“Os problemas de moral revolucionária se confundem com os problemas de estratégia e tática revolucionárias. Somente a experiência viva do movimento, iluminada pela teoria, dá a resposta correta a esses problemas”.
TROTSKY, Leon. Questão de modo de vida, a nossa moral e a deles.
No último dia 28, a corrente APS/PSOL publicou em seu site um artigo de autoria do militante Rafael Souza em que acusa a Resistência/PSOL de “desonestidade”, “acusações falsas” e “falsificações públicas” das posições da sua corrente. O texto faz referência a um artigo escrito pela companheira Deborah Cavalcante, da Direção Nacional do PSOL e da Resistência, artigo no qual faz um balanço sobre o que foi o último congresso do nosso partido.
O texto de Deborah apresenta objetivamente alguns números do Congresso, as principais polêmicas, os dois grandes blocos nos quais se agruparam as diversas correntes do PSOL e qual a leitura da Resistência sobre estas polêmicas e estas posições. O texto não se direciona para qualquer corrente em específico, nem para a APS nem para nenhuma outra. É um balanço do congresso como um todo, sobre as disputas políticas entre os blocos. Há, contudo, uma referência a problemas de método que consideramos graves, e, nesse ponto, foi feito uma referência direta à corrente MES.
Nos surpreendemos, contudo, com as acusações trazidas ao artigo de Deborah e à Resistência. Entendemos que cabe uma resposta, por dois motivos: primeiro porque fomos atacados de forma injusta, e segundo, pelo respeito e consideração que temos com a APS e seus militantes. Antes de ir às respostas, vale resgatar sinteticamente qual é de fato o centro das reais polêmicas entre o conjunto das correntes do PSOL que o texto de Deborah, corretamente, aborda.
Breve desenvolvimento sobre as nossas diferenças políticas
Existem dois grandes blocos hoje no nosso partido: o bloco “PSOL de Todas as Lutas” e o bloco da “Oposição de Esquerda”. Existem, dentro dos blocos, inúmeras posições diferentes e inclusive alguns campos menores (como é o caso do “PSOL Semente). Existiram, em momentos diferentes, relocalizações dentro desses blocos, que por vezes alteraram suas composições. Nós, da Resistência, estamos no bloco “PSOL de Todas as Lutas”. A APS, no bloco da “Oposição de Esquerda”. Existe um debate central atualmente no partido que divide as diversas correntes em um lado ou em outro, e nunca é demais lembrar: o que deve hierarquizar a armação política do PSOL para o próximo período deve ser a diferenciação com o lulo-petismo ou a unidade das esquerdas para derrotar Bolsonaro? Reside aí uma parte importante da questão, pois a construção de um bloco se dá pela visão que se tem das tarefas, suas hierarquias na luta de classes e, obviamente, uma questão de análise, caracterização e política.
É possível identificar no próprio texto de Rafael uma sinalização de uma diferença crucial. Ele afirma: “A movimentação [de conformação do bloco de oposição] se deu, prioritariamente, para combater a política do PTL de impor um PSOL que fosse subserviente ao Lulopetismo e de defender uma pré-candidatura própria para 2022”. Ou seja, o que articula, segundo o próprio companheiro “prioritariamente”, as diversas correntes no bloco da “Oposição de Esquerda” é uma leitura de realidade que vê no enfrentamento ao campo “Lulo-petista”, o principal desafio do PSOL no próximo período. Por outro lado, o que unifica o bloco majoritário, do qual fazemos parte, é o entendimento que nesse momento há uma necessidade de unidade da esquerda para derrotar nossa ameaça maior, que é Bolsonaro. Esta, para nós, deve ser a prioridade, a tarefa de vida do PSOL e de todos (as) os (as) revolucionários (as).
A esquerda precisa voltar a pautar o debate público
Me permitirei desenvolver um pouco mais sobre esse tema, pois creio ser importante e sobre ele parece haver uma diferença política mais de fundo entre nós e os companheiros e companheiras da APS. A política de unidade da esquerda por meio da Frente Única (concretizada na Campanha Nacional Fora Bolsonaro), e também no chamado à Frente de Esquerda nas eleições, não é uma cilada que vai nos fazer “subservientes ao lulopetismo”. Justo o oposto, ela é uma necessidade que parte do grave quadro de crise política e social do país a existência de um governo de extrema-direita, e de uma liderança neofascista que tem como estratégia uma ruptura contrarrevolucionária no regime. Isso impõe para nós a necessidade de lutar para que a esquerda volte a pautar o debate público e dispute a fundo um novo projeto de país.
Enquanto nós muitas vezes debatemos apaixonadamente buscando ter razão em abstrato, ou com base nos nossos desejos, devemos lembrar que o fim último de Bolsonaro é a busca por impor uma derrota histórica à esquerda, aos movimentos sociais do campo e da cidade, a luta negra, feminista, LGBTI’s, indígena, ambiental e ao conjunto da vanguarda que se levantou para enfrentar as injustiças sociais do nosso tempo. É um equívoco político acreditar que se pode combater ao mesmo tempo e com a mesma intensidade, o fascismo e a conciliação de classes. Isso para nada significa subserviência ou capitulação perante Lula e o PT, pois o PSOL tem reservas: o seu programa, seus princípios, sua radicalidade e, acima de tudo, a autoridade que conquistou perante a vanguarda ao se posicionar do lado certo da história.
