Bolsonaro não se cansa de repetir que se Lula vencer as eleições, vai fechar igrejas e perseguir cristãos. Essas infâmias já foram desmentidas dezenas de vezes. A prova mais evidente de que Lula defende a liberdade religiosa é que ele mesmo sancionou a lei nº 10.825, de 22 de dezembro de 2003, conhecida como a Lei da Liberdade Religiosa, instrumento esse que garante o livre estabelecimento de organizações religiosas no país, proibindo o Estado de impedir sua criação. A liberdade religiosa em si já é garantida pela Constituição Federal de 1988 e não depende do presidente república.
Mas vamos ao que interessa. Bolsonaro mente sobre Lula ao mesmo tempo em que mantém relações pra lá de sinistras com o ditador da Arábia Saudita Mohammed Bin Salman, esse sim perseguidor de cristãos em seu país.
A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista (poder absoluto do rei, sem o controle ou mediação de um parlamento) localizada na Península Arábica, Oriente Médio. Na Arábia Saudita, 97% da população é muçulmana, o que em si mesmo não representa qualquer problema. A grande questão é que na Arábia Saudita não existe nenhuma liberdade religiosa, principalmente para cristãos. A conversão do islamismo ao cristianismo é proibida por lei e constitui o crime de “apostasia”, que pode ser punido com a pena de morte. Os cristãos na Arábia Saudita são sobretudo imigrantes asiáticos e trabalhadores expatriados. Essas pessoas não podem expressar livremente sua fé, nem mesmo dentro de suas próprias casas, que são frequentemente inspecionadas pela polícia religiosa do país (sim, é isso que você leu, existe uma polícia religiosa na Arábia Saudita). Diante de qualquer sinal de culto ou proselitismo, a pessoa pode ser expulsa do país (o último pastor cristão foi expulso em 1985). As comemorações do Ramadã, feriado muçulmano, são obrigatórias para os trabalhadores estrangeiros cristãos, ao mesmo tempo que o Natal e a Páscoa são proibidos.
Pois bem, quem governa esse país e qual sua relação com Bolsonaro? O governante de fato de país é o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman bin Abdulaziz Al Saud, filho do rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, que sofre de Alzheimer e se encontra de fato afastado das funções de governança. Depois de algumas poucas medidas reformistas no início de sua gestão, o príncipe Mohammad logo revelou sua verdadeira face ditatorial e estabeleceu um governo marcado pela perseguição e o terror contra cristãos, mulheres e opositores em geral. Talvez você se lembre do episódio em que o príncipe Mohammad foi acusado de ordenar o assassinato do jornalista opositor Jamal Khashoggi em 2018 durante uma visita do jornalista ao consulado saudita na Turquia para resolver problemas de documentação. Khashoggi foi morto e esquertejado por 15 seguranças do consulado e seu corpo descartado em malas de viagem. O governo saudita chegou a admitir que o jornalista fora morto no consulado “durante uma luta”, mas nunca explicou o esquertejamento nem o descarte do corpo em malas.
Em visita a Arábia Saudita em outubro de 2019, Bolsonaro não apenas se encontrou com o príncipe (o que seria inevitável e compreensível em uma visita de Estado), mas disse que entre eles havia “certa afinidade” e que qualquer um gostaria de passar uma tarde com o príncipe, “principalmente as mulheres”. As relações de Bolsonaro com o ditador não se resumem à retórica, embora a retórica, nesse caso, seja muito importante. A Arábia Saudita é o principal parceiro comercial do Brasil no Oriente Médio, com investimentos na área de infraestrutura, defesa, energia, agronegócio e (muito importante!) concessões e privatizações.
Bolsonaro enche a boca para falar da Nicarágua, mas jamais criticou o príncipe Mohammad por sua perseguição contra os cristãos da Arábia Saudita e chegou a convidá-lo para uma visita ao Brasil em fevereiro deste ano, mas que nunca ocorreu.
Mais uma vez, acusações de pedofilia
A cereja do bolo de toda essa história é que o príncipe Mohammad (advinhem) também é acusado de pedofilia. Em março de 2020 a justiça britânica julgou o pedido de divórcio da princesa dos Emirados Árabes Unidos, Haya Bint Al-Hussein, de seu marido, o emir de Dubai Mohammed Al Maktoum. Haya Bint Al-Hussein fugiu dos Emirados Árabes Unidos em 2019 e entrou com um pedido de divórcio na justiça britânica. Ela alega que entre as principais razões de sua fuga dos Emirados Árabes Unidos estava o acordo entre o emir Al Maktoum e Mohammad bin Salman de entregar a filha do casal, a princesa Jalila, de 11 anos, em casamento para o príncipe. Apavorada com a possibilidade de sua filha de 11 anos se casar com um homem de 34 anos, Haya fugiu dos EAU e se refugiou na Inglaterra, onde o caso veio à tona.
Esse é o tipo de gente elogiada por Bolsonaro ao redor do mundo e com quem ele tem “certa afinidade”, “compartilha certos valores”, é “irmão” e outras atrocidades.
Por fim, comentemos apenas que a perseguição contra cristãos não é uma novidade para Bolsonaro porque o bolsonarismo já faz isso aqui no Brasil, só que é contra os cristãos que se opõem à sua política de morte e ódio. O episódio em Aparecida, quando o sacerdote que rezava a missa em comemoração ao dia de Nossa Senhora de Aparecida foi vaiado ao falar contra o “dragão da fome e do ódio” deve nos alertar sobre o tipo de “liberdade religiosa” defendida por Bolsonaro. Quem não sentiu náuseas ao ver, no mesmo evento, o bolsonarista apontar o caneco de cerveja com a foto de Bolsonaro e dizer: “Esse é meu Deus” simplesmente não tem estômago. E não pára por aí: tem a perseguição contra o padre Julio Lancellotti e suas obras de caridade e solidariedade humana, sem falar na demonização aberta das as religiões de matriz africana. Esse é a verdadeira relação de Bolsonaro com a liberdade religiosa. É isso, também, que precisamos evitar.
In English: Bolsonaro’s friend, dictator persecutes Christians in Saudi Arabia
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