadas e pauperizadas da classe trabalhadora. Apesar de todo o derrame de verbas públicas para políticas sociais de ocasião (criadas e garantidas apenas para os meses que precederam a eleição) e de toda a campanha suja que associou a continuidade dos benefícios ao voto em Bolsonaro, com elementos de assédio eleitoral direto e compra de votos em municípios de menor porte com prefeituras bolsonaristas, os beneficiários de programas sociais do governo federal votaram majoritariamente em Lula (58% a 37%). Assim, o copo meio-cheio foi, de fato, um grande feito político, porque não se enfrentou um adversário da política tradicional, mas sim uma máquina de guerra eleitoral, capaz de criar suas próprias regras, muito além dos limites da legalidade institucional.
Por outro lado, voltando ao copo meio vazio, os 58 milhões de votos despejados no presidente neofascista, se não foram suficientes para elegê-lo, demonstram uma força política de grandes proporções dessa nova versão da extrema-direita que emergiu no cenário político brasileiro a partir de 2015-2016, deslocando a direita tradicional para um papel residual na disputa presidencial. Ainda que descontemos os votos oriundos do assédio patronal, das lideranças religiosas, da chantagem de autoridades públicas com os programas sociais e muito mais, são dezenas de milhões de “pessoas comuns” – eventualmente, nossos vizinhos, colegas de trabalho, familiares – que votaram convictamente em Bolsonaro. Sabemos que o neofascismo bolsonarista, como os fascismos históricos dos anos 1930/1940, conta com um núcleo duro de sua base social nos setores médios e pequeno-burgueses. Das manifestações contra Dilma em 2015/2016 aos atos de índole mais golpista em apoio a Bolsonaro nos últimos anos (como no 07 de setembro de 2021), é o perfil pequeno-burguês que predomina entre os militantes mais mobilizados do bolsonarismo.
Não há, porém, 50 milhões de pequenos empresários no Brasil. A votação de Bolsonaro expressa o seu apoio em parcelas da classe trabalhadora, particularmente aquela que recebe entre dois e cinco salários mínimos, que está longe de poder sobreviver com o padrão de consumo típico da classe média brasileira – com casa própria em bairros urbanizados, automóvel, filhos em escola particular e plano de saúde privado, por exemplo. Uma hipótese a ser testada, para explicar esse apoio, é a de que, embora vivendo do próprio trabalho, subordinados ao capital e com padrão de consumo da classe trabalhadora, essa fração efetivamente não se identifique como tal. Se nos governos do PT, até 2016, a elevação do padrão de renda e consumo de uma parte da classe trabalhadora foi interpretada como o surgimento de uma “nova classe média”, numa definição liberal de classe social, criticada mesmo por economistas petistas, ao que parece essas frações de fato passaram a se identificar como tal. Para tanto, ainda estamos tentando entender o impacto sobre a consciência social da ideologia que iguala o trabalho desprovido de direitos a um “empreendedorismo”, regido pela lógica da meritocracia no salve-se quem puder de um mercado desregulamentado, combinada aos preceitos religiosos da teologia da prosperidade e suas variações. Além do que é preciso avançar no entendimento da aderência do discurso reacionário sobre os “costumes” – centrado na condenação moral e religiosa a todas as identidades, orientações e representações no plano do gênero e sexualidade que fujam ao padrão heteronormativo e ao domínio patriarcal sobre a família. Na sequência desse discurso, instituições de ensino (especialmente as públicas), produção de conhecimento científico e manifestações culturais fazem, todas, parte de um mesmo complô para destruir os valores tradicionais da família brasileira. É a esse “marxismo cultural”, na chave interpretativa olavista, que o bolsonarismo associa comunismo (e contra o qual funda seu anticomunismo), mais que a qualquer projeto político-ideológico de uma outra forma de organização da sociedade.
Por fim, uma análise da relação entre eleições e correlação de forças sociais não pode prescindir da tentativa de compreender quais as posições políticas assumidas pela classe dominante. Tarefa mais complexa, porque as frações burguesas que representam o grande capital não possuem qualquer expressão numérica significativa para serem captadas em pesquisas eleitorais. Embora suas associações de classe e demais organizações na sociedade civil (os aparelhos privados de hegemonia burgueses, na linguagem gramsciana) produzam registros das posições e projetos das diferentes frações burguesas, quanto mais alto subimos na escala de capital acumulado e movimentado, mais difícil é encontrar posicionamentos políticos de apoio explícito a tal ou qual candidato.
