Durante a pandemia do novo coronavírus, que teve seu agravamento nos últimos meses no Brasil e bateu a triste marca de 260 mil mortes, nós, mulheres trabalhadoras, fomos as mais afetadas. Por conta da vulnerabilidade dos postos de trabalho que ocupamos (para a maioria é trabalho terceirizado, precário e com as piores remunerações), tivemos que lidar com a redução salarial ou com o desemprego, que atingiu números recordes no Brasil e no mundo. Trabalhos como vendas no varejo, hotelaria, trabalho doméstico e serviços de beleza, tiveram queda acumulada de 8% desde o começo da pandemia, em março de 2020, e o desemprego atingiu mais de 8,6 milhões de mulheres no 3º trimestre do mesmo ano, com sua participação no mercado de trabalho caindo 13,8% em relação a 2019.[1] Este cenário de crise fez com que muitas de nós nos víssemos dependentes do auxílio emergencial. Agora enfrentamos a queda dessa fonte de renda para menos da metade com a redução do auxílio no fim do ano passado, ao mesmo tempo em que houve aumento que variou entre 17,8% a 32,9% no preço médio da cesta básica nas capitais do país.[2]
Quando se é uma mulher negra ou uma mulher trans, este quadro se agrava. Além de compormos a parcela da população mais vulnerável socialmente ao novo coronavírus, também estamos mais expostas à retração do mercado e aumento do desemprego. Segundo o IBGE, as mulheres negras, maioria nos empregos de baixa remuneração, são também minoria no mercado de trabalho entre as pessoas com filhos de até três anos (49,7% estavam empregadas em 2019), idade em que os cuidados com os filhos costumam ser direcionados quase integralmente às mães. Para fins de comparação, 62,6% das mulheres brancas nas mesmas condições ocupavam o mercado de trabalho. Entre homens com filhos na mesma idade, o valor vai para 89,2%.[3] Ser uma mulher negra no mercado de trabalho também é lidar com o racismo cotidiano, que nos impõe historicamente uma carga social de gerações que viveram na miséria para garantir uma estrutura que mantém homens e mulheres brancos prosperando às custas do trabalho doméstico realizados por nós.
Na mesma direção, a situação das mulheres trans é igualmente preocupante. Relegadas em sua maioria a empregos informais e a condições precárias de vida (com dificuldade de encontrar empregos formais, moradia e acesso ao serviço de saúde), se viram durante a pandemia em situação de ainda maior fragilidade. Com poucas casas de acolhimento existentes no país (a cidade de São Paulo possui apenas duas, com 60 vagas ao todo), muitas delas se viram sem moradia durante a pandemia, uma vez que a crise econômica piorada pela crise sanitária tirou estas mulheres do mercado de trabalho.[4] Além da violência que sofremos por nossa sexualidade, sofremos também com o descaso do Estado no acesso a empregos dignos e saúde. Ser uma mulher trans é ser uma mulher excluída socialmente.
Aquelas mulheres que conseguiram se manter empregadas, principalmente as que puderam transferir o trabalho para casa, se depararam com um dilema: lidar com trabalho ou estudo, tendo que dividir o tempo em casa com cuidados com crianças e idosos, alimentação, educação e limpeza da casa. Tarefas que, mesmo de maneira precária, eram divididas com uma rede de suporte ao cuidado, que engloba os sistemas educacional (escola, creche), de alimentação (da empresa ou da rua), de logística familiar (com parentes, em sua maioria também outras mulheres), e de saúde (com hospitais e centros de cuidado de idosos). Porém, a pandemia tirou do cálculo da organização familiar essa rede, despejando sobre nós todas essas responsabilidades, uma vez que essa rede de apoio se encontra comprometida. Sem que nós mulheres assumamos trabalho não remunerado, que reproduzem a ideia da maternidade e dos cuidados com casa, comida, educação, seria impossível garantir que a economia funcionasse. Chamamos isso de reprodução social.
Uma forma de diminuir a sobrecarga das mulheres durante a pandemia é a redução da jornada de trabalho das mulheres sem redução de salário.
Temos sido a frente de cuidados na pandemia, seja por estarmos ligadas aos trabalhos de cuidado e educação, ou por sermos responsáveis pelas tarefas domésticas de reprodução da vida. Nós, mulheres, não contamos com uma estrutura adequada para exercermos nossas funções de maneira segura. Além disso, muitas de nós também vimos nossa carga de trabalho aumentar, seja pela constante necessidade de higienização na pandemia, seja por termos que cuidar das crianças e familiares que agora estão em casa de maneira permanente. Por isso, acreditamos que uma forma de diminuir a sobrecarga das mulheres durante a pandemia é a redução da jornada de trabalho das mulheres sem redução de salário. Ao compreender esse papel que nos é dado nesta sociedade enquanto mantenedoras dos cuidados familiares (sendo com nossos filhos, pais, cônjuges e companheiros), e entendendo a importância do distanciamento social e isolamento, queremos garantia para que possamos ter emprego e também condições mentais para uma boa qualidade de vida. O lucro das empresas é impossível sem o nosso “trabalho invisível”. Então que, no mínimo, dividam esse lucro com todas nós trabalhadoras que, durante a pandemia, tivemos que lidar com ainda mais trabalho.
Para além do auxílio emergencial, fundamental para garantir a subsistência das famílias, diminuir a carga de trabalho possibilita às mulheres terem mais tempo para estudos e melhor formação, que garantirá melhores empregos e maiores salários. Uma vez desempregadas, sem renda e forçadamente isoladas, dessas mulheres também é retirada sua possibilidade de atuação e mobilização política, de poder opinar sobre a política nacional e de estar mais engajada nas lutas por direitos e por sua própria emancipação.
