Não deveria surpreender ninguém o ataque de Bolsonaro à vacinação contra o novo coronavírus, nem que este ataque tenha sido lançado em uma bem ensaiada sequência: 1) uma pessoa “do povo” se dizendo farmacêutica fala ao presidente em tom de desabafo, que nenhuma vacina é segura antes de 14 anos; (¹) 2) Bolsonaro declara que “ninguém será obrigado a vacinar”, justificando sua posição em nome da “liberdade individual”; 3) A Secom, que tem produzido as peças de propaganda mais extremas na defesa da posição de Bolsonaro (defesa da hidroxicloroquina, comemoração do alto número de “recuperados”, etc.), transforma a declaração de Bolsonaro em uma peça de propaganda. Trata-se, indiscutivelmente, da nova etapa da campanha negacionista. A continuação lógica e inteiramente coerente com tudo que o presidente genocida falando e fazendo desde fevereiro. Este enredo desenvolveu-se se no curso de poucas horas, entre a noite do dia 31/8 a o início da tarde do dia seguinte.
Também não surpreende, mas deve preocupar, o fato de que muitos estão caindo na armadilha, seja tratando como piada(²), seja simplesmente compartilhando a propaganda da Secom como se não fosse necessário produzir uma crítica, seja respondendo exatamente na forma esperada por Bolsonaro, defendendo que as pessoas devem sim ser obrigadas a se vacinar.
Esta última reação parte de um princípio justo e correto – de que a preservação da vida e a coletividade estão acima da opção individual – mas é um equívoco tático e seu efeito concreto pode ser fortalecer ainda mais o negacionismo bolsonarista. Primeiro porque no plano ideológico reforça a imagem pretendida de que Bolsonaro está defendendo as liberdades individuais – um paradoxo bizarro dada sua perspectiva fascista. E segundo, porque o que fará com que a maior parte da população se vacine, quando existir uma vacina, não será uma lei de compulsoriedade, mas o conhecimento baseado em informações seguras sobre o que são e como funcionam as vacinas. A questão colocada por Bolsonaro, na forma por ele enunciada, é inteiramente falsa, já que ninguém objetivamente está propondo qualquer forma de vacinação compulsória, portanto não há nenhuma razão para responder aceitando os pressupostos falsos do seu enunciado.
Embora não surpreenda, este novo movimento de Bolsonaro é preocupante. Ainda que o Brasil não tenha um movimento anti-vacina consolidado, esta posição pode ganhar força, considerando-se a intensidade com que outras teses igualmente absurdas se propagaram, a manutenção praticamente intocada da enorme máquina de desinformação bolsonarista e a complexidade da questão que aumenta o desafio de colocar informações claras e explícitas.
Segundo a maioria dos especialistas, é muito provável que mesmo quando contarmos com uma vacina homologada e com produção em série, duas dificuldades colocarão limites à imunização rápida e ampla(³): 1) dificilmente haverá condições técnicas e logísticas para produção em escala suficiente para atender toda a população em curto prazo; 2) dificilmente haverá uma vacina com 100% de eficácia. Quase todos envolvidos no debate consideram que uma vacina com 70% ou 80% de eficácia seria uma grande vitória, e muitos consideram que mesmo com um pouco abaixo disto ainda seria útil. Isto tem duas implicações: 1a) a vacinação deve se dar por etapas, começando por profissionais da saúde, idosos e pessoas com co-morbidades; 2a) Enquanto a maior parte da população não estiver vacinada, uma parcela dos que tiverem sido vacinados poderá ser infectado, a não ser que haja uma improvável vacina com 100% de segurança.
Portanto, a pior posição neste debate é simplificar as coisas vendendo a ilusão de uma solução mágica, de que a vacina resolverá todos os problemas, pois isto se dissipará antes mesmo de a vacina estar disponível à maior parte da população. Em muito pouco tempo se identificará “falhas” (que são esperadas) com pessoas vacinadas infectadas, e isto vai ser propagado pela máquina de propaganda bolsonarista.
Há ainda outro cuidado necessário: a produção de vacinas é atravessada por uma guerra travada que envolve poderosos interesses econômicos e não se trata de “ciência pura” (o que não existe), então não é razoável pressupor como princípio que qualquer vacina apresentada seja segura, e a pior alternativa de todas seria a produção de uma vacina sem comprovação de segurança. A segurança de qualquer vacina, neste contexto de disputa entre mega grupos capitalistas, só pode ser verificada com a publicação transparente dos dados das pesquisas em suas diferentes fases. O caso da vacina russa é elucidativo da instrumentalização política, com um anúncio público de algo que não corresponde à etapa real da pesquisa. Defender incondicionalmente uma vacina que não disponibiliza os dados detalhados da investigação em suas diferentes fases seria um grave erro político.
Hoje a maior parte da população espera ansiosamente pela produção de uma vacina. É um ponto de partida importante para defendermos o conhecimento e a ciência. Mas isto não garante que a perspectiva negacionista não venha a ganhar espaço. É fundamental que a população não apenas anseie por uma vacina, mas compreenda minimamente a base de seu funcionamento e porque sua eficácia depende de que a maior parcela possível da população seja imunizada. O que recoloca, em outro patamar a relação entre individual e coletivo. Este é mais desafio a ser enfrentado.
NOTAS
1 – “’Ô Bolsonaro, não deixa fazerem esse negócio de vacina, não viu? Isso é perigoso’, pediu uma fã de Bolsonaro. ‘Vacina nenhuma, ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina’, consentiu o presidente. ‘É isso aí. Eu sou da área de saúde, farmacêutica, e em menos de 14 anos ninguém pode botar uma vacina no mercado’, argumentou a mulher anônima em questão”.
2 – Ainda que não seja um veículo de esquerda, o tratamento como deboche dado pelo Catraca Livre exemplifica este tipo de reação que é compartilhada por parte da esquerda e que em nosso entendimento é ineficaz.
3 – Recomendo os diversos programas dedicados ao tema pelo Instituto Questão da Ciência em seu canal do Youtube, em duas séries de programas: Diário da Peste e Infovid, bem como artigos publicados na Revista Questão de Ciência.
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