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MOVIMENTO

Carta pública a estudantes e colegas servidores da UFAL

Aruã Silva de Lima*
Reprodução/G1

O problema dos imortais é que eles se sabem eternos. Podem cometer erros, dizer bobagens e mudar de ideias quando convier que estará sempre tudo bem. Os gregos antigos já sabiam disso e imagino que todos os povos o saibam. 

Foi uma pessoa assim que a reitoria da UFAL chamou para abrir o nosso semestre letivo. Imortal em tantas casas diferentes, o colega, professor de Ortopedia da Faculdade de Medicina e médico, conseguiu me deixar perplexo. Ainda consigo me impressionar, felizmente. Este já vai ser o terceiro texto de crítica a uma aula inaugural da reitoria. A desgraça é que, a cada semestre, a reitoria parece dobrar a aposta. 

A fala do professor da Faculdade de Medicina que fez a abertura do semestre letivo a pedido da reitoria apresentou um repertório completo do que há de mais moderno para a aniquilação das Universidades. Não se enganem, foi um discurso de destruição, de terra arrasada. No dia em que os servidores públicos da UFAL se reuniram às centenas para discutir formas de enfrentamento ao desmonte do serviço público, fomos ofertados com loas a Margaret Thatcher, a campeã da aniquilação dos serviços públicos na Inglaterra. Ora, isto, por si só, não é um problema, diga-se. É bom que um conservador fale a público na Universidade. Se for um reacionário inteligente, também não teria problema. Que venha! O diabo é que estamos na monotonia de um samba de uma corda só. Estamos ouvindo a cantilena – e somente – conservadora desde 2020. É inevitável concluir: trata-se de reflexo da escolha voluntária de quem dirige a UFAL, é retrato do projeto que anda alinhado com os mais avançados e sofisticados recursos para desmonte da Universidade tal como conhecemos. Estamos assistindo a mais escalada de modernização reacionária quando a inovação, desta vez, é exercida para fins de destruição.

A fala do professor estruturou-se num binômio artificial, como se teoria e prática pudessem ser exercitadas separadamente no processo formativo. Cometendo o sacrilégio de citar porcamente Darcy Ribeiro, o professor defendeu a primazia da prática sobre a teoria. Em tom histriônico, externou reclames à teoria, essa entidade demoníaca, principal responsável por desmotivar os/as estudantes. Culpou a pretensa má formação dos professores pela ausência da prática e, portanto, da falência da Universidade. “Nossa redenção está na prática!“, exultava nas entrelinhas o palestrante.

Usou o exemplo da Coréia do Sul utilizando-se das platitudes habituais que lemos na grande imprensa sobre os supostos êxitos educacionais daquele país. Exibiu ignorar a temática quando disse que no país asiático havia teto salarial cuja referência seria, pasmem, o ordenado do professor. Ou seja: na Coréia do Sul, ninguém poderia ganhar mais que um professor. O colega esqueceu que o país é de livre-mercado e de capitalismo pleno. Se soubesse um pouco mais de teoria, saberia que não há possibilidade de algo assim acontecer num país adepto de um sistema de produção que torna tudo mercadoria, inclusive, o trabalho (docente). Assim, o preço desse trabalho é definido pelas condições de mercado e, no caso do serviço público, mediado pela mão visível do mercado: o Estado. Sem constrangimento, nesse quesito, o colega torceu a verdade a não poder mais. Pior que, neste caso, não precisaria saber teoria. Bastaria pitadas de método científico. “Dar um Google” resolveria, neste caso. Comparar o salário de um professor ao salário de um juiz daquele país estaria a, no máximo, três cliques. Isto no caso de simplesmente se ignorar a excelente filmografia coreana recente que expõe suas tragédias sociais, algo que, sem dúvida, envolve elaboração teórica. 

A levar-se a cabo a fala do colega, não tenho dúvidas em afirmar que as melhores universidades do mundo (com as quais, sem pudores, ele quer que a UFAL mantenha “convênios”) sumiriam. Essas universidades estão estruturadas exatamente no alicerce milenar que fundamenta a instituição: o exercício da abstração e a ampliação da potência do espírito filosófico. E aqui preciso dizer: a UFAL é atrativa a estudantes europeus de medicina. Entretanto, não porque nossos professores sejam bons. Eles o são, sem dúvida. Mas os estudantes do velho continente desejam vir ao Brasil para exercer a tal prática que lhes é vedada na Alemanha. Eles querem fazer sutura, cuidar de gente atropelada, porque na Alemanha, por exemplo, o exercício da prática é mais tardio na formação médica. Deve-se pensar sobre o porquê dos alemães escolhem essa opção. Em todo caso, não custa a lembrança: o exercício da prática, às vezes, exige cobaias. 

