A Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado emitiu, no último dia 19 de maio, a Nota Técnica 69/2021, que trata dos “Aspectos Fiscais da PEC 32/2020 e Proposta de Medidas Alternativas”[1]. O responsável pela elaboração da Nota, Vinícius Leopoldino do Amaral, é Consultor Legislativo com uma larga produção de pareceres e trabalhos técnicos sobre diversos temas.
Na contramão do discurso governamental, que apregoa que a Reforma Administrativa vai gerar impacto positivo nas finanças públicas – ainda que o governo não tenha apresentado quaisquer números que apontem nesse sentido – a Nota traz elementos que contradizem essa hipótese. Essa conclusão é obtida a partir de uma leitura global dos dispositivos previstos na PEC 32/2020, de maneira a estabelecer uma relação sistêmica entre as prescrições contidas no texto. Todas as citações entre aspas foram extraídas da Nota Técnica citada.
Aumento da corrupção
O primeiro aspecto destacado pelo texto é o aumento da corrupção, no caso da PEC 32 vir a ser aprovada. Diversos estudos de instituições multilaterais e entidades empresariais apontam no sentido de que o Estado brasileiro perca anualmente cerca de 2,3% do PIB com o ralo da corrupção, ou seja, uma fortuna que pode chegar à casa dos R$ 170 bilhões. Destacamos que esse é um fenômeno mundial, presente em todas as economias capitalistas, sejam os denominados países emergentes, da periferia ou do centro da economia internacional.
A PEC, como é sabido, abre espaço para a indicação completamente descontrolada dos cargos em comissão e funções gratificadas, por designação essencialmente política. Para isso, cria um novo vínculo – cargo de liderança e assessoramento – que substituirá os atuais servidores de carreira, concursados, na ocupação dos cargos de chefia. Esse mecanismo de indicação é potencial amplificador da corrupção no serviço público, dada as relações de compadrio, nepotismo e apadrinhamento político que enseja, abrindo espaço para práticas ilícitas, como as “rachadinhas”, na administração pública.
O segundo aspecto trazido pelo autor é a ampliação do rol de possibilidades nas formas de contratação de bens e serviços pelo Estado, as compras governamentais. A PEC fragmenta os processos, inibe o controle público e possibilita uma verdadeira balbúrdia na confecção de sistemas de informação. Esse sistemas, muito provavelmente, não se comunicarão, reduzindo a transparência no acompanhamento do orçamento, nas informações e procedimentos adotados pelo gestor público, dificultando o trabalho do Legislativo e da sociedade na fiscalização dos gastos.
Com o fito de desburocratizar a execução orçamentária, a PEC 32 permite que “órgãos e entidades que firmem contrato de gestão possam ter uma programação unificada no orçamento. […] Ao contrário das atuais regras, que exigem que o orçamento do órgão seja detalhado por diversos classificadores orçamentários […] com a nova proposta bastaria que constasse na lei orçamentária uma única linha com o total de despesas do órgão”, alerta o Consultor.
Submissão do Estado aos interesses de corporações privadas
A quebra do Regime Jurídico Único dos servidores também terá como consequência praticamente o fim dos concursos como porta de entrada principal no serviço público, possibilitando aos gestores dirigirem “a atividade estatal para o benefício de interesses privados”, o que é ainda mais incentivado pela possibilidade de que as funções de confiança possam ocupar também as atribuições técnicas. “Abre-se a porta, assim, para uma completa captura do Estado, envolvendo toda a estrutura hierárquica, até o nível operacional, com a substituição de servidores concursados por pessoas sem vínculo com a Administração”.
Na mesma toada, temos a quebra da estabilidade, com a submissão do servidor à avaliação discricionária da chefia – que passa a ser indicada pelos políticos – que poderão se utilizar desse poder para demitir. A estabilidade é preceito constitucional que determina o caráter impessoal da prestação de serviço na administração pública. A quebra desse princípio favorece a corrupção e constrange os servidores a não denunciarem abusos, malversações e ilícitos que venham a ocorrer.
Desestruturação da administração pública
Por fim, temos que o risco de redução da eficiência na prestação do serviço público é flagrante, em face da desestruturação que será operada nos órgãos públicos. A PEC 32 está recheada de mecanismos que levam a esse verdadeiro precipício, prevendo mecanismos de outorga do serviço público ao setor privado e a ampliação dos contratos de gestão.
Opera, portanto, uma privatização em larga escala, que, além de retirar direitos sociais aos quais a população deveria ter acesso, vai aos poucos transformando esses direitos em serviços. Serviços que serão operados pela iniciativa privada, que, pela sua natureza, visa sempre o lucro, buscando sempre a redução dos custos, ainda que em detrimento da oferta de um bem cujo valor não é possível de mensurar, como o direito à vida digna, à assistência do Estado, à educação, à segurança etc.
A lógica da PEC 32: serviços públicos de pior qualidade sem garantia de redução de despesas pelo Estado
Portanto, não haverá equacionamento do endividamento do Estado com a PEC 32. A lógica de favorecimento do setor privado – incluindo o setor financeiro – preside a reforma administrativa, assim como esteve presente nas reformas trabalhistas, da previdência, na ampliação das terceirizações, no mecanismo da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e no estabelecimento do teto dos gastos.
A conclusão da Nota Técnica é de que os efeitos que aumentam as despesas têm impacto muito maior do que aqueles que poderiam reduzir as despesas, ao analisar de conjunto os mecanismos da PEC 32/2020.
Apenas a título de exemplo, as funções de confiança e funções gratificadas somam aproximadamente 915.000 cargos na estrutura de todas as esferas de poder e entes governamentais, segundo estimativa da Consultoria do Senado.
A Nota estima uma expansão mínima superior a 207.000 novos vínculos, apenas com essas substituições. A possibilidade de que esses vagas sejam recrutados amplamente, ocupando os denominados “cargos de liderança e assessoramento”, no lugar dos atuais servidores concursados, já traz, de maneira bem evidente, o risco da perda da qualidade do serviço público e o aumento dos gastos. Vai resultar no inchaço da máquina pública.
A perda de direitos e vantagens funcionais dos servidores, servirá, portanto, para financiar a entrada de apaniguados dos políticos e gestores de plantão, sem qualquer vínculo com a administração e o interesse públicos.
Cacau Pereira é advogado com Especialização em Direito Público, Mestre em Educação e pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps)
[1] BRASIL. Senado Federal. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle. Nota Técnica 69/2021: “Aspectos Fiscais da PEC 32/2020 e Proposta de Medidas Alternativas”. Disponível em https://www12.senado.leg.br/orcamento/documentos/estudos/tipos-de-estudos/notas-tecnicas-e-informativos/nota-tecnica-69-2021-aspectos-fiscais-da-pec-32-2020-201creforma-administrativa201d-e-proposta-de-medidas-alternativas/view
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