Nesta quarta-feira, 14, a Câmara dos Deputados aprovou uma mudança na tributação da gasolina, diesel e etanol. Se também passar pelo Senado, os estados terão que cobrar o seu ICMS para estes três combustíveis a partir de uma média dos últimos dois anos (janeiro a dezembro), e não mais sua atualização quinzenal. Esta é uma vitória de Bolsonaro, pois o seu discurso de que a culpa é do ICMS e dos governadores venceu. Apresentada de uma forma um pouco menos ignorante por Arthur Lira, Bolsonaro finalmente poderá tirar dinheiro dos estados e municípios até o final do ano que vem, sem desagradar o mercado e os acionistas privados da Petrobras e o PPI – o verdadeiro culpado por tudo isto.
A maioria dos deputados federais do PT, PCdoB e uma parte da bancada do PSOL (da corrente MES) votaram a favor. Entendo que estamos em um momento muito delicado para a nossa classe, que não tem mais dinheiro para encher o tanque do carro para trabalhar, para levar a família nos seus afazeres mais básicos. Que a inflação bate recorde atrás de recorde, com o preço dos alimentos na altura, do gás de cozinha no maior preço do século e com altíssimo nível de desemprego e diminuição da renda. Realmente precisamos lutar por políticas de ação imediatas, pois quem tem fome tem pressa.
No entanto, o PL encabeçado por Arthur Lira não resolve em nada tais problemas. O seu objetivo é o oposto, é preservar a política de preços da Petrobras em detrimento do povo. O valor do botijão se manterá no mais alto da história, e com pouquíssimo efeito no preço dos combustíveis. Por outro lado, o pagamento dos dividendos para os acionistas da Petrobras será preservado, e até mesmo ampliado.
Neste texto vou tentar mostrar que os dois grandes problemas da Petrobras e dos brasileiros é o PPI e as privatizações da Petrobras. Que a única resposta que podemos dar é a eliminação e substituição desta política de preços (e que isto é possível) e a luta pela paralisação e reversão das privatizações da maior empresa do país.
O que é o PPI e quais são seus efeitos?
Instaurada em 2016 por Michel Temer e Pedro Parente, o Preço de Paridade de Importação (PPI) define que produtos derivados de petróleo e gás têm como base o preço de paridade de importação, formado pelas cotações internacionais destes produtos mais os custos que importadores teriam, como transporte e taxas portuárias, por exemplo. Isto é, mesmo a Petrobras produzindo em território brasileiro cerca de 80% dos produtos derivados de petróleo no país nós pagamos como se eles fossem importados. Não só em termos de dólar, mas pagamos até uma tarifa portuária e de transporte inexistentes.
A partir do PPI houve uma tendência de alta de todos os preços dos combustíveis derivados de petróleo. Como o Observatório Social da Petrobrás (OSP) mostra em seu Monitor de Preços1, o GLP, o Diesel S-10, GNV e Etanol (este último não derivado de petróleo) já têm seus maiores valores para a série histórica da ANP (iniciada em 2001, à exceção do Diesel S-10, que passou a ser obrigatório apenas em 2012). Por sua vez, a gasolina atualmente só não é maior do que o preço no início de 2003.
Isto ocorre também pelo contexto. Como os preços são em dólares, a desvalorização do Real impacta fortemente estes preços. A taxa média mensal de câmbio em janeiro de 2019, quando Bolsonaro e Guedes assumem, era de R$ 3,74, hoje o dólar está em R$ 5,50, ou seja, uma valorização de 47%. Além disto, o brent (maior componente de custos para o preço de derivados no mercado internacional) continua a se valorizar, chegando a quase 85 dólares (15-10-2021), 13 dólares a mais do que no mês passado. Muitos bancos e agências já colocam este preço como o patamar que continuará a se sustentar até ao menos o fim do ano.
Importante pontuar que ainda existe uma “defasagem” do PPI em relação ao que ele poderia chegar. Segundo levantamento do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) para o dia 8 de outubro, os preços da gasolina e do diesel s-10 nas refinarias deveriam ser R$ 0,61 e R$ 0,55 superiores para chegar ao patamar dos preços internacionais, o que impactaria ainda muito mais no preço final. Isto é, o PPI ainda tem muita margem para aumentar os preços dos derivados, e isto sem contar o último aumento de preços do barril de petróleo (desde a referida pesquisa, o brent já aumentou em 2 dólares).
Qual é o peso dos impostos nos combustíveis?
