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MUNDO

Biden e a velha tática de dividir para governar

Marcela Anita, EUA

Nos primeiros meses do governo Biden, é possível identificar uma velha prática na política, o da cortina de fumaça. Biden, assim como Obama fazia, anuncia mudanças consideradas progressistas e até razoáveis, quando comparadas aos preconceitos escancarados do governo Trump, enquanto aprofunda uma política imperialista, fortemente sustentada pelo nacionalismo estadunidense e pelas divisões na classe trabalhadora, tanto dentro dos EUA como também internacionalmente. Essa cortina de fumaça tem o intuito de esconder que as ambições imperialistas do governo dos EUA de domínio do mercado mundial favorecem apenas à burguesia, e não à classe trabalhadora. E que também só pode ser alcançada através do aprofundamento da exploração da classe trabalhadora. 

No entanto, reconhecer as melhorias não ameniza a necessidade de lutar para que todas as pessoas tenham acesso a condições de vida saudável e livre de opressão e exploração. Esse objetivo é possível, urgente e inegociável!

A Casa Branca sabe bem disso e, para alcançar seus objetivos, não hesita nem em conceder melhorias nem em intensificar opressões. Porém, além dos efeitos para os estadunidenses, a classe trabalhadora de todos os países, especialmente a do sul global, sente na pele as consequências dessa ambição imperialista. Portanto, ao olhar para as ações de Joe Biden, é necessário estar atento para o fato de que a promoção de melhorias nas condições de vida de uma parte dos trabalhadores está muitas vezes alinhada com uma maior exploração de outra parte, seja no mesmo país ou não. No entanto, reconhecer as melhorias não ameniza a necessidade de lutar para que todas as pessoas tenham acesso a condições de vida saudável e livre de opressão e exploração. Esse objetivo é possível, urgente e inegociável!

Uma das últimas ações do governo Biden, que têm chamado atenção, é o pacote de estímulo à economia, anunciado no mês de maio. Biden anunciou que investirá US $4 trilhões para recuperar a economia. Serão, de acordo com anúncios do governo, mais de US $2 trilhões em infraestrutura, gerando empregos, e possivelmente US $1.8 trilhão no “Plano Família Americana”, que acrescenta acesso à pré-escola e cursos profissionalizantes, além de baixar impostos às famílias com crianças. Este pacote, caso seja implementado, seria a maior intervenção do Estado na economia capitalista estadunidense desde o “New Deal” de Roosevelt.

O investimento na infraestrutura capitalista certamente melhora a vida daqueles que vivem geograficamente nas regiões melhoradas e que podem se beneficiar dela. Esse investimento pretende, por exemplo, ampliar acesso à internet rápida, melhorar as condições das estradas e outras construções de apoio a serviços de utilidade pública. Além disso, todo esse trabalho subentende-se mais empregos. A expansão do acesso à pré-escola também incentiva a volta de muitas mulheres ao mercado de trabalho. Lembrando que todos os postos de trabalho ocupados por mulheres criados na última década foram perdidos durante a pandemia [1]. Também o anunciado investimento em cursos profissionalizantes visa à capacitação de mão de obra para todo esse trabalho. 

Além disso, no mês de março, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o projeto de lei chamado “Pro-Act”, ou Ato de Proteção do Direito de Organização. Este projeto de lei, se aprovado no Senado também, cancelaria a lei chamada “Direito ao Trabalho”, presente em 12 dos 50 estados dos EUA, que dificulta a organização sindical, ao permitir que trabalhadores optem individualmente por contribuir ou não com seus sindicatos, mesmo tendo em vista que todos se beneficiam dos acordos coletivos negociados pelo sindicato. O Pro-Act propõe também aplicação de penalidades às empresas que praticarem qualquer tipo de ação que caracterize coerção ou propaganda anti-sindical, muito praticada pelas empresas.

O exemplo mais recente foi a tentativa frustrada de sindicalização na Amazon, empresa de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, que poderá ser o primeiro burguês a ser um trilionário. Durante a campanha de sindicalização a Amazon fez abertamente sua própria campanha de anti-sindicalização, onde fazia, por exemplo, reuniões mandatórias com todos os empregados com propaganda anti-sindical e ameaças. Na votação final, a maioria dos trabalhadores votou contra a sindicalização.

Apesar das aparências, a intenção da proposta de votação do Pro-Act é questionável. É bastante improvável que este projeto de lei seja aprovado pelo Senado. E isso não é novidade para Biden ou nenhum democrata. Aí está um exemplo da cortina de fumaça, ao anunciar o Pro-Act, Biden sinaliza aos sindicatos e à federação sindical como aliado, enquanto conta com os Republicanos para fazerem o “papel de mau” e barrarem a proposta.

