Os jornais estão noticiando, com entusiasmo, a realização de um acordo, no âmbito do ministério público, sobre o envolvimento da empresa Volkswagen nos crimes perpetrados pela ditadura militar contra seus funcionários, especialmente no ABC paulista, sede nacional da empresa, conforme anúncio de recente Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em três inquéritos que investigam este assunto, respectivamente o Inquérito Civil nº 1.34.001.006706/2015-26 (MPF); Inquérito Civil nº 14.725.00001417/2015-7 (MPSP) e Inquérito Civil nº 000878.2016.02.001/3 (MPT).
A euforia se justifica, pois todos que atuam na área de direitos humanos são sabedores das dificuldades advindas destas investigações, memória e, sobretudo, justiça, de modo que é compreensível que a imprensa, os procuradores dos três citados Ministérios Públicos diretamente atuantes e a sociedade em geral estejam enxergando nesta notícia algo totalmente positivo e animador, pelo menos à primeira vista. Também devemos reconhecer que, todos nós, estamos bastante ávidos por “boas novas”, considerando o atual governo de extrema direita que, sabemos, é inimigo confesso do tema da reparação dos crimes da ditadura e sequer aceita utilizar o termo ditadura em relação ao regime político inaugurado em 1964.
Todavia, é preciso ter muita prudência na análise deste termo de ajuste. Apesar de terem pontos positivos em seu conteúdo, assim como louvável o empenho do Ministério Público e da empresa em se disporem a buscar uma negociação, há de se questionar, neste caso, se o objetivo principal do inquérito está sendo satisfeito, apesar de suas pontuais qualidades. Sobretudo, se tal ajuste de conduta formal e jurídico não pode contribuir futuramente para um rebaixamento do patamar das discussões sobre a responsabilização das empresas, não apenas a Volkswagen, mas de todas indústrias que, direta ou indiretamente, tiveram participação no cometimento de crimes contra seus operários na luta contra o regime militar, que bem sabemos envolvem denúncias de tortura, com ocorrência comprovada na planta industrial da Volkswagen e demais casos de agressões, prisões arbitrárias e dispensas persecutórias por motivos políticos e ideológicos.
Estes últimos uma constante na maioria das grandes empresas brasileiras no período da ditadura militar, como na Embraer, Petrobras, Fiat, General Motors, CSN, para citar aqui os casos mais notórios.
Eu tive a honra de subscrever, quando era vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, em 2015, a representação que deu origem ao primeiro Inquérito sobre a Volkswagen, acima mencionado, perante o MPF, em São Paulo, ocasião em que me dirigi para a capital paulista a fim de participar da cerimônia de entrega, na sede regional do MPF, em companhia do saudoso advogado e amigo Modesto da Silveira, falecido, que, mesmo recuperando-se de uma intensa quimioterapia, foi um dos principais subscritores do pedido, ao lado do ex-presidente da OAB Federal Cezar Britto, IIEP (Intercambio, Informações, Estudos e Pesquisas), CUT, FORÇA SINDICAL, CSP-CONLUTAS, CGTB, CTB,CSB, para citar aqui algumas das entidades e cidadãos que firmaram o pedido de investigação que deu origem, há cinco anos, aos mencionados inquéritos, com elogiável protagonismo em especial do MPF.
O tema, portanto, é muito mais amplo do que está sendo noticiado, extrapolando a própria Volkswagen, fazendo parte de um movimento de direitos humanos que, ao contrário de outros países em que este tema foi muito aprofundado, tem como escopo principal apurar e responsabilizar o apoio empresarial às ditaduras na América Latina, tendo, inclusive, a Argentina avançado muito juridicamente na condenação de empresas que violaram direitos humanos durante o regime militar naquele país.