Uma primeira observação é a de que, em 2018, Bolsonaro não era a primeira opção do conjunto da classe dominante brasileira. Pressionada, por seu papel dependente e subordinado no mercado mundial capitalista, diante das manifestações mais duras da crise capitalista internacional na economia brasileira, a partir de 2014, a burguesia aqui localizada apoiou explicitamente a derrubada de Dilma Rousseff, via golpe parlamentar e judiciário, e por isso financiou e insuflou as manifestações de rua, de base pequeno-burguesa, que deram sustentação ao golpe. O projeto do grande capital, assumido pelo governo Temer, era aprofundar e acelerar as “reformas estruturais” de sentido regressivo para os direitos sociais – reforma trabalhista, teto de gastos e reforma previdenciária (esta última completada em 2019 já com Bolsonaro) – de maneira a conter a queda na taxa de lucro através da elevação da taxa de exploração da força de trabalho. Para efetivar o golpe e encaminhar as reformas, as frações burguesas contaram com todo o aparato da mídia empresarial despejando a mensagem da associação entre os governos petistas e a corrupção. Ainda assim, todas as pesquisas eleitorais indicavam a preferência eleitoral por Lula para presidência em 2018. O golpe precisou ser complementado pela prisão de Lula, com base em acusações insustentáveis em qualquer tribunal minimamente decente, por um juiz ativista da direita (que logo se tornaria Ministro de Bolsonaro), de forma a alijá-lo do processo.
No entanto, àquela altura, as massas majoritariamente pequeno-burguesas, e frações mais radicalizadas da burguesia (especialmente no grande comércio e no agronegócio) mobilizadas para respaldar o golpe e alimentadas pelo discurso antipetista de “combate à corrupção”, já haviam encontrado seu campeão, seu “Mito”, em Bolsonaro. Por isso, as candidaturas presidenciais de pedigree genuinamente burguês, como a de Geraldo Alckmin (então no PSDB), não decolaram em 2018, com a burguesia em seu conjunto migrando para o apoio a Bolsonaro no correr do processo eleitoral, de forma a derrotar o PT.
Ao longo do governo, entretanto, como historicamente ocorre com lideranças fascistas, Bolsonaro governou para o grande capital. A aprovação da reforma trabalhista, as transferências de fundo público para o capital privado, via privatizações e “parcerias”, o achatamento salarial através da política de reajuste do salário mínimo no limite da inflação passada e, principalmente, uma “gestão” da pandemia que privilegiou a manutenção do lucro das empresas em detrimento da vida de trabalhadores, tudo isso se somou para que Bolsonaro e, especialmente, sua política econômica fossem sustentados pelo conjunto da burguesia ao longo de todo o seu mandato, blindado contra os processos de impeachment, quaisquer que fossem os muitos crimes de responsabilidade que tenha cometido.
No entanto, nas eleições de 2022, essa base de sustentação burguesa a Bolsonaro não se manteve coesa. A incorporação de Geraldo Alckmin (arquiadversário do PT em eleições passadas) como vice na chapa de Lula, o apoio de Simone Tebet (última tentativa de “terceira via” nestas eleições) no segundo turno, o ativismo judicial do TSE e do STF contra a máquina de notícias falsificadas do bolsonarismo, tudo isso indica, no plano da representação política, que frações do capital deram suporte a Lula ou projetaram que seria vitorioso e por isso precisavam atualizar sua linha de intervenção.
Gabriel Kannan apresenta uma hipótese interessante de que, apesar da homogeneidade do apoio às políticas econômicas do governo Bolsonaro, o processo eleitoral refletiria uma tensão entre uma fração burguesa de “pretensos cosmopolitas” – mais internacionalizados; controlando maiores massas de capital; mais propensos a incorporarem, para apassivar conflitos potenciais, pautas ambientais e de representatividade; e com retórica de defesa das instituições do regime democrático – e a ala mais propriamente fascista da burguesia, que apoia o golpismo, a repressão e o aniquilamento dos movimentos populares no campo e na cidade. Mais do que simplesmente uma divisão entre frações do capital – capital industrial, bancário, comercial, do agro, etc. – o que a hipótese de Kannan aponta, a partir da análise dos posicionamentos de dezenas de aparelhos privados de hegemonia empresarial, é que as diferenças estariam na escala de capitais acumulados e no grau de imbricação com o capital multinacional oriundo das potências imperialistas.
