“O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre. Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir a travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo de sua cor”
Torto Arado, Itamar Vieira Junior, p. 178
O romance é uma forma literária que surge com a modernidade. Na esteira de Hegel e Lukacs, podemos compreender o romance como uma epopeia moderna, com a diferença substancial de que a epopeia clássica significa o caminho que um herói faz na confluência com sua comunidade (Odisséia de Homero) e o romance é filho da modernidade burguesa e seus dilemas entre a individualidade e a dissolução da vida comunitária.
“Como já bem antes dele o fizera Vico, Hegel – ainda que sem indicar os seus fundamentos econômico-objetivos – liga a criação da epopeia a fase primitiva da história da humanidade, ao período dos heróis, ou seja ao período em que a vida social ainda não era dominada, como o seria na era burguesa, pelas forças sociais que adquiriram autonomia e independência em face dos indivíduos” (Lukacs, 2008)
Todo grande romance se desenvolve, portanto, no plano do conflito entre a personalidade individual e social de seus personagens e forças aparentemente incontroláveis contra as quais os indivíduos são chamados a lutar na busca pela afirmação da própria personalidade histórica; a luta dos indivíduos é no plano da arte a forma de manifestação típica dos conflitos sociais, de classe, de raça, de nações, de gênero que marcam a vida humana sob a égide da sociabilidade capitalista.
Em Torto Arado, a saga do povo brasileiro, corporificada pela luta dos filhos da diáspora negra, é personificada nas vidas enlaçadas das duas irmãs, Bibiana e Belonísia. O autor, com grande realismo, refigura artisticamente uma história secular de dor, medo, sofrimento mas também de alegria, coragem e resistência.
“Só assim poderia experimentar o sofrimento como o sentimento que unia todos os que viviam em Água Negra e em muitas outras fazendas de que tínhamos notícias. (…) o sofrer vinha das coisas que nem sempre davam certo, me fazia sentir viva e unida, de alguma forma, a todos os trabalhadores que padeciam dos mesmos desfavorecimentos” (Vieira Junior, 2019)
A trama percorre a luta e a vida desta gente que não cansa de lutar, e que mesmo quando esmorece persegue no caminho, um caminho que passa por tragédias, das pequenas tragédias do cotidiano como aquela que suprime a fala de Belonisia, fazendo do silêncio uma espécie de prisão que a personagem precisa contornar.
Das grandes tragédias produzidas por uma forma de organização social racista e escravista e que deixam suas marcas nos corpos e nas mentes das pessoas. Da tragédia da fome que os faz penar, que leva as crianças tenras de idade ou mesmo antes de nascer, da tragédia de ter o fruto do seu trabalho expropriado por outro, na dura experiência pós-escravista do povo, deserdado na terra, andando de morada e morada se agregando aos senhores da terra.
“Vi a vergonha de meu pai crescer, sem poder fazer nada. Zeca Chapéu Grande era um curador respeitado e conhecido além das cercas de Água Negra. Mas ali, nos limites da fazenda, sob o domínio da família Peixoto – que quase não colocava os pés lá a não ser dar ordens, pagar ao gerente e dizer que não poderíamos fazer casa de tijolo – e de Sutério, sua lealdade pela morada que havia recebido no passado, quando vagava por terra e trabalho…” (Vieira Junior, 2019)
Este é um romance que refigura artisticamente estas dores, mas também as alegrias pequenas do povo, de ver o fruto do seu trabalho, ainda que usurpado, daqueles que plantam e colhem e trazem o milagre da vida mesmo na terra mais desolada.
É a história da coragem de Donana Chapéu Grande, avó das irmãs Bibiana e Belonísia, de sua grande jornada por este mundo, da faca tomada aos senhores, expressa na tragédia de abuso de sua filha Carmelita, que ela soube vingar.
A capa do livro e a foto original, do italiano Giovanni Marrozzini / Reprodução
Na coragem de Severo, o trabalhador que começa a organizar o povo, pagando com sua vida o preço de sua convicção, semeando a terra de esperança com seu sangue derramado. Na coragem de Bibiana que, depois de sair pelo mundo, ao lado de Severo, retorna para Água Negra, ensinando na escola arrancada por seu pai, a contragosto dos senhores.
O artista consegue mostrar que mesmo na terra ressecada a vida floresce pela teimosia das pessoas comuns, trabalhadores e trabalhadoras. Floresce também o amor, como o de Bibiana e Severo, contrastado pela bestialidade e rudeza da relação de Belonísia com Tobias, mostrando as várias facetas que a relação de gênero pode alcançar.
Não se perde a possibilidade de realização humana que a relação erótico-sensual pode significar, mas se retrata no contraste a fereza de um mundo em que na maioria das vezes as relações entre as pessoas se dão como relação entre coisas. Toda relação entre Belonísia e Tobias se marca por esta bestialidade onde a mesma teima em não se adequar ao papel de “traste” que aquelas relações sociais a pretendem imputar.
Os conflitos sociais pela Terra são refigurados no terreno da vida cotidiana, aqui uma disputa por construir ou não uma casa de alvenaria, ali uma disputa pelos frutos do trabalho em meio a seca, acolá o lento trabalhar da consciência de si que o povo de Água Negra alcança, não isenta de conflitos e contradições entre os mesmos trabalhadores.
Isto fica claro quando os novos senhores pretendem impedir os trabalhadores de enterrar seus mortos na terra, ali mesmo, como tradição secular, e na morte de Severo eles se rebelam contra a proibição, proibição esta que se revela a disputa pela própria terra e o projeto de modernização conservadora, autoritária do capitalismo brasileiro.
Torto Arado é um romance permeado pelos “encantados”, que guiam Zeca Chapéu Grande na grande jornada pelo sertão, na esperança de uma vida nova em Água Negra, os encantados que já estavam com sua mãe, eles estão ali no jarê organizado na casa de Zeca Chapéu Grande e que representam a vida comunitária do povo, construída como longa tradição onde os espíritos dos encantados são testemunhas da história, do sofrimento e da luta do povo.
É o Espírito dos Encantados que guia os personagens pela vida, que os une a seu povo mesmo na mais dura dificuldade, carrega a forças dos ancestrais, aqueles que cruzaram à força os mares, que carregaram as marcas da escravização e com luta e suor tentam construir a própria liberdade.
Em suma, Torto Arado soube bem representar, a partir da vida cotidiana das pessoas, como deve ser, a grandeza e a miséria do Brasil a partir da luta de seu povo, uma luta contra a alienação, escravização e expropriação. O romance com grande realismo, característica de toda grande obra de arte que é nada mais que “autoconsciência do gênero humano”, nos coloca diante de uma experiência profunda de humanização da humanidade em meio as adversidades da vida. É uma leitura pungente, mas esperançosa, da epopeia de um povo que nunca cansou de lutar, por que:
“A onça caiu com as presas enterradas no chão. Retirou uma porção de terra da boca. Não era uma armadilha tola para capturar uma caça. Mas antes que levantasse, se abateu sobre seu pescoço um único golpe carregado de uma emoção violenta, que até então desconhecia. Sobre a terra há de viver sempre o mais forte” (Vieira Junior, 2019, p. 262)
Referências bibliográficas
Lukacs, Gyorgy. O romance como epopéia burguesa. In Arte e Sociedade. Escritos Estéticos 1932-1967. Org. Coutinho, Carlos Nelson e Paulo Netto, José. Rio de janeiro UFRJ 2008
Vieira Junior. Itamar. Torto Arado. São Paulo Todavia 2019
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