Aí está um exemplo da cortina de fumaça, ao anunciar o Pro-Act, Biden sinaliza aos sindicatos e à federação sindical como aliado, enquanto conta com os Republicanos para fazerem o “papel de mau” e barrarem a proposta.

Em síntese, o governo Biden apela àqueles que se reconhecem como classe média e “blue-collar”, termo utilizado para denominar trabalhadores do setor produtivo, nas fábricas e construções. Ele até utiliza-se desses termos em seus discursos frequentemente e tem certa ressonância com os trabalhadores estadunidenses, especialmente a população branca que tem nostalgia dos anos pós-guerra, quando a indústria de produção (e de guerra) dos EUA garantia o conhecido “sonho americano”. Claro, nesse sonho americano não se menciona o apartheid que vivia a população negra sob o Jim Crow, as ditaduras na América Latina, ou a Guerra no Vietnã. Estes episódios são apenas inconvenientes para aqueles que aproveitavam do sonho americano e muitos deles hoje, é base do trumpismo. 

Portanto, Biden mostra-se como aliado de uma parcela da classe trabalhadora e dos sindicatos. No entanto, nem sequer propõe ou discute atender às demandas das ruas e movimentos populares, cujas reivindicações mais fortes nos últimos anos são, por exemplo, o aumento do salário mínimo com o movimento Fight For $15 (Lute por $15), o cancelamento da dívida estudantil, que ultrapassa mais de US $1.7 trilhão, e as demandas do movimento Black Lives Matter que exige corte do orçamento dedicado à polícia, punição dos assassinatos, comuns nas comunidades negras, e medidas de proteção contra a gentrificação dessas comunidades.

O movimento Fight For 15 vem desde 2012 pedindo o aumento do atual salário mínimo de pouco mais de 7 dólares por hora, abaixo da linha da pobreza, para 15 dólares por hora. Mesmo $15/hora ainda não é considerado um salário básico que garante acesso à moradia, alimentação, transporte e saúde. 

Os democratas se opuseram a incluir o aumento do salário mínimo nas medidas de criação de empregos. Mas os empregos gerados diretamente na construção e tecnologia certamente pagam mais que o salário mínimo, então quem ganha e quem é afetado pelas escolhas do governo? 

Enquanto uma parcela da classe trabalhadora terá sua mão de obra usada para a reconstrução da infraestrutura dos EUA, que inclui a preparação para a implantação do 5G, onde os EUA competem com a China, o trabalho social reprodutivo de cuidado da casa, cuidado de crianças e idosos, indústria da alimentação, entre outros exemplos, serão ocupados pela parcela mais vulnerável da população. Ilustrativamente, imaginemos a seguinte situação, baseada no conhecimento sobre as estruturas de poder nos EUA: uma pessoa branca, que teve acesso à educação superior, poderá se beneficiar diretamente das medidas de Biden ao conseguir trabalho na indústria da tecnologia. Esse trabalhador contratará uma mulher imigrante, por exemplo, para a manutenção de sua casa. Ele ou ela também se beneficiará diretamente também do acesso à pré-escola, enquanto professores e professoras das pré-escolas ganham salário que está um pouco acima da linha da pobreza, com salário médio de $12/hora (US. Bureau of Labor Statistics). Portanto, mulheres mais pobres, imigrantes, geralmente negras, ficarão com o trabalho reprodutivo mal remunerado e considerado inferior aos que têm acesso ao mercado de trabalho produtivo. 

Para pensar na situação acima, uma visão binária é limitada. Pois a princípio, todos saem ganhando, uns mais e outros menos. Por isso, muitos classificam os democratas como progressistas tendo em vista a inserção de recursos do governo na economia. No entanto, a dinâmica de poder da relação entre trabalhadores privilegiados, que têm acesso à educação e ao trabalho com salário digno, com trabalhadores vulneráveis, que se submetem a salários de fome e humilhações provenientes dessa dinâmica de poder, intensificam o racismo e outros preconceitos, e aprofundam a divisão da classe trabalhadora. É possível conceder benefícios, que se configurará como privilégio para uma parcela da classe trabalhadora, enquanto permite aprofundar o abismo entre pessoas de diferentes nacionalidades, sexo, e raça. É progressista o fomento a privilégios, enquanto negam o direto à maioria? 

