Da Redação
Nesta quinta-feira, mulheres das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro vão às ruas. O Esquerda Online conversou com a colunista do portal Silvia Ferraro, que criou evento do Facebook que convoca o ato na capital paulista, para entender melhor qual o principal motivo dessas manifestações e como o movimento feminista encara as últimas decisões que legislam sobre o aborto, como a do STF e a da Comissão Especial do Congresso Nacional através da PEC 58/2011.
EO – Silvia, você poderia falar um pouco do porquê e como surgiram as manifestações de hoje?
Silvia – As manifestações de hoje surgiram por iniciativa de vários coletivos feministas e movimentos de mulheres que perceberam a ameaça que está sendo articulada no Congresso Nacional para inserir a proibição total do direito ao aborto no Brasil como contraposição à decisão da primeira turma do STF que, em um caso específico, julgou pela descriminalização do aborto. Aqui em São Paulo, vários coletivos se reuniram e marcaram o ato para hoje, às 18h, no MASP, na Avenida Paulista.
EO – Como você viu a decisão do STF sobre o aborto, segundo o qual até o terceiro mês de gestação passa a não ser considerado crime?
Silvia – Eu vi a decisão como uma oportunidade para avançar a luta pela legalização do aborto no Brasil. O voto do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, foi um lampejo de lucidez no meio do avanço de projetos de leis conservadores. Em sua decisão ele diz que “a criminalização do aborto nos 3 primeiros meses de gravidez viola os direitos fundamentais da mulher”. Por outro lado, não temos confiança do STF, que também já deu provas em inúmeros outros casos, que não vão defender nossos direitos. Porém, é importante quando algumas brechas como esta, no caso o voto da primeira turma do STF, se colocam na realidade, pois podemos aproveitar para impulsionar a mobilização em defesa dos interesses das mulheres.
EO – O Congresso Nacional, em contrapartida, tem uma proposta de emenda à constituição que propõe licença maternidade em caso de nascimento prematuro, mas que, nela, o aborto passa a ser considerado crime em qualquer momento da gestação. A iniciativa vem através da PEC 58/2011. Poderias explicar mais sobre o que é a proposta? E o porquê de ser contra ela?
Silvia – A PEC 58/2011 inicialmente foi um projeto para ampliar a licença maternidade de mães com filhos prematuros, o que nos parece correto. Porém, este Projeto de Emenda à Constituição foi retomado agora para ser utilizado como cavalo de troia para a proibição do aborto em qualquer caso e se contrapor à decisão do STF. Esta PEC 58/2011 vai ter um período de dez sessões para receber emendas e ir a voto no plenário. Provavelmente, nestas emendas, estará embutida a criminalização total do aborto.
EO – O presidente da comissão, o Deputado Evandro Gussi, já foi relator do PL 5069/13, que limita acesso à pílula do dia seguinte e, com isso, inviabiliza atendimento a vítimas de estupro. Com toda essa ofensiva, qual a verdadeira intenção do Congresso?
Silvia – O deputado Evandro Gussi (PV) é um velho conhecido inimigo dos direitos das mulheres. Como presidente da Comissão Especial, ele com certeza irá fazer de tudo para inserir a proibição ao aborto em todos os casos, inclusive em casos de estupro, e criminalizar ainda mais as mulheres. Ele é um deputado católico conservador da bancada fundamentalista.
EO – Sobre o aborto, muitas pessoas alegam que estariam em defesa da vida ao ser contra o aborto. Como vocês enxergam esse tipo de afirmação?
Silvia – No Brasil estima-se que cerca de 200 mil mulheres morram ou ficam com sequelas por causa da ilegalidade do aborto. Essas mulheres são aquelas que não podem pagar cerca de 3 a 5 mil reais por um aborto em clínicas clandestinas. São feitos mais de um milhão de abortos por ano, porém só entram para as estatísticas de morte materna por aborto, as mulheres pobres, em sua maioria negras e moradoras da periferia. Então a frase de que “as ricas abortam e as pobres morrem” é a realidade. O aborto não diminui com a criminalização, ao contrário, a legalização propiciaria que as mulheres tivessem mais acesso à informação e aos métodos contraceptivos, reduzindo o número de gravidez indesejada. Então, o argumento de defesa da vida é uma demagogia e uma hipocrisia. A legalização pouparia a vida das mulheres e diminuiria o número de abortos e de todo o sofrimento humano que passam as mulheres que não podem pagar.
EO – Qual a experiência de países onde houve a legalização do aborto?
