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BRASIL

Mais de 260 mil mortos. De quem é a culpa?

Marcelo Badaró Mattos, de Niterói, RJ
Paulo Pinto / FotosPublicas

Aglomeração em São Paulo (SP)

Em meio à tragédia da perda de milhares e milhares de vidas que poderiam ter sido salvas, somos bombardeados todo dia pelas contraditórias informações dos grandes meios de comunicação empresariais sobre a pandemia. De um lado, veículos como os dos grupos Globo, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, divulgam os números com alarde e criticam duramente as medidas (e a falta de medidas) do governo Bolsonaro no combate à pandemia. Porém, questionam ao mesmo tempo o aumento dos gastos públicos que pode advir do auxílio emergencial e tentam nos convencer de que “medidas mais rígidas” precisam ser tomadas, enquanto reiteram a sua defesa de que as escolas sejam mantidas abertas e seu referendo a listas muito alargadas de “serviços essenciais”. De outro lado, veículos alinhados com o presidente da República, entre os quais se destaca pela penetração social a TV Record, se opõe a qualquer tipo de restrição à circulação de pessoas e apresentam o chefe do executivo como alguém que está tomando todas as medidas para controlar a pandemia (centenas de milhões de doses de vacina estariam, logo ali, à caminho) e garantir os empregos ao defender a “abertura da economia”.

Em comum a quase todos eles uma culpabilização dos indivíduos, por seus “comportamentos inadequados”, pelo descontrole das contaminações e pela escalada de mortes das últimas semanas. Depoimentos de médicos e familiares de doentes e mortos, justificadamente emocionados, são seguidos por afirmações de que “cada um tem que fazer a sua parte”. Cenas de hospitais lotados, confrontadas as de festas noturnas com centenas de pessoas, especialmente nas periferias e favelas, e imagens dos bares e ruas apinhados de gente, nos points noturnos das grandes cidades, nos quais as pessoas estão quase sempre sem máscaras e sem nenhuma distância entre elas, estabelecem uma conexão causal: a culpa pelo avanço da pandemia é do povo.

Por certo que cada um de nós, que se preocupa com a saúde própria e da comunidade a seu redor, tem histórias para relatar, com justa indignação, em relação às pessoas que, mesmo tendo acesso às informações e condições de isolamento, arriscam não apenas a si, mas a todas(os) do convívio direto e indireto. São aquelas(es) que lotam restaurantes, aproveitam os descontos nos pacotes de viagens e defendem a abertura das escolas, invocando as hedonistas justificativas do “é pela minha saúde mental”. Ou até os(as) adeptos(as) da versão supostamente politizada do “a classe trabalhadora está nas ruas se arriscando, então eu também vou sair”, como se a ida ao bar de quem poderia tomar sua cerveja em casa não estivesse ajudando a acelerar a circulação do vírus que vai chegar justamente às trabalhadoras e trabalhadores que saem de casa porque não tem outra opção para sobreviver. Quem não conhece pessoas assim, infelizmente, na nossa própria família, entre colegas de trabalho, ou até no meio dos camaradas de luta política e social?

Há, é claro, os(as) que renegam as regras sanitárias e as afrontam propositalmente (muitas vezes fazendo propaganda de seus atos), por adesão política à ideologia negacionista dos neofascistas no governo. Estes(as) últimos(as), deveriam estar sendo levados a juízo, mas os(as) primeiros(as) também têm sua porção de responsabilidade e devem ser cobrados por isso.

No entanto, a maioria das pessoas que está nas ruas hoje, com ou sem máscaras – se amontoando nos transportes coletivos lotados, trabalhando em instalações industriais sem segurança sanitária, atendendo em shoppings fechados por longas, limpando as cidades e as casas sem qualquer equipamento adequado de proteção individual, abrindo a birosquinha para tentar se manter, lecionando em salas de aula insalubres de escolas que sequer garantem abastecimento de água regular, se virando com a venda de balas no sinal de trânsito, etc. etc. etc. – está lá, não porque não queira “fazer a sua parte”, nem porque queira se contaminar e contaminar a comunidade. Em sua maioria, esse povo gostaria de estar protegido, como o demonstram as filas nos postos de vacinação e a angústia com a lentidão do processo. Para que essas pessoas possam ouvir os slogans do “fiquem em casa” (quando a muitas delas sequer é possível ter acesso ao direito à habitação), é necessário garantir o pagamento de um auxílio emergencial digno, a garantia de que não haverá demissões e o apoio aos pequenos negócios que não podem sobreviver fechados e empregam grande parte da população. 

