A aprovação da PEC 186 pela Câmara dos Deputados, no dia 12 de março, representa o maior ataque às carreiras dos trabalhadores do serviço público nos últimos 20 anos. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), não se via tamanho desmonte. Portanto, torna-se necessário entender quais as mudanças trazidas pela PEC e o contexto em que ela foi aprovada, no intuito de qualificar nossa análise e nos preparar para os embates futuros.
Neofascismo e ultraliberalismo
A ascensão do neofascismo no Brasil e em outras regiões do mundo não é algo aleatório, ela representa uma articulação geopolítica no sentido de lidar com algumas questões cruciais, como a crise econômica mundial, o papel da China como superpotência e, mais recentemente, a pandemia do novo coronavírus.
Não seria a primeira vez que o capital buscaria uma saída autoritária para as suas crises. Exemplos existiram de sobra durante o século XX: desde o nazifascismo italiano e alemão, passando pelas guerras no leste asiático e as ditaduras militares na América Latina, cabendo destacar a chamada “ditadura liberal” no Chile de Pinochet, de onde saiu o atual ministro da Economia, Paulo Guedes.
Nesse sentido, o neofascista Jair Bolsonaro chegou ao poder com a perspectiva de impor uma agenda ultraliberal, que os governo de Lula e Dilma não conseguiram cumprir e executar. O papel geopolítico de uma economia dependente e produtora de commodities como o Brasil não permite que se concretize um projeto de desenvolvimento nacional, sem grandes rupturas políticas. Como é possível verificar no caso dos governos do PT, que tentaram conciliar este projeto com a agenda do mercado durante 13 anos. Exatamente, por isso, vieram a sofrer um golpe institucional em 2016.
Destruição das conquistas sociais da Constituição de 1988
Assim sendo, destruir as conquistas de “bem-estar social” da Constituição de 1988 é essencial para o mercado. Collor e FHC iniciaram esse processo, Lula e Dilma o colocaram em marcha lenta, enquanto Temer e Bolsonaro “cantaram pneu” e o aceleraram como nunca.
Collor acusou os funcionários públicos de “marajás”, FHC de “privilegiados”, mas nenhum deles teve uma conjuntura tão favorável para atacá-los como Bolsonaro durante a atual pandemia.
Numa economia com 14 milhões de desempregados, 68 milhões dependentes de um auxílio emergencial para sobreviver e composta majoritariamente pelo setor de serviços, o mais precarizado e afetado pelas medidas de isolamento social; a maioria das pessoas tem muita dificuldade em entender, por exemplo, a necessidade da estabilidade no emprego do servidor público.
A PEC 186 como peça da engenharia ultraliberal
Antes de tocar nos pontos da PEC propriamente dita, é preciso deixar nítidas duas questões. Uma delas foi tratada acima: Bolsonaro joga com a hecatombe econômica, social e sanitária que afeta todas e todos os brasileiros.
A EC 95, que congelou os investimentos públicos por 20 anos, é de 2016. Já PEC 186 é de 2019, consequência direta da EC 95. Aqui cabe a pergunta: por que a regulamentação desta parte da EC 95, que afeta as carreiras do serviço público, demorou três anos para ser apresentada e mais dois anos para ser votada?
A segunda questão é que as medidas autoritárias do governo Bolsonaro vêm causando uma guinada na forma como a União lida com o chamado Pacto Federativo.
Os governos do PT inauguraram a era das “parcerias” e dos “pactos”, quase todas as propostas de políticas públicas do período foram fruto de um contrato entre o governo federal e as administrações locais. O Programa Cisternas, o Pacto Pelo Fortalecimento do Ensino Médio, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, são apenas alguns exemplos dessas parcerias. A União propunha a política, enquanto estados e municípios tinham autonomia de aderir ou não aos programas. A rigor, os repasses de outros recursos não vinculados ao programa específico não dependiam desta adesão aos projetos de parcerias ou pactos com o governo federal.
A partir de Temer, e mais diretamente com Bolsonaro, o sistema de parcerias foi substituído pela chantagem pura e simples. A reforma da previdência, o auxílio financeiro aos estados e municípios na primeira onda da pandemia e, agora, a PEC 186 são bons exemplos disso. A União condiciona o repasse de recursos, auxílios financeiros, autorização para a concessão de empréstimos, negociação das dívidas dos estados e municípios, dentre outras coisas, à adesão automática aos projetos e leis determinadas pelo Poder Executivo.
O ponto anterior limita, inclusive, a capacidade de negociação dos já enfraquecidos e muitas vezes burocratizados sindicatos, principalmente nos estados e municípios mais pobres, exatamente aqueles que mais dependem de repasses federais.
É disto que se trata, dentre outras coisas, a imposição de uma agenda ultraliberal pela via autoritária. Paulo Guedes aprendeu muito bem durante o seu estágio no Chile de Pinochet.
Entender a PEC 186 para organizar a luta contra seus efeitos
O caso específico da PEC 186 é emblemático. Sendo um projeto de 2019, em nada se referia à pandemia do novo coronavírus, mas dizia respeito a uma política contínua de arrocho fiscal e ataque aos direitos dos servidores públicos, na esteira da EC 95. Atrelar esta PEC à concessão do tão necessário Auxílio Emergencial, não passa de sadismo, uma chantagem desumana com a vida e a sobrevivência dos mais pobres.
Seguindo esta lógica, ela faculta aos entes federativos uma série de medidas de contenção de gastos para o caso da relação entre receitas e despesas correntes líquidas ultrapassar 95%, como, por exemplo, a proibição da concessão de reajustes salariais e a realização de concursos públicos.
Aqui ocorre o “pulo do gato”. Apesar de facultativa, esta medida cria uma série de dificuldades para estados e municípios que não aderirem ao atingimento do teto de 95% de gastos, entre elas a não concessão de garantias da União na celebração de empréstimos a partir das administrações locais e a impossibilidade do refinanciamento de dívidas. Ou seja, a adesão ao teto de gastos não é obrigatória, nem poderia ser por conta do Pacto Federativo, mas, na prática, coloca uma faca no pescoço de estados e municípios, na medida em que nenhum estado ou município investe atualmente em infraestrutura ou saneamento básico, por exemplo, sem contrair empréstimos privados ou de organismos internacionais.
Por outro lado, cabe explicar que o congelamento dos salários dos servidores por 15 anos, não é automático. Este prazo representa uma estimativa da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, em que o limite de 95% será atingido a partir de 2025 e poderá cair abaixo desse patamar apenas em 2036. A estimativa é otimista, visto que estamos em uma crise econômica de proporções ainda não definidas, por conta dos efeitos da pandemia. O mais provável é que o teto de 95% seja atingido antes de 2025 e demorará muito mais de dez anos para cair abaixo desse patamar.
Diante de tudo isso, os trabalhadores dos serviços públicos não podem resignar-se e ter como um fato consumado o congelamento de seus salários por 15 anos. Precisamos delimitar nosso discurso e preparar nossas ações futuras com aquilo que inflama para a resistência, sem deixar que medidas draconianas como a PEC 186 enterre mais profundamente nossas perspectivas.
Mais do que nunca, é necessário ter paciência para explicar as consequências e meandros da PEC 186, analisar suas possíveis brechas políticas e jurídicas e ir pavimentando o caminho para a organização das futuras lutas contra o desmonte dos serviços públicos pela agenda neofacista e ultraliberal de Bolsonaro e Paulo Guedes.
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