Leia também: A crise do governo Bolsonaro e a campanha golpista
A ideologia hegeliana kantiana travestida de marxismo separa a apreensão da realidade em “coisa-em-si” e de seus fenômenos. Segundo essa concepção idealista, cabe ao analista de uma realidade concreta examinar fenômenos derivados da “realidade inalcançável” para, a partir dessa análise, inferir os elementos de como o mundo concreto se comporta.
É com esse pressuposto epistemológico idealista que o companheiro Gabriel Casoni inicia seu texto para analisar a conjuntura concreta do governo Bolsonaro. Ao equivocar-se metodologicamente, o companheiro chega a conclusões que não conseguem apreender a realidade concreta da conjuntura atual brasileira. Diante desses elementos, esse humilde texto busca contribuir com o debate metodológico sobre como caracterizar a realidade concreta e, ao mesmo tempo, apontar algumas diferenças deste autor com as opiniões do valoroso companheiro.
O texto de Casoni inicia-se apresentando uma possível contradição: a campanha golpista (“aparência” ou “fenômeno”) em oposição a “realidade de fundo”. Pensar uma contradição nesses termos conduz o autor a não analisar elementos concretos da campanha golpista de Bolsonaro. Assim, o texto rotula tais movimentações como “aparência” e se detém exclusivamente na análise de outros fatores da realidade concreta brasileira. São escritas brilhantes e precisas palavras sobre a conjuntura internacional, a economia, a pandemia, a queda da popularidade de Bolsonaro e o aumento das intenções de voto em Lula e pouco se fala do golpismo em si.
Todos os elementos apontados são pertinentes, em geral corretos, e importantes para uma análise da conjuntura concreta. De fato, a sustentação parlamentar de Bolsonaro é baseada em uma aliança frágil com o “centrão” e dos militares que colonizaram milhares de cargos no aparato federal. Porém, a metodologia que se atém exclusivamente a tais elementos deixa de analisar outros fatores, desarmando, assim, os trabalhadores e movimento organizado de resistência aos impulsos autoritários de Bolsonaro.
Não à toa a conclusão do texto é que “Bolsonaro se enfraqueceu consideravelmente política e socialmente, dentro e fora do país. Mas ainda conserva elementos de força e resiliência”. Essa conclusão, que poderia ser verbalizada em uma discussão em grupo de whatsapp, não é de todo incorreta, não aponta grandes novidades para uma análise da conjuntura e não se diferencia das superficialidades proferidas nos textos da imprensa burguesa. Entretanto, tal apontamento não é dotado do grau de cientificidade correto para uma análise política que condiz com a tradição marxista.
Sugiro a Casoni não se utilizar da etiqueta de “aparência” ou “fenômeno” para analisar as movimentações de Bolsonaro. Observe, meu caro companheiro, elementos concretos desse grave movimento de caráter neofascista que busca conquistar o Estado brasileiro e impor uma ditadura aos moldes de seu programa. Pergunte-se: qual a estratégia do movimento neofascista no Brasil? Quais táticas foram utilizadas até então a serviço dessa estratégia? Quais setores e frações da burguesia poderiam apoiar essa aventura? Como as forças armadas se comportariam numa tentativa de golpe? Como mensurar o prestígio de Bolsonaro junto às forças armadas?
Essas perguntas não foram feitas no texto de Casoni. Para muitas dessas perguntas, inclusive, acredito que não temos, ainda, os meios empíricos para encontrar respostas. Quando um autor quer construir uma análise da realidade, mas com os olhos fechados para elementos desta mesma realidade, deixa de fazer perguntas importantes. O resultado é que importantes manifestações da realidade transformam-se em “mero fenômeno”, construindo-se uma caracterização caolha.
Concordo com Casoni em uma série de coisas, em especial com a passagem de seu texto que diz: “Em termos de política, o maior erro da esquerda seria o de esperar tranquilamente as eleições de 2022” e que Bolsonaro vai tentar tumultuar as eleições e, se tiver condições, melar o processo. Porém, se o golpismo de Bolsonaro fosse um mero “fenômeno aparente”, a hipótese de golpe é uma possiblidade remota, um devaneio, algo sem base na realidade.
Há frações da burguesia que estão umbilicalmente ligadas ao movimento neofascista de Bolsonaro, em especial, setores do agronegócio, do capital financeiro e de atividades ilícitas pró-desmatamento. Outros setores burgueses buscam igualar o fascismo de Bolsonaro a um suposto “radicalismo de esquerda” de Lula, apostando em uma possível “terceira via” e apoiando uma agenda legislativa para aprofundar o grau de exploração dos trabalhadores. Como eles iriam se comportar em uma iminência de um golpe que impeça o retorno do PT ao governo? Examinar essas movimentações, de acordo com uma epistemologia marxista científica, é uma das tarefas concretas da conjuntura atual.
Estarei, assim como o companheiro Casoni, no ato nacional, no dia 7 de setembro, articulado pela Campanha Fora Bolsonaro. Dificilmente apenas esse dia colocará “uma pá de cal” na campanha golpista em curso, a estratégia do movimento neofascista brasileiro não cabe no regime democrático burguês. Porém, essa mobilização é fundamental para o fortalecimento e construção de um forte movimento em defesa das liberdades democráticas e para resistir aos projetos de contrarreformas e privatizações em andamento no Congresso.
É nas ruas e com uma prática teórica adequada, que não considere as ameaças de Bolsonaro um mero devaneio fenomênico, que iremos armar os trabalhadores para resistência contra o movimento neofascista. Essa é a principal batalha que decidirá o futuro da luta de classes no Brasil nos próximos anos.
*Mestrando em Relações Internacionais da UFABC
Comentários