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BRASIL

Precarização e assédio institucionalizado: o “paredão da demissão” em Fortaleza

Empresa de turismo realizava “Paredões” ao estilo “Big Brother Brasil” para demitir funcionários e manter as metas de vendas. O caso se assemelha ao ocorrido na France Telecom, como aponta o sociólogo Ricardo Antunes.

Rafael Rabelo*, de Fortaleza, CE
Reprodução/G1

Trabalhador revela como foi ‘paredão’ de demissão em empresa de turismo no CE

Engels, em seu clássico de 1845, “A situação da classe trabalhadora da Inglaterra”, alertava que alertava que a competição entre o proletariado “constitui a arma mais eficiente da burguesia em sua luta contra ele” (1). Apesar de vivermos 176 anos à frente do revolucionário inglês, e mesmo com todos os avanços da chamada “era da informação”, Engels nunca esteve tão certo e a burguesia agora recorre aos avanços tecnológicos e ao espetáculo midiático para nos dividir. 

O caso da empresa “Somos Case Gestão de Timeshare e Multipropriedade”, que terceirizava mão de obra para a companhia de turismo MVC, no Ceará, é icônico. Um gestor da empresa realizou “Paredões” ao estilo “Big Brother Brasil” para escolher e demitir funcionários “fora do padrão”, aqueles que não atingiam as metas de vendas. Os paredões foram realizados ao menos desde 2019. 

A empresa humilhava os trabalhadores e, quando as metas de vendas não eram atingidas, organizava a equipe para que todos votassem em quem seria “eliminado”.

Somente em maio deste ano pudemos tomar conhecimento do caso, após a divulgação de uma sentença condenatória em primeira instância (2), em um processo trabalhista movido por uma funcionária demitida, vítima deste “procedimento”, e do assédio moral e constrangimento sofridos. A empresa humilhava os trabalhadores e, quando as metas de vendas não eram atingidas, organizava a equipe para que todos votassem em quem seria “eliminado”. A empresa foi condenada a pagar R$ 14 mil nesta ação e é ré em outros processos, inclusive de um funcionário demitido após se recusar a indicar alguém para ser eliminado.  

O gestor atuava especialmente contra os terceirizados, restringindo as idas ao banheiro e alimentação destes funcionários. Essa postura remete a naturalização das desigualdades no ambiente de trabalho, acentuada com a chamada “Deforma” das relações de trabalho no Brasil, aprovada durante o governo Temer. Segundo a pesquisadora Barbara Vallejos Vazquez, a reforma “naturaliza as desigualdades”, reduz a média salarial, aumenta a rotatividade de trabalhadores, amplia as consequências da concorrência desenfreada por vagas de emprego e aumenta a informalidade (3)

Em entrevista ao Esquerda Online, Ricardo Antunes, professor da UNICAMP, pesquisador e crítico das chamadas “novas relações do mundo do trabalho”, diz “não se surpreender” com o modelo adotado para demitir funcionários nesta empresa cearense. Segundo ele, há muito tempo que “a avaliação do desempenho dos trabalhadores e trabalhadoras mostra a degradação a que as condições de trabalho chegaram dentro das empresas”. O professor relembra outro caso icônico, com consequências muito mais graves, que ocorreu na França entre 2005 e 2009, no processo de privatização da France Telecom. À época, a empresa recém privatizada apresentou um “plano de reestruturação” chamado de “Time to Move” (Hora de Mudar), que previa a demissão de 22 mil funcionários. Como dois terços dos 66 mil funcionários de carreira possuía estabilidade funcional, a nova administração da empresa iniciou uma violenta campanha de “demissões voluntárias”, onde foram sujeitados a uma política consciente de “insegurança no emprego” (4) e decorreu em dezenas de transferências geográficas forçadas, redução de salários, e-mails incessantes e exposição pública dos que se recusavam a sair. O resultado: cerca de 294 suicídios, entre 2005 e 2015. Destes, 35 foram reconhecidos pela justiça francesa como de responsabilidade direta dos executivos e gestores envolvidos devido à tensão gerada no processo. A atual Orange, ex-France Telecom, foi condenada em 2019 a pagar uma indenização milionária às famílias das vítimas devido aos “procedimentos” de demissão de funcionários que foram reconhecidos como “assédio institucionalizado” (5). 

Antunes também destaca o “acinte” que as empresas promovem, através das formas como se referem aos funcionários. “Há uma verdadeira adulteração da etimologia das palavras. Colaborador, colaboradora, parceiro, parceira, sinergia, resiliência, são adulterações léxicas para esconder o vilipêndio das condições de trabalho do nosso tempo, nas quais esse tipo de violência, utilizando o coletivo, para destituir ou demitir um trabalhador ou uma trabalhadora, é uma forma da gerência transferir a guerra para dentro do espaço de trabalho.” 

Ou seja, o novo “léxico” até tenta, mas não consegue esconder o fato de que o processo de reestruturação produtiva do capital a nível internacional é fundado, dentre outras coisas, na precarização do trabalho e no desenvolvimento de uma realidade consciente e sistemática de insegurança no trabalho. Seja com as privatizações e recentes ataques à estabilidade do serviço público, como, no Brasil, a PEC 32/2020 (Reforma Administrativa); com o crescimento incontrolável do processo de “uberização do trabalho” ou com a “institucionalização” do assédio moral como ferramenta de gestão nas empresas; exemplos como o caso ocorrido no Ceará mostram que a consequência para a classe trabalhadora é fatalmente trágica.    

*Rafael Rabelo é militante da Resistência/PSOL.

NOTAS

(1) ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Boitempo. São Paulo, 2008. P. 117

(2) https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/05/24/empresa-que-fez-paredao-de-eliminacao-para-demitir-empregados-e-condenada-a-pagar-r-14-mil-por-danos-morais-no-ceara.ghtml

(3) http://www.ihu.unisinos.br/580483-empobrecimento-e-naturalizacao-das-desigualdades-sao-as-primeiras-consequencias-da-reforma-trabalhista-entrevista-especial-com-barbara-vallejos-vaz

(4) Standing, Guy 0 precariado : a nova classe perigosa / Guy Standing ; tradução Cristina Antunes. — 1. ed.; 1. reimp, – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2014 (Invenções Democráticas, v. IV).

(5) https://www.dw.com/pt-br/operadora-francesa-%C3%A9-condenada-ap%C3%B3s-onda-de-suic%C3%ADdios/a-51757301