Injeções de recursos do governo na economia são progressistas quando garantem direitos ao invés de privilégios. Seriam direitos, por exemplo, 1) o aumento do salário mínimo, mas Biden negou-se; 2) acesso à educação superior gratuita e cancelamento da dívida estudantil, mas Biden negou-se; 3) direito ao trabalho independente do documento de identificação, mas Biden persegue sistematicamente os imigrantes e utiliza-se deles para gerar pressões contra o aumento de salários, mantendo inclusive, os centros de detenção de imigrantes, que chamavam de jaula no governo Trump.

Além do mais, as demandas do movimento Black Lives Matter não foram sequer debatidas. O forte policiamento nas comunidades de maioria negra continua para garantir o acesso das corporações imobiliárias, causando gentrificação nas áreas de moradia da população negara. A desvalorização cada vez maior das escolas públicas para abrir caminho para a privatização do ensino básico. A polícia estadunidense é extremamente racista e os assassinatos dos negros (as), como George Floyd, Breonna Taylor, entre muitos outros, para o governo, são apenas efeitos colaterais da proteção dos interesses corporativos naquelas comunidades. O orçamento dedicado à polícia dos EUA é o terceiro maior gasto militar do mundo, atrás apenas do gasto militar do próprio país, EUA, e da China [2]

Portanto, Biden parece progressista porque anunciou investimento em infraestrutura e para as famílias, mas as reformas na infraestrutura não visam melhorar as condições de vida da população, mas sim a fortalecer as bases para intensificar a exploração capitalista mundialmente.

Portanto, Biden parece progressista porque anunciou investimento em infraestrutura e para as famílias, mas as reformas na infraestrutura não visam melhorar as condições de vida da população, mas sim a fortalecer as bases para intensificar a exploração capitalista mundialmente. No entanto, mesmo que o plano audacioso de Biden seja de fortalecer a estrutura do país pagando o mínimo possível, ainda assim, um trabalhador na base da pirâmide socioeconômica nos EUA ainda está em melhores condições do que ⅔ dos trabalhadores do resto do mundo. Tendo isso em vista, pode ser que a solidariedade e a empatia com as lutas e demandas entre trabalhadores tenham maior potencial entre as classes mais oprimidas internacionalmente do que entre a classe trabalhadora dentro do contexto de um só país.

Enfim, é preciso ver além das aparências, as medidas “progressistas” de Biden visam fortalecer o capitalismo, as corporações e a burguesia estadunidense, e em última instância, apertar as amarras que a burguesia americana mantém nos recursos mundiais. A vida da classe trabalhadora e a natureza são reféns das ambições imperialistas da burguesia. 

As pequenas melhorias que o governo Biden propõe à classe trabalhadora nem sequer recuperam as condições e empregos perdidos durante a pandemia, muito menos eliminam as contradições que reproduzem o racismo, o patriarcado e a exploração de vários povos e recursos. Enquanto celebramos a melhoria das condições de vida de cada membro da sociedade, entende-se que tudo o que não é direito, é privilégio. E a busca apenas por privilégios tende a fortalecer as diversas formas de opressão do capitalismo que mantém as divisões na classe trabalhadora. 

A superação do capitalismo depende da união da classe trabalhadora internacionalmente, e esta depende da luta pela inclusão e reconhecimento da parcela da classe trabalhadora mais oprimida, que mantem o capitalismo e ao mesmo tempo são excluídas de qualquer privilégio gerado por esse sistema. A luta dos negros, das mulheres, dos direitos dos imigrantes, dos refugiados e dos povos que vivem em terras ocupadas, deve ser incluída em todas as instâncias de análise do que os capitalistas chamam de “progresso”. Assim pode-se diferenciar “progresso” de “fomento à exploração e opressão”. 

Biden lança o desafio mais uma vez de jogar migalhas enquanto fomenta divisões. É preciso celebrar a melhoria de vida de cada membro da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, reconhecer, nomear e combater todas as formas de opressão e exploração, mesmo que conectadas a estas mesmas melhorias. Na resposta ao desafio de conectar a classe trabalhadora internacionalmente, superando as dinâmicas de concessão de privilégios a alguns setores da classe trabalhadora, está a chave para a revolução social mundial. 

NOTAS

[1] https://www.cnbc.com/2021/01/11/women-account-for-100percent-of-jobs-lost-in-december-new-analysis.html 

[2] https://boingboing.net/2021/04/20/u-s-policing-budgets-would-rank-as-the-worlds-third-highest-military-expenditure.html