Neste sentido, talvez seja possível constatar que uma parcela da burguesia tenha levado a rejeição a Bolsonaro a um patamar tal que lhe pareceu mais palatável aceitar a opção Lula, algo impensável há quatro anos. E por que? Partimos da hipótese de que duas situações explicam esse reposicionamento de frações burguesas. De um lado, a mudança do cenário internacional, desde a eleição de Biden (e derrota de Trump, ídolo e aliado de Bolsonaro) nos Estados Unidos. Em um cenário internacional muito instável, dada a disputa interimperialista entre Estados Unidos e China, agravada com a invasão russa à Ucrânia e o prolongamento da guerra, a maior parte do “clube do bilhão” no Brasil, alinha-se às políticas das potências imperialistas, que manifestaram claramente seu apoio a Lula (vide a rapidez com que o resultado das urnas foi reconhecido por Biden, Macron, Scholz, entre muitos outros). O fazem não por simpatias genéricas pela esquerda, mas por tomarem Bolsonaro como expressão da ameaça da extrema-direita que enfrentam em seus países e/ou por condenarem particularmente sua política para a Amazônia, tida como central para uma projetada (embora impossível) saída para a crise climática no interior da dinâmica capitalista. De outro lado, pesou a necessidade de conter a instabilidade política permanente que a alternativa neofascista acarreta. Sem dúvida, a classe dominante brasileira nunca cultuou o regime democrático e o modelo autocrático-burguês de gestão da dominação de classes, para lembrar Florestan Fernandes, foi o caminho através do qual o Estado burguês foi construído no Brasil. Mas, ainda assim, a estratégia contrarrevolucionária permanente pode funcionar com mais estabilidade, se combinar as formas coercitivas de sempre com fortes doses de construção de consensos em torno dos projetos burgueses. É essa estabilidade, almejada por uma parcela da burguesia, que o bolsonarismo não pode entregar.
Não nos enganemos, porém, acreditando que o governo de Lula, que quer se apresentar como de “união nacional” pela democracia, tenha condições de costurar uma sustentação burguesa totalmente estável. As parcelas da burguesia que aderiram ao bolsonarismo podem se comportar em relação ao novo governo de forma pragmática para garantir seus lucros, pois são sempre dependentes de acordos políticos para pilhagem do fundo público. No entanto, sua vinculação ao ideário e mesmo seu papel de direção de movimentos neofascistas estarão presentes como elementos constantes de pressão sobre o regime democrático, nos próximos anos. Regime democrático, aliás, que tem se mostrado tão complacente ao neofascismo a ponto de normalizá-lo, como mais um ator político legítimo.
O ponto em que estamos
Menos de 72 horas após o encerramento da apuração, a situação política no Brasil continua regida pelas regras do jogo do bolsonarismo. Instabilidade e tensão política permanentes, provocadas por uma força política neofascista que possui capacidade de mobilização de massas. Articulados semanas antes do segundo turno, bloqueios de estradas, muitos deles nitidamente patrocinados por recursos empresariais, chegaram a interromper o trânsito em mais de 300 trechos de rodovias. Na data de hoje (02/11), apesar da diminuição do número de bloqueios, milhares de manifestantes se reuniram nas sedes dos comandos militares. A pauta, nos dois casos, é a intervenção militar para reverter o resultado das urnas. No ambiente de metaverso em que habitam essas pessoas, Bolsonaro foi vítima de uma fraude eleitoral pró-Lula, armada pelo STF/TSE, e a intervenção militar seria um dispositivo constitucional válido para garantir que o “Mito” não deixe o comando do país e livrar-nos do mal, amém!
