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BRASIL

A campanha Lula e o balanço entreaberto do Ele Não: sentidos do classismo feminista na disputa eleitoral

Não é apenas um horizonte de melhoras redistributivas que pode dar ao feminismo alguma conotação de classe na disputa, mas, ao contrário, é a partir da defesa das mulheres mais exploradas e oprimidas que o classismo pode entrar em cena e ganhar adesão entre os trabalhadores mais pobres indecisos, e, principalmente, entre as trabalhadoras pobres indecisas

Carolina Freitas*, de São Paulo, SP
Central de atendimento do Cadastro único Bolsa Família
Reprodução

A imprensa, as redes sociais e os balcões de padarias comentaram na semana que passou o debate entre presidenciáveis realizado pelo Grupo Bandeirantes na noite do domingo em 28 de agosto, de considerável audiência entre as televisões ligadas no país. Entre assessorias de contabilidade política profissional, frases treinadas para vídeos editados, fortes sedativos e o apagamento ensurdecedor dos temas que assolam as mentes e as barrigas de várias dezenas de milhões de pessoas, a misoginia bolsonarista, incontrolável, explodiu métricas e metas de engajamento no programa e o debate mudou definitivamente seu curso para Bolsonaro e as demais candidaturas.

As “questões das mulheres” se tornaram então um elefante catártico adentrando uma sala de cristais onde jantavam os protoestrategistas e demais especialistas. Eis as verdades nas várias mentiras: “Vera, você só pensa em mim à noite”, “Você é uma vergonha para o jornalismo”, “Você é uma vergonha para o senado”; “As mulheres brasileiras me amam”; “Cadê a solidariedade a Nise Yamaguchi na CPI?”; “Por que você odeia tanto as mulheres?”; “Só uma mulher pode arrumar a casa e cuidar do Brasil”; “Olha o voluntariado feito pela primeira-dama”; “Tem homem que é tchutchuca com outros homens e tigrão com as mulheres”; “Sua empregada doméstica viu”; “A função da sua ex-mulher em campanha era dormir com você”; “Não posso prometer cota de mulheres para a composição ministerial”; “Fiz política para as mulheres sem marido”; “As mulheres são pacificadoras”; “Lei Maria da Paz para combater estupros”.

Sem pestanejos, o assunto “mulheres” já vinha assíduo nas últimas semanas de agenda política dos candidatos, ao se mostrar, pesquisa após pesquisa, como um dos principais perfis de corte eleitoral que inviabilizaram um crescimento mais competitivo de Bolsonaro em intenção de voto e que até mesmo o fizeram cair nas últimas pesquisas, junto com a faixa de renda de até dois salários mínimos e a região nordeste. Mesmo com a megaoperação do Auxílio Brasil, mesmo com a força centralizadora para orientação do voto das grandes igrejas pentecostais, Bolsonaro não cresce satisfatoriamente entre as mulheres, com preponderância, entre as mulheres pobres. Há uma fácil explicação que descreve, mas talvez não enxergue como deveria, o que se trata a oposição do eleitorado pobre feminino a Bolsonaro nos seus sentidos históricos e políticos.

Em primeiro lugar, o potencial da discussão pública ampla sobre os direitos das mulheres certamente não é o de Tebet e Thronicke – cujo passado em defesa da propriedade privada da terra dispensa citações já exaustivamente feitas ao longo da semana pós-debate. Somam simbolicamente à necessidade de oposição à misoginia bolsonarista, mas postulam justamente o feminismo como verdadeira “terceira via”. Simone Tebet, que agora usa o slogan ela sim, eles não provavelmente não coubesse na ação unitária do movimento Ele Não em 2018, mas hoje é alternativa de grande parte do grande empresariado signatário de cartas pelo Estado Democrático de Direito que coroa a oposição da “sociedade civil”. Ali em 2018, tratava-se de uma frente de movimentos feministas de esquerda que angariou segmentos políticos liberais democráticos simpáticos ao feminismo. Hoje, trata-se, em primeiro lugar, de uma unidade política liberal que centraliza a política de campanha, não raro dificultando a elaboração mais acurada de interesses feministas populares.

Simone Tebet porta a neutralização do feminismo quando alegou proteger a médica Nise Yamaguchi durante a CPI da covid-19 contra “ofensas machistas”, porque as mulheres “vão pacificar o país”. Esta operação é a negação do feminismo classista em nome da positivação do feminismo como um termômetro comportamental abstrato, de identidade formal, que suprime discursivamente o antagonismo social brasileiro, no qual as mulheres negras e pobres estiveram de um lado reivindicando comida no prato e vacina no braço e do outro lado esteve a tal médica, carimbando seu CRM na homicida experimentação social da imunidade de rebanho.