Bolsonaro vem insistindo na tese de que os tributos dos combustíveis são os verdadeiros culpados. Atualmente, os tributos que incidem nos três principais derivados são os seguintes. Na gasolina comum (composta de 73% de gasolina A e 27% de etanol anidro) temos o ICMS (atualmente com média nacional de 27,9%) e impostos federais (CIDE e PIS/PASEP e COFINS) em 11,2% (são impostos fixos de R$ 1,02), atualmente com uma carga tributária de 39,1%. No Diesel S-10 (composto por 90% de Diesel e 10% de biocombustíveis, por isso S-10) temos um ICMS de 15,4% e impostos federais (CIDE está zerada desde a greve dos caminhoneiros de 2018) de 6,5%, isto é, carga tributária de 21,9%. Já o GLP (gás de cozinha) não temos atualmente impostos federais, apenas o ICMS com uma média nacional de 15,1%.
Fazendo uma comparação internacional o Brasil não taxa muito seus combustíveis fósseis. Por exemplo, entre os países da OCDE a média de tributação da gasolina é de 53,2% (“The OECD Tax Database”). No Brasil é de 39,1%. Já o diesel tem uma tributação média de 46,4%, enquanto no Brasil este percentual é de 21,9%.
Além disto, a maior parte da tributação é em forma de alíquota (um percentual), e estão constantes ao longo dos últimos anos. Como o imposto é estadual, a decisão de quanto se cobra é do estado. Hoje, este ICMS varia entre 25% (SP, MT, SC, AC, RR, RO, AP) e 34% (RJ). Mas não houve mudança ao longo dos últimos anos, o que mudou foi o preço da gasolina. Quanto maior o preço, maior o imposto. Por exemplo, se a gasolina custa 4 reais em SP, a cada litro pagaremos 1 real de ICMS, mas se o preço for de 6 reais, pagaremos R$ 1,50 deste tributo. Isto é razoável em dois aspectos: (i) garante a autonomia dos estados de adequar as alíquotas às suas próprias realidades, pois há estados com maior diversidade em suas estruturas produtivas, possibilitando que os tributos venham de outros locais, já outros com maior dependência destes impostos; e (ii) porque vivemos em um país com inflação estruturalmente alta, se você fixa um imposto em números absolutos – principalmente em momentos de índices de inflação de duas casas, como hoje – você vai criar uma distorção à médio prazo, ou impor custos políticos para seu reajuste periódico, assim prejudicando a arrecadação de estados e municípios.
Quais são os efeitos do projeto de Lira?
A proposta costurada por Arthur Lira (Projeto de Lei Complementar 11/20) prevê que o reajuste do ICMS para gasolina, diesel e etanol ocorrerá com valores absolutos e fixos baseado nos dois últimos anos. Para ficar nos principias exemplos vamos pegar os casos da gasolina e do diesel. Ao invés de 27,9% ser aplicado aos R$ 6,12 atuais da gasolina comum, serão aplicados aos valores que vão de janeiro de 2019 a dezembro de 2020, o que daria algo em torno de R$ 4,33 (a gasolina e o diesel tiverem patamares de preços menores entre abril e novembro de 2020, por conta da pandemia). Isto é, ao invés de pagar R$ 1,71 de ICMS, pagaríamos R$ 1,21, 50 centavos a menos. Já para o Diesel S-10, ao invés de cobrar um ICMS de 77 centavos, cobraria 55 centavos, 22 centavos a menos.
Primeiro, isto sequer garantiria a “defasagem” em relação ao preço internacional da semana passada (lembrando que provavelmente a defasagem nas refinarias aumentou devido ao encarecimento do brent), de 61 centavos para a gasolina e 55 centavos para o diesel. Sendo assim, o subsídio poderá ser embolsado pela Petrobras e pelas importadoras facilmente.
Segundo, joga para frente o problema, pois o ano de referência de 2021 (onde há recordes de preços) e 2022 (que continuará com preços elevados) será jogado só para depois das eleições, claramente um movimento de ciclo político eleitoral. Jogar para o próximo governo o problema do governo atual, e assim garantir um custo a menos para disputar a reeleição.
Terceiro, incorre em alto custo fiscal para estados e municípios. Segundo o Comitê de Secretários Estaduais de Fazenda (Comsefaz), esta mudança trará um custo fiscal de R$ 24 bilhões para os estados e de R$ 6 bilhões para os municípios. Para os estados isto equivaleria a algo em torno de 4% de todas as receitas, em um contexto de recuperação de um ano fiscal difícil por conta da pandemia em 2020 e muitas despesas represadas devido à LC 173/20, que impôs o congelamento de salário de servidores públicos nos três níveis.