Destaco que o pedido de abertura de referido inquérito civil púbico, pioneiro no pais, teve com base, dentre outros importantes diplomas legais e constituição federal, as normas jurídicas do Estatuto de Roma, ratificado pelo Estado brasileiro através do Decreto n. 4. 388/2002, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, estabelecido no Brasil através do Decreto 678/1992 e importante aqui resumir os requerimentos que foram feitos por dezenas de signatários:
1-Apurar quais atitudes que auxiliaram, tornaram possível ou até agudizaram as práticas de violações de direito humanos ora relatadas;
2- Apurar o nível de participação de seu corpo dirigente em cada violação, ou conjunto destas, especialmente no que diz respeito aos crimes de tortura perpetrados no interior de suas plantas industriais;
3- Apurar o modus operandi da atividade privada de violação dos direitos humanos desenvolvida pela empresa denunciada, seja no que diz respeito ás ocorrências destes fatos verificadas no interior de suas unidades industriais, seja no que diz respeito á colaboração com órgãos de segurança estatal, unidades militares e organizações sindicais patronais, como a FIESP;
4- Apurar os benefícios obtidos pela empresa em razão de relatada cumplicidade na preparação e execução do golpe militar de 1964, assim como nas práticas desenvolvidas de violações de direitos humanos no interior de suas plantas industriais/ou ao seu mando, através de prepostos, em domicílios de empregados, lugares públicos, estabelecimentos de segurança pública e unidades militares (…)
Sucede que fomos agora informados da existência do mencionado TAC, que traz, em breve resumo, os seguintes pontos acordados:
1- A empresa fará uma declaração pública em relação ao tema;
2-doação de verba de R$ 4,5 Milhões para os fundos de proteção a direitos difusos FDD e FID;
3-Doações para outras instituições de memória a serem escolhidas pela empresa;
4-O MPT centralizará as demandas dos ex-operários perseguidos que pleiteiam individual a apurar;
5-O MPF, MPSP e MPT encerrarão as investigações após a apresentação de relatório sobre as investigações, no prazo de 15 dias, com manifestações finais exclusivamente reservadas a empresa;
6-Não há, finalmente, nenhuma responsabilização de nenhum dirigente, preposto ou funcionário da empresa.
Pontuados os itens acima e já caminhando para o final deste texto, ressalvo que o mesmo foi escrito menos de 24 horas após anunciado o referido TAC. O documento ainda não foi sequer homologado e muito ainda terá que ser debatido, mas, desde já, desejo dizer que não posso concordar e espero que o Ministério Público venha a rever este entendimento, de que as investigações sobre as ocorrências criminosas na Volkswagen sejam encerradas como pretende o referido TAC, pois muito pouco ainda foi apurado, bem como ninguém foi até hoje responsabilizado, incluindo prepostos, ex-militares que prestaram serviços para a empresa durante o regime de exceção, agentes de segurança privada, gerentes de segurança e de RH, e, principalmente, a cúpula da empresa no Brasil e no exterior.
Destaco que a maioria dos documentos constantes dos inquéritos em comento foram obtidos e apresentados pelo IIEP, que, inclusive, esforçou-se para apresentar testemunhas, como a oitiva do ex-metalúrgico Lucio Bellentani, torturado nas dependências da empresa em 1972, recentemente falecido. Mas falta muito ainda a se investigar e, após provados os fatos, responsabilizar os mandantes e prepostos pelos crimes.
No mínimo, uma audiência pública com a participação da sociedade civil interessada deveria obrigatoriamente anteceder a assinatura de uma acordo desta natureza e consequências, inclusive, internacionais, uma vez que os crimes hediondos investigados podem ser objeto de apreciação, como visto, por tribunais internacionais.
Quero aqui deixar claro que respeito todos os partícipes do acordo, seja da parte da empresa, seja do MP, pois considero que empresa e os procuradores subscritores estão expondo seus entendimentos, de forma legítima e com autonomia funcional, mas me permitam realmente discordar e dizer que, do ponto de vista da história da luta pela responsabilização dos crimes das empresas no Brasil, que está ainda em uma fase inicial e incipiente, este TAC não é o melhor caminho, nos marcos de uma autêntica justiça de transição, bem como um desrespeito aos que morreram vítimas da repressão.
Entendo que não é razoável tomar a decisão, em conjunto com a empresa acusada, de encerrar as investigações, ainda que sob algumas concessões positivas, mas por se tratar de crimes imprescritíveis, não é hora de encerrar o inquérito e, portanto, este acordo merece, com todo respeito, ser urgentemente revisado, pelo menos parcialmente e, se necessário, interposto recurso, para que excluída esta injustificável previsão de encerramento das investigações e encerramento do caso, prosseguindo-se em todas investigações iniciadas e também abrindo outras linhas investigatórias em relação ao conluio de outras empresas, sob pena de grave prejuízo à luta por memória, verdade e justiça no Brasil e no mundo.
Enfim, os dirigentes e prepostos da Volkswagen, uma vez comprovada a participação nos crimes da ditadura, assegurado o direito de defesa de cada um, não podem jamais ser “anistiados” por este acordo.
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