A responsabilidade não é individual

Quem pode, ouvindo os especialistas, regular coletivamente as medidas restritivas à circulação (lockdown), no grau necessário para reduzir o ritmo das contaminações e reduzir progressivamente casos e mortes, até que a campanha de imunização avance significativamente e apresente os resultados que já tem apresentado em outros países que já vacinaram parcelas significativas da população? Quem detém os recursos financeiros e jurídicos para pagar os auxílios e garantir os empregos que poderiam manter as pessoas em casa por algumas semanas? 

São as mesmas pessoas que passaram um ano sem investir um tostão na recuperação e adaptação das estruturas físicas das escolas públicas e agora decretam que escolas são serviços essenciais e devem funcionar, mesmo no auge das transmissões e das mortes. As mesmas que cederam à pressão de todo tipo de representante do capital, do industrial ao religioso, mantendo abertos negócios e espaços que sempre geraram aglomeração e que agora apelam para a “responsabilidade da população”. São aquelas mesmas pessoas que correram para abrir leitos para covid, quando puderam (em muitas cidades isso foi inviável e os sistemas de saúde colapsaram diversas vezes), sustentando que a economia podia ser “aberta”, pois havia leitos suficientes para que toda aquela gente contaminada que desenvolvia os sintomas da doença fosse internada e – na casa dos ¾ para os que chegaram às UTIs – continuasse morrendo sem atrapalhar os fluxos do capital. Os mesmos que correram a fechar aqueles leitos quando as internações refluíram um pouco e agora carecem de recursos para reabri-los.

Estou falando, é claro, dos governantes, nos três poderes (executivo, legislativo e judiciário) e nas três esferas (municipal, estadual e federal), que configuram a estrutura política do Estado brasileiro. Com raríssimas exceções, governadores e prefeitos cederam às mais variadas pressões para adiar o inadiável e ainda agora se veem constrangidos pelo colapso generalizado dos sistemas de saúde a avançar medidas de contenção da circulação do vírus, mas vacilam e apresentam propostas tímidas, quando não falsas soluções, como os “toques de recolher”, que restringem a circulação nos horários em que ela já é naturalmente menor. Mesmo quando dispõem de recursos emergenciais liberados pelos legislativos, a imensa maioria resiste a pagar auxílios complementares à população mais miserável, que regride à miséria absoluta aos milhões pelo país afora desde o fim do auxílio emergencial pago pelo governo federal. Muitos se dizem oposição ao governo federal, mas reproduzem em menor escala as suas práticas.

Não há dúvida, entretanto, de que a maior responsabilidade é do governo federal. Só ele teria condições de levar adiante medidas nacionalmente articuladas de contenção da circulação da doença, garantir o auxílio emergencial em larga escala, legislar para proteger o emprego e garantir o não fechamento dos pequenos negócios. O Judiciário oscila entre cobranças ao Executivo de medidas que nunca são tomadas e a cumplicidade com a barbárie generalizada. Já o Legislativo quer resolver a lentidão da vacinação via privatização do plano e discute o auxílio em ritmo muito lento, porque está focado na urgência das medidas para garantir a imunidade jurídica dos parlamentares. Ainda que todos sejam responsáveis, por inação, conluio ou conivência, a maior parcela da culpa pelas mais de 260 mil vidas perdidas (restringindo os números aos dados oficiais), tem um endereço conhecido: o Palácio do Planalto.

É sobre Bolsonaro que recai o maior peso da responsabilidade pela tragédia, assim como a seu ministério – Guedes aproveitando o caos para avançar a agenda privatizante e de retirada de direitos; os muitos militares que não apenas o obedecem, mas são os principais esteios ideológicos e de sustentação política do presidente; assim como Damares e sua agenda anti-conquistas dos setores oprimidos; o ministro da Educação, com seu projeto de censurar a universidade e o astronauta do ministério da Ciência e Tecnologia que está lá para chancelar todos os cortes no setor, no momento em que o país mais precisa de pesquisa e inovação. 

Nos mesmos meios de comunicação empresariais críticos ao governo, que citei no início do texto, as falas, ações e omissões de Bolsonaro e seus subordinados, como o ministro da Saúde, são adjetivadas como insuficientes, incompetentes, inconsequentes, irracionais e até patológicas. Esse discurso aparentemente crítico, que acabamos reproduzindo cotidianamente, é ao fim e ao cabo muito superficial na crítica e mesmo conivente ao não apontar para a lógica que se esconde por trás da aparência.

Bolsonaro combateu incessante e conscientemente, desde o início, toda e qualquer medida de restrição à circulação do vírus, estimulando aglomerações, promovendo (com recursos públicos, inclusive) medicamentos sem eficácia contra a covid-19, espalhando boatos para tentar questionar a eficácia das máscaras e até das vacinas. A pesquisa  Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil, realizado pela Faculdade de Saúde Pública da USP e pela ONG Conectas Direitos Humanos, examinando mais de 3.000 normas editadas pelo governo no último ano, comprovou com fartas evidências a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da presidência da República.