Quarto, o problema não é de volatilidade. À exceção do ano de 2020, que fez o preço dos combustíveis cair por conta da pandemia (apenas o GLP continuou a subir, devido ao aumento da demanda residencial com o isolamento social), os preços dos combustíveis no país estão com tendência de alta desde a instauração do PPI, em 2016. Além do mais, o que adiantaria estabilizar preços em um patamar alto? Um botijão de gás a R$ 100 continua sendo alto, mesmo sem novos reajustes. Um quilo de carne a 40 reais continua sendo incomprável para a população em geral, mesmo se não subir mais 2 ou 3 reais.
Quinto e último, não muda em nada o verdadeiro gerador da alta dos preços, o PPI. Bolsonaro já fez um movimento parecido, quando isentou o GLP de impostos federais em março de 2021. De lá pra cá, o botijão subiu mais 15 reais, mesmo com o subsídio de R$2,18, engolido no primeiro reajuste. Não adiantou de absolutamente nada. Pergunte para o seu vizinho se ele percebeu a diferença deste subsídio. Por outro lado, o custo fiscal é alto. Assim como os estados e municípios terão que abrir mão de tributos, o governo federal já o fez para o caso do GLP (e do Diesel, mas a isenção para este combustível foi de apenas 2 meses). Na prática, tributos viraram lucro para os acionistas da Petrobras.
Petrobras privatizada e privatista
Bolsonaro e Lira disseram nesta semana que querem privatizar a Petrobras, endossando o discurso de Paulo Guedes. Segundo Lira, “Há uma política que tem que ser revista, porque ela nem é pública e nem é privada, completamente. Ela só distribui e escolhe os melhores caminhos para performar recursos para distribuir dividendos […] Essa é a pergunta que tem que ser feita: não seria o caso de privatizar a Petrobras? Não seria a hora de se discutir qual é a função da Petrobras no Brasil?”. A conclusão parece pouco lógica. Se o problema é “performar recursos para distribuir dividendos”, como isto seria resolvido entregando a empresa completamente aos acionistas? Já Bolsonaro disse que o aumento dos preços vem dando dor de cabeça para ele, e que por isto deveria privatizá-la. Assim ele não precisaria pensar no problema, né?
Infelizmente a Petrobras já está sendo fatiada e vendida desde 2015. O Observatório Social da Petrobrás já contabiliza mais de R$ 231,5 bilhões em privatizações da estatal. São vendas como a segunda maior empresa do país, a BR Distribuidora, e de outros agentes fundamentais para a decisão de preços dos combustíveis, como Liquigás e refinarias (o plano é vender a metade do parque de refino). Com a venda das refinarias como poderemos discutir o preço dos combustíveis? Se perdermos metade do parque de refino acabará qualquer chance de estabelecermos com critérios sociais qual será o preço do combustível. Basta olhar para todos os outros problemas de inflação que temos, conseguimos colocar a culpa do preço alto do óleo de soja, do feijão, da carne ou de qualquer outro alimento no governo? Muito pouco. Só podemos discutir preço de combustíveis porque a Petrobras é estatal e detém quase toda a totalidade do poder de extrair e refinar petróleo no Brasil.
Além das vendas, a estatal assumiu uma política focada exclusivamente nos seus acionistas minoritários. Atualmente, apenas 36,75% das ações são do Estado brasileiro (mas como detém a maioria das ações ordinárias, mantém o controle). A maior parte da empresa está nas mãos de investidores estrangeiros (42,79%) e investidores privados brasileiros (20,46%). E são para eles que o PPI serve, principalmente. Segundo estimativa do banco UBS, no ano que vem a Petrobras será a maior pagadora de dividendos relativamente aos valores de suas ações (dividend yeild) do mundo2. Isso mesmo, a frente das petrolíferas russas, da Shell, da Exxon Mobil, etc.. Às custas, obviamente, do povo brasileiro, das mortes de famílias queimadas por tentar cozinhar com etanol.
PSOL acerta em propor uma política de preços baseada nos custos nacionais
A partir do diagnóstico correto, o PSOL protocolou há algumas semanas um projeto de lei que propõe mudar a precificação dos combustíveis no país, impondo à estatal sua própria estrutura de custos em substituição à preços fictícios.
