No presente texto, busco trazer alguns apontamentos para a construção de uma política de saúde mental no campo da Frente Única de Esquerda de caráter antimanicomial e pautada nos princípios e horizontes da Reforma Psiquiátrica. As presentes reflexões apresentam-se como resposta aos retrocessos mais recentes no campo da Saúde Mental, recrudescendo o que vem sendo caraterizado como Contrarreforma Psiquiátrica, e como tais acontecimentos deveriam provocar uma profunda reflexão e autocrítica dos partidos de esquerda. Busco também dar continuidade às excelentes reflexões publicadas aqui, no Esquerda Online, dos camaradas Marcos César, do Rio de Janeiro (“Frente Única por um compromisso com a dignidade humana na saúde mental”1), e Lucas Marques, de Campinas (“Sobre o encontro de Lula com o Pastor-Sargento”2).
Na semana passada, mais um pacote de maldades foi aprovado no campo da saúde mental. No dia 24/11 aprovou-se o Projeto de Lei Complementar (PLP) 134/2019, que dá imunidade tributária às Comunidades Terapêuticas (CTs), entre outras entidades sem fins lucrativos; já no dia seguinte, 25/11, foi sancionada a Lei nº 14.251, que, dentre várias ações, destina mais R$ 78 milhões para as CTs. Cabe ressaltar que tais ações não se deram sem a concordância e participação de partidos de esquerda.
O PLP 134/2019 estabelecia condições para que entidades “beneficentes” tivessem direito ao direito à imunidade tributária. Ao passar pelo Senado, as CTs foram reinseridas no referido PLP. No entanto, o PSOL apresentou destaque para que fossem retiradas. No dia 24/11, ocorreu a votação, e as bancadas do PCdoB, PSB e PDT orientaram voto contrário ao destaque do PSOL (ou seja, apoiaram a imunidade tributária das CTs). Já o PT liberou os votos de seus parlamentares, sendo que, dos 53 deputados do partido, apenas 9 votaram SIM ao destaque do PSOL, isto é, se posicionaram contra a imunidade tributária às CTs. O PSOL foi o único partido cuja bancada, integralmente, votou pelo SIM e pela não imunidade tributária às CTs.
Para quem não sabe, as CTs na realidade brasileira são a expressão mais evidente, em termos de instituição, do retorno da lógica asilar-manicomial às políticas de saúde mental – lembrando que a lógica asilar-antimanicomial é também mercantil, atrelada à indústria da loucura em suas novas(-velhas) formas. Movimento este que, aliás, não surge do nada, como um raio em céu azul, mas que é fomentado no próprio processo de implantação e desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica brasileira durante as gestões petistas, sendo intensificado a partir do golpe de 2016 e tendo seu clímax, até o momento, no governo Bolsonaro. Basta rememorarmos que as CTs são inseridas na Rede de Atenção Psicossocial na portaria 3.088/2011, bem como, a partir desta data, passam a ser contempladas com uma série de verbas públicas, que deveriam ser destinadas para serviços, como os Centros de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos, Unidades de Acolhimento, leitos e enfermarias em saúde mental nos Hospitais Gerais, dentre outros.
Cabe ressaltar que tais instituições se desenvolvem em nosso país num cenário histórico de lacuna assistencial estatal para pessoas com necessidades associadas ao consumo abusivo de drogas, mas que vinha sendo minimizado ou revertido no/pelo desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica, conquista, inclusive, da Luta Antimanicomial – mesmo que com suas contradições e limites. Num contexto de pânico social forjado sobre o crack, a partir de 2009, 2010, 2011, as CTs se proliferam, encontrando terreno fértil na ascensão conservadora e fundamentalista religiosa. Não por acaso, é justamente nas especificidades da assistência no campo das drogas, que vimos as maiores brechas para o retorno manicomial, e lógica asilar-manicomial, e que passam a atravessar o campo da saúde mental como um todo. Basta que lembremos as iniciativas de internação compulsória – na realidade, práticas higienistas e eugênicas –, de esterilização compulsória de mulheres (negras e em situação de rua) e as próprias CTs.