Bolsonaro e seus subordinados no governo promovem uma ação racional, consciente e dirigida a pelo menos dois fins indissociáveis. O primeiro é garantir a livre circulação do vírus para que o máximo de pessoas se contaminem e com isso se chegue a uma projetada imunidade coletiva (“de rebanho), sem criar entraves para as atividades econômicas. Os argumentos científicos de que a imunidade coletiva é impossível sem as vacinas e de que essa estratégia levará à morte de mais centenas de milhares, assim como os argumentos minimamente lúcidos dos “analistas do mercado” de que a economia só se recuperará com o controle da pandemia, não têm nenhum peso sobre Bolsonaro e os seus. Afinal, na lógica militar, essas centenas de milhares de cadáveres são danos colaterais e para a lógica econômica dominante na economia capitalista dependente brasileira, essas pessoas eram apenas números, parte do gigantesco exército industrial de reserva, sempre reabastecido, num mercado de trabalho marcado pela precariedade, salário baixo e superexploração.

Além disso, para o projeto estratégico de Bolsonaro, que entre avanços e recuos mantém como horizonte o fechamento do regime político, o caos sanitário e social é o meio ideal para a mobilização de seus apoiadores mais radicalmente comprometidos com o ideário neofascista e para o avanço de medidas de exceção. Navegando em meio à turbulência por ele mesmo alimentada, espera chegar fortalecido às eleições de 2022, para fincar mais fundo, na nossa carne, as estacas que vêm dando sustentação ao seu plano autocrático.

Mas, atenção: Bolsonaro é o grande culpado, mas nenhum governante com uma política frente à pandemia tão catastrófica, cujo resultado é o genocídio nessa escala das centenas de milhares, se sustentaria apenas pela sua relação direta com seu eleitorado mais radicalizado e nem mesmo pelos militares que trabalharam para elegê-lo e hoje o cercam. Há forças organizadas das classes dominantes que lhe dão suporte.

Eles e nós

Reafirmo que todo o conjunto de apoiadores(as) de Bolsonaro que difundem a mensagem negacionista e boicotam as medidas sanitárias, tem um quinhão de cumplicidade na tragédia. O mais perverso, entretanto, é que, como nos lembrou Eliane Brum, o capitão pretende nos transformar a todos(as) em cúmplices e isso acaba sendo reforçado pela mídia, ao atribuir a cada pessoa, individualmente, a responsabilidade de “fazer a sua parte”. Afinal, como ela nos lembra, “Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis (…), fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.”

Enquanto isso, os grupos sociais que se beneficiam ou pretendem se beneficiar das políticas do governo em seu conjunto, permanecem nas sombras ou ditam as regras do jogo através das vozes anônimas do “mercado”. A burguesia brasileira optou por Bolsonaro em 2018, ainda que não fosse seu primeiro nome, para manter e aprofundar o programa austericida iniciado por Temer e passou toda a pandemia criticando pontualmente falas do presidente, mas sustentando ativamente suas políticas. Não escondem sua expectativa de ver avançar mais medidas que retiram direitos da classe trabalhadora – apresentadas como única alternativa diante da crise econômica mais profunda das últimas décadas –, transferir mais patrimônio público ao capital privado por preço de banana e garantir que os de baixo serão os únicos a pagar a conta. 

São da burguesia as mãos sujas de sangue que apertam as mãos de Bolsonaro e financiam as carreatas da morte de seus apoiadores. É ela que ao fazer, sim, a “sua parte”, ou seja, colocar sempre o lucro acima da vida, difunde o discurso da responsabilidade “de cada um de nós”. Não, a parcela trabalhadora do povo, que é obrigada a se expor ao vírus enquanto foge da fome, não é a culpada, muito menos os setores que se organizaram para salvar vidas através das ações de solidariedade social. Somos realmente “nós por nós” e eles contra nós, numa guerra diária.

Lockdown, com as garantias para que o povo não passe fome nem perca mais empregos, é a proposta para o momento que atravessamos. Mas, para estancar de vez a sangria provocada pela pulsão de morte dos genocidas, não basta reagir ao imediato. Não temos tempo até 2022 e a opção única pelo caminho que retirou as pessoas das ruas para levar votos para as urnas nos trouxe até aqui. É necessário avançar a mobilização das forças vivas e pulsantes da classe trabalhadora para derrotar Bolsonaro a partir da pressão popular. Não temos tempo a perder.

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