Em segundo lugar, é da retumbante verdade “a sua empregada viu” que Lula, mais que nunca, precisa extrair sua estratégia de campanha. Não é apenas um horizonte de melhoras redistributivas que pode dar ao feminismo alguma conotação de classe na disputa, mas, ao contrário, é a partir da defesa das mulheres mais exploradas e oprimidas que o classismo pode entrar em cena e ganhar adesão entre os trabalhadores mais pobres indecisos, e,  principalmente, entre as trabalhadoras pobres indecisas. É esta a necessidade programática materializada na defesa do trabalho e da renda, desoneração da dívida, habitação, educação, saúde, assistência.

A inadimplência feminina não é um fato novo, mas requalificou-se enquanto problema econômico num país em que as mulheres são crescentemente empobrecidas e, ao mesmo tempo, responsabilizadas pela sobrevivência familiar; em que mulheres se endividam para trabalhar e ao mesmo tempo não ganham o suficiente para pagar suas dívidas. Por isso, qualquer programa feminista precisa adequar a centralidade da dívida, do trabalho e da habitação, sobretudo como conclusões políticas produzidas pela experiência da pandemia e da escala inflacionária que atinge o preço de combustíveis, gás, luz, aluguel e alimentos.

As últimas pesquisas mostram que as mulheres pobres não são apenas aquelas que rechaçam Bolsonaro, como também quem representa uma nova aposta em Lula depois de todo o processo reacionário estimulado a partir de 2015. As mulheres pobres também expressam nas pesquisas a conclusão de sua experiência intermitente com a prestação do Auxílio Brasil desde 2020, que, com sua provisoriedade arbitrária, dificultou qualquer planejamento doméstico. As pesquisas demonstram que as mulheres têm a sensação de que a renda prometida por Bolsonaro em campanha é momentânea e eleitoralmente oportunista.

A essencialidade do trabalho feminino deve ser traduzida como um conjunto reposicionado de exigências, reconhecendo que as mulheres estão em primeira linha na manutenção coletiva, a exemplo do que se dá agora na disputa sobre o piso salarial das enfermeiras. Trata-se da confrontação à economia ultraneoliberal baseada no uso descartável das atividades essenciais. Ao contrário de suprimir o trabalho como questão feminista para dar lugar a outras “bandeiras liberais democráticas”, o trabalho volta ao centro da disputa contra o bolsonarismo. É a luta pela valorização diante de uma noção reabilitada de essencialidade, como já vinha sendo sugerido pela propaganda das mobilizações nacionais e das greves internacionais feministas na última década.

Por fim, além da imprescindível detecção do sentido programático feminista na campanha Lula, impositivo desta reestruturação nas relações de classe em torno da reprodução, há também um balanço político entreaberto a ser praticado agora pela sua direção. Em 2018, embora as mulheres petistas tenham sido parte ativa da organização dos atos, vigeu na cúpula do Partido dos Trabalhadores a conclusão de que a mobilização do Ele Não assanhou as forças reacionárias e o pânico moral que levaram ao triunfo o bolsonarismo. Afirmar que a maior mobilização de massa desde junho de 2013, sob a recusa feminista do neofascismo, desvirtuou a disputa eleitoral de seus “verdadeiros sentidos” é apelar convenientemente às mesmas raízes conservadoras e misóginas da sociedade brasileira que fertilizaram o movimento neoconservador, apenas para justificar uma posição recuada sobre o processo político. O mesmo procedimento está sendo feito por dirigentes de esquerda agora, nos últimos dias, para justificar a derrota da proposta constituinte no Chile.

O abandono dessa compreensão atrasada não deve ser apenas um ato de boa vontade destas direções com as novas gerações de mulheres lutadoras, mas uma necessidade histórica a serviço de inaugurar um momento de superação do neofascismo no poder. A maioria eleitoral garantida pelas mulheres precisa se converter em força política feminista nas ruas para convencer as eleitoras indecisas do ‘Lula sim’ nas próximas semanas. O Ele Não, como espectro, transbordará as urnas e seguirá rondando: a luta de vida e morte entre as mulheres e a extrema-direita ultraneoliberal rumará no Brasil e na América Latina para muito além de outubro.

* Carolina Freitas é escritora, pesquisadora e ativista feminista.

Texto publicado originalmente na Fórum 21.