De acordo com pesquisa do IPEA (2017)3, tínhamos no país aproximadamente 2.000 CTs. Este número deve ter se ampliado massivamente nos últimos anos, em decorrência das próprias facilidades e privilégios legados a tais instituições e suas funcionalidades no presente. No entanto, tomando-o como base, em março de 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, 496 CTs obtiveram repasse de verbas somente do governo federal, num montante de R$153,7 milhões no ano4; ou seja, 25% das CTs no país financiadas apenas pelo ente federativo. A título de comparação, a verba destinada aos 406 Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPSad), principais dispositivos públicos de assistência especializada do país, no mesmo período era de R$158 milhões5. E com as medidas mais recentes, sabe-se que a diferença em prol das CTs aumentou.
Sendo assim, o fomento às CTs aprofunda, justamente, o cenário histórico de desresponsabilização estatal na assistência em álcool e outras drogas que vinha sendo revertido; pior, deslegitima os serviços e propostas públicos – num contexto de cortes -, bem como uma assistência humanizada, que não viole direitos, de caráter territorial e comunitária, não-manicomial, pautada nos princípios da Reforma Psiquiátrica. Pode-se dizer que o endosso às CTs é uma forma de suprir lacunas assistenciais. No entanto, o que acontece é o contrário, com o fomento a elas sendo retirado justamente do fundo público que seria (e deveria ser) orientado aos serviços assistenciais públicos.
Ademais, são inúmeros os relatos de violação de direitos, violências – inclusive, tortura – em tais instituições6, expressando de maneira mais extremada o que é a lógica asilar-manicomial. Assim como constatou Franco Basaglia, nome fundamental à Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica brasileiras, para os “velhos” manicômios temos as CTs e outras formas de nossos “novos-velhos” manicômios, como instituições de violência. Parafraseando o mesmo Basaglia: as CTs servem para controlar, reprimir e explorar ao máximo os trabalhadores que perderam a capacidade de responder à normalidade dos interesses capitalistas de produção.
Segundo levantamento do IPEA, 82% das CTs possuíam vinculação religiosa
E, segundo o mesmo levantamento do IPEA (2017), 82% das CTs possuíam vinculação religiosa, sobretudo com instituições evangélicas e católicas. De acordo com levantamento realizado pela agência de jornalismo investigativo Pública, entidades cristãs receberam quase 70% da verba federal para comunidades terapêuticas no primeiro ano de governo Bolsonaro7. Não se trata apenas de instituições que abordam a espiritualidade no contexto de tratamento, mas instituições religiosas, o que nos faz questionar acerca das inconstitucionalidades de dispêndio de verba pública pelo Estado, que é laico, a instituições religiosas.
Apesar de não serem prisões, nem igrejas ou manicômios, as CTs têm sua especificidade, justamente, numa articulação do funcionamento das três instituições; é uma amálgama evidente dos processos de (re)manicomialização, mercantilização/privatização e conservadorismo/fundamentalismo religioso. É a instituição-modelo, praticamente um tipo ideal (no caso, nada idealista, mas material, concreto) a demonstrar que a ofensiva do capital contra a classe trabalhadora, anda de mãos dadas com a ascensão e ofensiva conservadora. Acrescentamos à sua natureza de prisão, manicômio e igreja, outra instituição por excelência de nossa formação social escravocrata e racista: a senzala. Até porque, segundo estudo do IPEA (2017), um dos pilares de tais instituições, junto da disciplina e religiosidade, é o trabalho. Não qualquer trabalho, mas o trabalho forçado, não pago, sob roupagens de laborterapia, de ação com suposto propósito terapêutico. Segundo o já citado relatório do Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Ministério Público Federal (2018), realizado em CTs no Brasil todo, a laborterapia “encobre práticas de trabalho forçado e em condições degradantes – práticas que trazem fortes indícios de crime análogo à escravidão”, e “busca, ainda, substituir a contratação de profissionais pelo uso de mão de obra dos internos – sem remuneração ou qualquer garantia trabalhista” (p. 16). Além disso, sob a alcunha de tratamento, temos um eficiente mecanismo de subsistência e lucratividade de tais instituições – mesmo que se autodenominem sem fins lucrativos –, com o fruto do trabalho dos “internos” retornando não a eles, mas à instituição. E, por fim, um trabalho e instituição que, não por acaso, se voltam sobretudo à população negra e mais pauperizada.