O pronunciamento de Bolsonaro, no dia 01/11, agradecendo os votos que recebeu e não reconhecendo a vitória de Lula foi mais um movimento dessa aposta no caos. Apesar de todo o esforço de autoridades e das mídias empresariais para apresentá-lo como uma subordinação às regras da legalidade, o discurso-relâmpago foi eivado de sinais, verdadeiros apitos de cachorros, para a manutenção da sua base mobilizada. O mais grave é que o delírio das massas bolsonaristas é compartilhado e estimulado por parcela expressiva das forças de segurança interna. A mesma Polícia Rodoviária Federal que tentou tumultuar as votações dificultando o acesso de eleitores de Lula aos locais de votação, agora se mostra indolente na resolução dos bloqueios de estrada e seus agentes, assim como policiais militares em algumas regiões, confraternizam abertamente com os golpistas. Neste caso, embora haja financiamento empresarial dos atos golpistas, há também prejuízos e interesses capitalistas contrariados pelo bloqueio à circulação de mercadorias, o que explica porque haja também pressão burguesa para uma intervenção policial mais dura, que já acontece em alguns locais. De toda forma, retomar o controle das forças policiais por autoridades civis democráticas, será um desafio difícil para o próximo governo.
Ainda que o quadro internacional e o jogo político local – com figuras eleitas como governadores e senadores através do voto bolsonarista e a base de Bolsonaro no Congresso correndo a legitimar a eleição e a oferecer sustentação legislativa a Lula (com base nas trocas nada “republicanas” que já conhecemos muito bem) – não abram muita margem para a efetivação de um golpe de Estado, a estratégia da tensão política permanente responde a objetivos políticos racionais. Bolsonaro busca chantagear as instituições para ganhar algum tipo de imunidade frente aos muitos processos que terá que enfrentar no judiciário e se apresenta como o organizador de um novo tipo de oposição política, com capacidade de mobilização de massas e sem nenhum compromisso com as regras tradicionais do jogo democrático.
Daqui até primeiro de janeiro de 2023, teremos que enfrentar esse quadro de tensões permanentes provocadas por Bolsonaro e seus seguidores, no mesmo período em que a transição de governos estará se operando, o que implica na montagem da equipe e que governará com Lula e no planejamento de suas primeiras iniciativas no Planalto. Nesse plano, a pressão das forças heterogêneas da ampla aliança que se formou em torno do líder petista no segundo turno, dos mídia empresariais e das representações burguesas – incluídas aí as que foram até aqui hostis a Lula, claro – se ampliará muito, para garantir que Lula não reverta o “legado” das reformas estruturais levadas a cabo desde 2016 e garanta que a lógica da conciliação de classes, que sempre marcou seus governos, se mantenha dentro dos limites mais estreitos impostos pela agenda do grande capital. Os latidos raivosos da base bolsonaristas terão também o efeito de ampliar a chantagem para concessões que “acalmem o mercado”.
A esquerda socialista não pode passar os próximos dois meses como mera espectadora. Ela teve protagonismo no processo eleitoral, participando ativamente das mobilizações de massa que caracterizaram, especialmente no segundo turno, a campanha de Lula. Lideranças políticas do PSOL, como Guilherme Boulos e outros parlamentares eleitos pelo partido, se reafirmaram como referências importantes para os que votaram em Lula apostando em derrotar Bolsonaro, mas também em avançar para além dos limites da política de retirada de direitos que caracterizou os últimos sete anos.
É desse setor, de nós, que se deve esperar uma intervenção mais consistente para que não deixemos as ruas abertas para o desfile patético e trágico da escumalha bolsonarista. É preciso voltar a tomar o espaço público, para comemorar a vitória de Lula, mas também para cortar o espaço dos manifestantes fascistas, fortalecendo os laços embrionários que a campanha eleitoral pode ter contribuído para criar na direção de uma reorganização de setores mais combativos da classe trabalhadora. É dessa posição que teremos mais força para contrarrestar as tensões permanentes que o neofascismo continuará a provocar. Também é a partir dessa estratégia de organização e mobilização permanente do nosso lado que poderemos criar um campo de contrapressão à força da pressão burguesa sobre o governo Lula em formação. Dessa contrapressão, a partir de fora e de baixo, depende a possibilidade de que não se frustrem completamente as esperanças de mudanças mais amplas e profundas.
Derrotar Bolsonaro nas urnas foi um feito gigante. Ao mesmo tempo, foi apenas um primeiro passo para derrotarmos o neofascismo e revertermos a correlação social de forças, tão desfavorável para a classe trabalhadora nos últimos anos. Sigamos em luta.
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