Esta diferença central foi o fio condutor nas principais polêmicas que permearam o congresso, elencadas também por Deborah: a) sobre qual é a força de Bolsonaro atualmente; b) sobre a necessidade da Frente Única e unidade de ação; c) sobre a frente de esquerda para 2022. Essa polarização atual foi, também, o desenvolvimento de polêmicas anteriores que dividiram o partido, nos três momentos históricos citados no texto de Débora: 1) no golpe de 2016; 2) na aliança PSOL/MTST/Apib e posterior candidatura de Boulos; 3) na defesa da Frente Única da esquerda após a vitória de Bolsonaro. Essa é a leitura da Resistência a partir de fatos concretos. Não há, aqui, nem desonestidade nem inverdades.
Diferenças políticas não podem se tornar acusações morais
Em nenhum momento do texto Deborah colocou “ações de uma única corrente na conta de todo um grande e diverso campo”. Ela apontou as posições dos diferentes campos de hoje, bem como as polêmicas que dividiram o PSOL em momentos anteriores e que, de acordo com nossa leitura, se desdobraram na atual polarização. Isto é uma leitura da realidade, uma caracterização. Pode-se concordar ou discordar dela, com argumentos políticos, mas não afirmar que é inverídica.
Deborah identifica três marcos históricos para entender o atual emblocamento do PSOL, considerando as suas escolhas políticas. Não cabe dizer que “os marcos são falsos”, como afirmou o companheiro, sem apontar na realidade nenhum fato contrário. Ou a caracterização da lava-jato e do golpe de 2016 não foi um tema de polêmica interna no partido? Ou o mesmo não aconteceu com a campanha Lula Livre, onde a defesa democrática da liberdade perante uma prisão arbitrária, foi tratada na polêmica interna como uma defesa do legado político de Lula e de seus governos?
Para que eu não seja mal interpretada, não atribuo essas posições às companheiras e companheiros da APS. Só relembro como exemplo que estas polêmicas existiram, e podem sim ser tomadas como elementos que ajudam a reconstituir o caminho até o emblocamento que se concretizou no Congresso. Aqui não se trata de verdade ou mentira, mas de divergência de leitura.
Já sobre o tema do impeachment, de fato a Resistência e boa parte do campo majoritário não defendeu essa bandeira desde a eleição de Bolsonaro. Isso porque entendíamos que era preciso acumular condições para levantá-la. Consideramos que propor uma tarefa no abstrato para a nossa classe não é construir as condições para a vitória mas apenas fazer demarcação. De fato, só no decorrer da pandemia, na nossa leitura, é que a correlação de forças tornou possível adotar a palavra de ordem “Fora Bolsonaro” e chamar o impeachment. E foi assim porque, na nossa leitura, foi nesse contexto, combinado, dentre outros fatores, com o aumento do desgaste do presidente neofacista, que essa palavra de ordem passou a dialogar com uma ampla parcela da população e que essa tarefa passou a ser possível, ainda que difícil.
Neste debate já se manifestavam diferenças de leitura sobre a força do bolsonarismo e a tática para enfrentá-lo. Nos parece que houve uma interpretação confusa sobre o tema. O que Deborah realmente defendeu é que o “terceiro momento” do desenvolvimento do atual emblocamento, foi marcado por uma polêmica no PSOL sobre a necessidade da Frente Única da esquerda desde a posse do atual governo e não sobre o Impeachment. Nessa polêmica da Frente Única houve uma maioria no PSOL a favor e uma minoria contra. Essa Frente Única “se expressou em dois grandes pedidos de Impeachment” na conjuntura mais recente, como afirma o texto da companheira.
Nenhum dos “fatos” levantados permite nos chamar de desonestos. Não é possível identificar nenhuma “acusação infundada” ou “falsificação pública de posições” contra a APS. O que há, no texto de Deborah e que expressa a nossa opinião da Resistência, são avaliações das posições e escolhas políticas do bloco “Oposição de Esquerda” que votou de forma unificada em todas as resoluções do Congresso. Em contrapartida, as “inverdades” e a nossa “desonestidade” não foram apresentadas em nenhum momento no texto de forma política, ao contrário, foram transformadas em acusações morais.
A questão moral para os revolucionários
E com esse tema, a questão da moral, pretendo concluir. Palavras têm peso, palavras carregam significados. Quando se refere à uma organização como desonesta, o confronto sai da esfera do debate de ideias, e passa a dimensão do questionamento à própria integridade da organização em si. Desonesta é alguém em quem não se pode confiar, alguém a quem não se deve chamar de camarada.
Nossa militância da Resistência e da APS estão juntas em várias frentes de batalha. Lutamos ombro a ombro a tempo suficiente para que não houvesse dúvidas, de parte a parte, sobre a integridade e a moral de cada uma das organizações. Sabemos tratar amigos como amigos, aliados como aliados e inimigos como inimigos. Respeitamos a organização das companheiras e companheiros, e prezamos muito que sejamos igualmente respeitados. Porque nenhuma relação se constrói com via de mão única. Exige reciprocidade.
Ter cuidado com as palavras e proporções no que se diz é uma bússola que não pode ser perdida. É preciso saber chamar as coisas pelo seu nome, sem banalizar temas sérios na retórica da disputa política. A luta política vale muito, mas nela não é vale tudo. Infelizmente, durante as discussões internas do Congresso do PSOL vimos que esse é um debate que o nosso partido precisa ainda avançar e muito, assim como toda a esquerda. A honestidade é algo muito caro para a moral revolucionária. Normalizar a disputa política a partir de acusações corroí por dentro pilares básicos de um projeto revolucionário.
Entre revolucionários, não importa o tamanho da diferença política, ela tem que ser sempre encarada com respeito e paciência histórica.
Salvador, 1 de outubro de 2021.
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