Apesar do amplo apoio do PT, PCdoB, PSB e PDT e seus parlamentares às CTs na votação do PLP 134/2019, se unindo, inclusive ao que há de mais obscurantista, reacionário e conservador no parlamento, gostaria de suscitar reflexões sobretudo na militância petista, por saber da importância histórica da pauta da Reforma Psiquiátrica e da própria Luta Antimanicomial para uma enormidade de militantes do partido – que as constroem cotidianamente, aliás. Não se trata de negar a relevância dos outros partidos, mas de sobrepesar a dinâmica política no presente e o que se avizinha. Ao mesmo tempo, serve como chamamento ao diálogo e construção coletiva – e, nisso, incluso os/as militantes e apoiadores/as do PCdoB, PDT, PSB e outros –, de modo a tensionar as trincheiras, direção e parlamentares dos próprios partidos. No caso específico do PT, quando ele apoia projetos como este ele não só escarra nos rostos dos usuários do SUS, dos serviços substitutivos; não apenas estapeia as faces de uma enormidade de trabalhadoras e trabalhadores do campo da Saúde Mental, que, historicamente, vem construindo ações num campo cronicamente subfinanciado e que, mais recentemente, vem sendo desmontado em uma velocidade, volume e intensidade abismais; não golpeia seus árduos e combativos militantes por uma sociedade livre de manicômios. O PT golpeia a si próprio; a sua história. Além de demonstrar uma profunda ignorância sobre o tema – que sabemos, na verdade, tratar-se de pactuações políticas –, demonstra que esqueceu sua própria trajetória ou que, mesmo rememorando dela, pouco ou nada se importa. O partido de David Capistrano Filho, um dos mais revolucionários atores no campo da saúde mental brasileira, gestor da saúde na cidade de Santos (SP), pautando transformações de vanguarda na área; de Paulo Delgado, autor do projeto de lei que se tornou a Lei 10.216/2001, a lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, dentre tantos outros/as nomes incontornáveis, é, no presente, o partido que endossa a lógica asilar-manicomial, mercantil (de privatização e mercantilização do cuidado) e conservadora nas suas instituições atuais por excelência: as CTs, nosso novos-velhos manicômios.
Não se pode ser antimanicomial por conveniência ou apenas em determinadas pautas, momentos específicos; ou se é antimanicomial ou não é
Assim, uma política de esquerda no campo da saúde mental não pode apenas bradar que é antimanicomial, deve ser no seu conteúdo, na sua práxis, antimanicomial. Não se pode ser antimanicomial por conveniência ou apenas em determinadas pautas, momentos específicos; ou se é antimanicomial ou não é; não existe meio antimanicomial. E, como vimos, a lógica asilar-manicomial, que tem nas CTs suas instituições por excelência em nossa realidade presente, é a expressão nas especificidades da Saúde Mental via Contrarreforma Psiquiátrica, da ofensiva do capital contra a classe trabalhadora, junto da ascensão conservadora. Coadunar com ela é coadunar com todo o pacote, do qual ela faz parte, expressa e conforma. Logo, a Saúde Mental não pode ser um penduricalho ou tema menor na construção de uma Frente Única de Esquerda – até mesmo sob o risco de se pisotear na própria história da esquerda. Condutas como as da semana passada não podem ser aceitas e (ainda mais) naturalizadas. A própria construção de uma Frente Única de Esquerda deve passar pela construção de uma política de saúde mental que retome a Reforma Psiquiátrica, seu caráter antimanicomial, bem como atrele-se ao fortalecimento do SUS, buscando reverter os retrocessos que se intensificaram pós-2016 – o que, por sua vez, requer profunda autocrítica do próprio campo de esquerda. Afinal, se falamos de emancipação humana, de um horizonte em que grilhões exploratórios-opressivos não mais nos aprisionem, ser antimanicomial é ponto de partida e de chegada.
Comentários