Silvia – No Uruguai, um dos países que recentemente legalizou o aborto (2012), a morte materna por aborto foi zerada e o número de abortos diminui. Isso significa que milhares de vidas de mulheres foram poupadas e que as mulheres passaram a ter seus direitos reprodutivos respeitados. Há inúmeros países em que o aborto é legal e em nenhum desses países o número de abortos aumentou por causa da legalidade. A diferença é que uma mulher que nasce na Alemanha, na França, nos EUA, em Portugal ou em outro país em que o aborto é legal, não irá morrer por aborto, mas se ela nascer no Brasil, for pobre, negra e periférica, ela tem sérias chances de entrar nas estatísticas de morte. Então a legislação brasileira, além de ser atrasada, tem um componente racista e de exclusão social.
EO – Além de todas essas medidas propostas contra as mulheres diretamente, no país está tramitando uma série de propostas que visam implementar um pacote de ajuste fiscal. Como você enxerga que isso afetará as mulheres?
Silvia – O ajuste fiscal e seus projetos como a PEC 55, a chamada PEC da morte, irá limitar ainda mais os direitos reprodutivos das mulheres, por exemplo. Com menos verbas para a saúde e educação, vai aumentar a violência obstétrica, a falta de pré-natal, a falta de acompanhamento ginecológico e o acesso aos anticoncepcionais. Na educação, vai faltar mais ainda vagas na educação infantil e também, menos possibilidade de educação sexual nas escolas. Por isso, o nosso ato hoje, tem como lema: LEGALIZAÇÃO DO ABORTO JÁ! NÃO À PEC DO FIM DO MUNDO! Porque o ajuste fiscal também será o fim do mundo para os direitos das mulheres.
EO – Não é a primeira vez que as mulheres vão às ruas contra projetos como o proposto pelo Congresso. O ex-deputado que se encontra preso nesse momento, Eduardo Cunha, chegou a colocar em pauta projetos como o PL 5069, o que gerou a chamada Primavera Feminista. Esses movimentos foram símbolo de resistência no país. Para você, o que significou aquele momento?
Silvia – Quando nós ficamos sabendo do projeto do Eduardo Cunha, o PL 5069, imediatamente uma rede de movimentos feministas se mobilizaram e começaram a organizar manifestações nas ruas e nas redes sociais. Aqui em São Paulo fizemos várias reuniões em que participaram vários coletivos e fomos para as ruas contra o PL. Foi um movimento tão bonito e tão forte, que ficou conhecido como Primavera Feminista. Foi realmente uma primavera, pois brotou da necessidade e com uma diversidade de movimentos que convergiram para um mesmo objetivo.
EO – Você considera possível um novo ascenso, ou parecido como a Primavera Feminista?
Silvia – Considero que é necessário. Se ele vai acontecer ou se será parecido com aquele momento anterior, não dá para prever. Mas, acredito que a existência de uma infinidade de coletivos feministas pode sim impulsionar uma nova mobilização de mulheres nas ruas. Existe uma ofensiva conservadora, mas ao mesmo tempo, existe uma resistência importante dos movimentos de mulheres. Mas, os movimentos não podem ficar restritos entre si ou somente nas redes sociais. Existe uma disputa pela consciência da população e para além das ruas e das redes, é necessário ir para os bairros, levar este debate para os locais de trabalho, para as famílias, para as escolas. Este é um desafio do próximo período se quisermos combater o avanço do conservadorismo.
EO – O protagonismo das mulheres não se restringiu ao Brasil. Quais os exemplos que consideras importante no mundo?
Silvia – Há muitos exemplos de movimentos de mulheres pelo mundo. Vou falar de dois que considero mais recentes e mais impactantes. O primeiro foi a greve de mulheres na Polônia, que conseguiu impedir o retrocesso na legislação em relação ao aborto. E o segundo, o movimento “Ni Una a Menos” na Argentina. Eu estive na Argentina em 2015, e vi um movimento muito forte contra casos absurdos de violência contra as mulheres e este ano, a partir do estupro e assassinato de uma jovem, o movimento voltou com força.
EO – Para finalizar, queria que resumisses a importância das mulheres irem às ruas hoje.
Silvia – Vendo o avanço dos projetos conservadores no Congresso Nacional, vendo a PEC 55 que pretende redesenhar o papel do Estado Brasileiro retirando direitos básicos como saúde e educação, não podemos ficar em casa. As mulheres podem e devem ser protagonistas desta luta que é uma só. Por isso, hoje, muitas mulheres vão sair do trabalho e não vão voltar para suas casas. Elas vão ocupar as ruas pela Legalização do Aborto, pelo direito de escolher, pelo direito a não morrer, pelo direito a existirem e a serem sujeitos das transformações necessárias à emancipação. Pelo direito a serem sujeitos de seus corpos e de suas vidas, se unificando a todos os explorados e oprimidos.
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