Como escolas e creches devem ficar fechadas enquanto não há segurança para alunos e profissionais, houve um drástico rompimento das redes de apoio e cuidado com as quais as mulheres trabalhadoras podiam contar. Dessa maneira, é urgente pensar em alternativas para que, mesmo durante a pandemia e o isolamento social, seja possível a socialização de parte das tarefas de cuidado e torná-las responsabilidade do Estado. Faz-se necessário, então, pensar em medidas viáveis e imediatas para além da manutenção do auxílio emergencial, pois, embora garanta a sobrevivência das famílias durante a pandemia, ele não diminui a carga de trabalho doméstico às quais as mulheres estão sujeitas no contexto pandêmico.
Num contexto mais amplo, para além da situação atual, deve-se pensar em outras frentes do trabalho não remunerado do cuidado que possam ser retiradas do contexto doméstico e assumidas pelo Estado: garantia de mais creches e escolas próximas aos locais de trabalho, restaurantes públicos com comida de qualidade a preços acessíveis, lavanderias públicas que possibilitem a lavagem de roupa de todo cidadão de maneira gratuita, hortas urbanas que permitam ampliar a segurança alimentar, entre outras medidas que poderiam ampliar a oferta de empregos e garantir uma maior gama de serviços públicos essenciais. Os governantes, contudo, insistem em ver esses direitos como gasto e não como investimento em qualidade de vida para a população. Porém, a pandemia nos traz a necessidade de redimensionar todos esses projetos, uma vez que toda a população é colocada em risco quando se vive o isolamento social em meio a uma gestão genocida da crise e ausência de uma política de ampla vacinação e testagem em massa.
Um dos dramas vividos durante a pandemia é o acesso à alimentação. Com a alta dos itens da cesta básica, tem se tornado um problema para as famílias se manterem bem alimentadas com uma renda reduzida ou inexistente. Vista pelo poder público meramente como um espaço de confinamento dos alunos durante uma parcela do dia, as escolas ocupam um lugar fundamental na organização familiar da classe trabalhadora, não apenas garantindo acesso à educação formal, mas também sendo um espaço de acolhimento das crianças para que seus responsáveis possam trabalhar. Em muitos casos, as refeições mais completas que os alunos receberão durante seu dia são as realizadas na escola e, com o seu fechamento durante a pandemia, se faz necessário repensar meios de manter o elo entre o banco escolar e a mesa de alimentação. Se os governos valorizassem esse aspecto da escola, poderiam montar uma rede de segurança alimentar que se valesse de sua estrutura física já existente, bem como dos contratos de aquisição de alimentos já firmados, para distribuir cestas básicas compostas por estes alimentos perdidos durante a pandemia. Alimentos que poderiam ter sido redirecionados à comunidade escolar, garantindo melhor nutrição dessas famílias.
As escolas deveriam ser centros de distribuição de cestas básicas
Nesse sentido, as escolas deveriam ser centros de distribuição de cestas básicas. E, para garantir uma alimentação de qualidade para o maior número possível de famílias, essa distribuição deve ter a sua gestão descentralizada e os itens da cesta devem ser, no mínimo, saudáveis. Para isso, a primeira medida é a ampliação da obrigatoriedade dos itens orgânicos presentes na merenda escolar oriundos de agricultura familiar. Desta forma, estaremos auxiliando na geração de emprego e garantia de renda para famílias e comunidades que sobrevivem da venda desses insumos, e que foram, junto com o setor de micronegócios, as mais afetadas pela pandemia. Essa ação também garantirá que os alimentos não sejam carregados de agrotóxicos e que não contribuam para o desmatamento. Essa ampliação, objetivamente, é de sair dos atuais 30% de obrigatoriedade de insumos oriundos de economia familiar para 50%. Sobre a distribuição, se faz necessária a participação do conselho escolar, que indicará à gestão pública a quantidade de cestas necessárias e organizará sua distribuição baseando-se nas matrículas de crianças na rede escolar. A montagem de cestas deverá ser supervisionada por um grupo de nutricionistas, para que uma alimentação balanceada chegue à mesa dessas famílias. Segurança alimentar se faz com acesso, informação, qualidade dos alimentos e equilíbrio nutricional.
Nós, mulheres, temos o direito de ter nosso trabalho valorizado. Não vamos permitir que descarreguem sobre as nossas costas a crise econômica e sanitária que se instalou no mundo. Queremos a garantia de que nossos direitos sejam amplamente respeitados. Por isso exigimos: redução de 25% da jornada de trabalho (de 8 para 6 horas) sem redução salarial! Necessitamos de mais tempo para organizar nossas vidas em casa! Além disso, queremos segurança alimentar, para que nossos filhos tenham direito a uma alimentação completa, quando isso nos tem sido negado pela impossibilidade de trabalho. Que neste 8 de março possamos, desde nossas casas ou das ruas, bradar o grito contra a opressão de gênero e contra a exploração do nosso trabalho!
Vacina para não morrer!
Auxílio para não passar fome!
Segurança alimentar para nos manter fortes!
Redução de jornada por uma vida mais digna durante a pandemia!
Fontes:
[1] https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/graficosMulheresBrasilRegioes2021.pdf
[2] https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2020/202012cestabasica.pdf
[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/30173-mulheres-com-criancas-ate-tres-anos-de-idade-em-casa-tem-menor-nivel-de-ocupacao
[4] https://www.nationalgeographicbrasil.com/fotografia/2020/12/ainda-mais-excluidas-a-vida-de-mulheres-transexuais-durante-a-pandemia
Para mais informações:
https://almapreta.com/sessao/cotidiano/preconceito-rede-de-apoio-maes-negras-desemprego
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