Apesar de os preços terem explodido nos últimos tempos, isto não ocorreu nem de longe com os custos que a Petrobras tem para produzir estes produtos.
A descoberta do pré-sal e a sua atual exploração comercial está permitindo uma queda nos custos de extração da Petrobras. Os custos de produção no pré-sal são 68% menores do que a extração em terra, águas rasas, águas profundas e ultra profundas3. Como o volume de óleo advindo do pré-sal vem aumentando nos últimos anos (atualmente 70% do petróleo tem esta origem) a tendência é de barateamento. Para o ano de 2020, a Petrobras teve um custo de extração real (descontada a inflação) de R$17,94 menor do que a média dos últimos 16 anos, e só em 2009 a estatal teve um custo de extração inferior ao atual. Para o ano de 2021 houve um aumento devido às participações governamentais, pois quanto maior o preço internacional, maior é o pagamento de royalties. O segundo componente mais importante é o custo de refino, que é quanto a empresa gasta (aqui incluso todos os seus custos com as refinarias) para transformar um barril de petróleo no equivalente a um barril de produtos derivados de petróleo. Assim como o custo de extração, em 2020 também tivemos o momento com um custo de refino muito inferior à média real dos últimos 16 anos.
Segundo a última estimativa do Observatório Social da Petrobras, o custo de produção do litro de um derivado de petróleo por parte da Petrobrás está em torno de R$ 1,21. Em síntese, os custos para produzir – mesmo com a desvalorização do real – se mantêm próximo ao das últimas duas décadas, mas seu preço final está muito superior à média histórica.
Hoje, o país produz 80% de todos os produtos derivados que consome. O GLP tem um déficit maior (27%), e o diesel (20%) e a gasolina (17%) um déficit menor. Isto com as refinarias da Petrobras mantendo há anos uma capacidade ociosa em torno de 20%, ou seja, o déficit poderia ser muito menor.
Por isto é possível sim que a Petrobras recupere sua tarefa social e produza combustíveis a um preço justo, o qual sua população possa ter acesso. Isso sem incorrer em déficit para a empresa.
Manter a campanha contra o verdadeiro culpado, o PPI
Mesmo o termo PPI sendo algo muito abstrato para a população em geral, a campanha contra a política de preços vem ganhando força. As pessoas sabem que a Petrobras hoje cobra em dólar. Sabe que a culpada do aumento de preços é a da própria Petrobras (a sua política).
Não é à toa que a Petrobras vem publicando vídeos-resposta e tentando emplacar diversas narrativas, como a ameaça ao desabastecimento, o ICMS, ameaça aos investimentos produtivos, etc. Além disto, os opositores ao PPI vêm ganhando espaço no debate público, o que mostra que estamos no caminho correto.
Além disto, a população está chegando ao limite em relação aos preços dos combustíveis. Como o Monitor de Preços do Observatório mostra, o botijão de gás custa hoje 9% do salário-mínimo, maior proporção em 13 anos! Ninguém acha que isto é aceitável.
O PSOL e os outros partidos da esquerda e centro-esquerda devem continuar mostrando o verdadeiro motivo dos preços recordes dos combustíveis. Qualquer vacilo pode enfraquecer o nosso embate com o bolsonarismo e com a direção da Petrobras.
Por isso acredito que seja importando debatermos francamente e em unidade a nossa política para a Petrobras, pois só assim poderemos enfrentar Bolsonaro, Paulo Guedes e Joaquim Silva e Luna.
Fora PPI! Pela interrupção imediata da venda das refinarias! Pela reversão das privatizações da Petrobras! Pelo investimento em novas refinarias da Petrobras!
*Eric Gil Dantas é economista e integrante do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS).
NOTAS
1 https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTM1Y2M3MDItMmFiMy00NmVhLThmMjEtYTFjYjUyMjU2NWY0IiwidCI6IjkxZDcyMTk5LTZiZGItNDIxZS1iZTU0LTE2ODk4NWJmOTRiZSJ9&pageName=ReportSection2e574ad9eb9a69d6f0bc
2 https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/08/13/petroleiras-voltam-ao-lucro-e-petrobras-se-destaca-entre-gigantes.ghtml
3 Considerando os dados de lifting cost sem participação governamental e com afretamento do ano de 2020 do pré-sal comparado às outras classificações (Terra e águas rasas e Pós-sal profundo e ultra profundo).
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