Ouvi atentamente a fala do professor. Imaginei como teriam sido feitas descobertas básicas da ciência humana se sua ideia fosse posta em prática. Como abstração, pus em prática o seu raciocínio. Concluí que, sem teoria, Eratóstenes não teria conseguido medir a circunferência da Terra no século III a.C.; Copérnico não teria encontrado o verdadeiro centro do nosso mundo (no caso aqui, o Sistema Solar); Marie Skłodowska-Curie não teria formulado a teoria da radiotividade; Darcy Ribeiro – o mesmo citado pelo colega – não teria chegado à conclusão lapidar de que não há crise na nossa educação, há projeto, e não porque professores são incompetentes ou mal-formados. 

O projeto para educação hegemônico inclui defensores no atual governo de extrema direita, entre os liberais do “Todos pela Educação” (que também já foi chamado a falar por essa gestão universitária) e mais uma porção de gente. Tal projeto está articulado no eixo argumentativo do professor ortopedista. O plano hegemônico para a educação destitui a Universidade das armas da crítica, a coloca na condição de mera reprodutora (no sentido de Pierre Bourdieu, um teórico) e à disposição do mercado, ao se tornar responsável por treinar mão de obra. 

Acrescento que a fraseologia meritocrática do colega esconde o desejo incontido de que a UFAL e toda a Universidade brasileira continuem sendo atores subalternos na divisão internacional do trabalho intelectual. Precisamos reafirmar sempre, em nome de nossa autonomia: a Universidade não é espaço para mera oferta de mão de obra qualificada ao “mercado de trabalho”. Esse discurso tem nome: militância pró-mercado. Não é um problema que militem, mas é uma desgraça que não se assumam como militantes. 

Às/Aos estudantes ingressantes e veteranos: não acreditem que a prática livre de teoria é o éden, a salvação. Essa é uma canoa furada. Se a humanidade sucumbisse a uma prática desprovida de teoria nem mesmo teríamos conseguido lascar pedras, como fizeram nossos antepassados milênios atrás. Formular e conceber teoria é condição para o nosso exercício de humanidade. Todos fazemos, em maior ou menor grau. Lembremos: cachorros, gatos, abelhas, formigas e variados animais conseguem realizar proezas práticas. Mas param por aí. Nós não paramos.

A fala do colega esconde de nós o horizonte histórico que a Universidade oferta a cada um que tem a oportunidade de estar nela: a ampliação ao infinito da capacidade de livre pensar. Este exercício não pode ser castrado por uma prática reprodutora. O que leva a humanidade a novas fronteiras não é a repetição de práticas; é a invenção de novas práticas que só pode ser obtida, antes de tudo, pela superação teórica da prática anterior. O convite bizarro do professor à diversão, opondo a suposta chatice da teoria à pretensa animação da prática, com exemplos para lá de infelizes, foi inteligente (não nego), mas enganoso e alienante. Na Universidade, existe muita diversão, não se incomodem com isso. Ela aparecerá ou vocês saberão encontrá-la. Tem para todos os gostos. Junto à diversão necessária, porém, paciência, denodo, disciplina, espírito de luta e a capacidade de produzir “suor neural” (perdoem a licença poética) são atributos que precisamos aprender e esmerar nos anos de Universidade. 

Vou externar um pedido, sem esperanças, mas é dever moral: os cursos de licenciaturas, os professores que trabalham com ciência básica, o SINTUFAL, o DCE, a ADUFAL e todos aqueles que sabem a importância da boa teoria para o conhecimento científico produzido por toda a humanidade, ao longo de milênios, deveriam externar à reitoria o mais profundo descontentamento com a aula do colega. Não com o sentido de censura. Não se trata disso. Não aprendi muito, é verdade. Mas percebi o quanto estamos distantes um do outro e isso já é um início. E é nesse reconhecimento de distância que cabe às estruturas universitárias incentivar o debate amplo, aberto, fraterno e franco sobre o sentido da própria Universidade.

Finalizo com Paulo Freire. Ainda que o trecho a seguir tenha sido pensado como crítica a setores progressistas, à época de Freire exageradamente ocupados com o exercício de erudição estéril, por um lado, e, por outro, com a captura da prática pela teoria erudita estéril, ainda assim, a observação serve aos dias de hoje. E sua serventia atinge precisamente essa militância, esse ativismo pró-mercado que visa dilacerar o fundamento epistêmico da Universidade: “A teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade.”

 

*Aruã Silva de Lima é professor da UFAL e militante da Resistência/PSOL

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alagoas / Travessia / ufal