As mulheres negras carregam um estigma de que são mais fortes e, por isso, muitas pessoas ao olhar para um corpo negro faz um diagnóstico de alguém determinada, guerreira, um exemplo a ser seguido. Muitos não imaginam a falta de escolhas. As mulheres negras crescem na luta pela sobrevivência, precisam portar-se como essa pessoa forte capaz de suportar todas as dores. O mito da democracia racial deixa marcas permanentes, o racismo estrutural é capaz de fazer sucumbir o maior dos guerreiros.
“Quando era pequena vi meu pai sucumbir devido aos preconceitos e racismo. Na época não tinha noção dos porquês não resistiu e enfrentou, hoje entendo que nem poderia, para um homem negro criado nos parâmetros de homem branco patriarcal, pedir ajuda era mais humilhante do que a inexistência. Minha mãe teve que buscar força de mulher indígena guerreira para dar conta de criar os doze filhos”. (1)
A força da mulher negra é construída por lágrimas e por falta de opção, para buscar outro destino e negar o destino que foi traçado pelo sistema capitalista, embora um corpo de criança não tenha consciência, mas sabe que resistir é a única maneira de existir “pedi à minha mãe que me arrumasse um emprego, e assim ela fez” (2). O trabalho de babá, geralmente, é o primeiro da lista de muitas meninas negras, que desde pequena sabe o quanto é difícil ter que enfrentar na vida diária o racismo e o preconceito. O limite permitido às mulheres negras é ser “mucama” ou “mãe preta”. As babas como as empregadas domésticas, são as quem cuida do filho da patroa: alimenta, lava, passa e cozinha.
“Um dos momentos mais difícil para mim foi quando com um olhar cabisbaixo, mas com voz firme minha mãe me disse que teria que parar de estudar, pois não tinha dinheiro para comprar os livros e material escolar que não era fornecido pelo estado”. (3)
As memórias são trens descarrilhados, nelas, muitas vezes, é preciso agarrar e lembrar-se do que se foi, e do que se pode construir. Estas lembranças são as marcas de uma existência que teve que passar por grandes transformações, este texto é para compartilhar as experiências dessa autora que vos escreve, não que essa experiência seja única, pois, quem nasce à margem, sabe que esta é mais uma das muitas histórias de memória, mas as memórias “a gente considera como um não saber de inscrições que restituem uma história que não foi inscrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (RATTS; RIOS, 2010, p.74).
O branqueamento é uma experiência dolorosa para toda mulher, a princípio aparece como uma única saída, uma fuga para tentar fugir dos preconceitos e do racismo, como se isso fosse possível. Na roda de amigos os apelidos até engraçadinhos: “moreninha”, “pernambucana”. Marca o racismo naturalizado e velado. A negação da subjetividade de mulher negra deixa marcas por toda a vida. A falta de representatividade, a imposição de um único modelo padronizado de beleza europeu ou norte-americano, as influências das amizades com pessoas brancas, homens e mulheres, e a imposição ideológica branca, faz com que a voz e a beleza negra sejam apagadas.
Portanto, renascer é restabelecer conexão com a história e a subjetividade do corpo negro. Ao se reconstruir é possível perceber o poder na voz e nas marcas da sua existência. Por isso, ocupar a voz, o corpo e os espaços de poder que nos foi negado, é mostrar que estamos aqui, não vamos desistir. A pandemia do COVID-19 desvelou a desigualdade e o racismo, mas também apresentou a resistência do levante negro, que veio para recuperar uma memória ancestral de luta e resistência pondo abaixo as estátuas dos escravocratas, mostrando que o corpo negro existe e resiste.
*Ângela Silva é da professora da rede municipal de Londrina e da Resistência Feminista.
NOTAS
1 – Memórias da minha infância.
2 – Memórias da minha infância.
3 – Memória da minha adolescência.
4 – RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzales. São Paulo: Sebo Negro, 2010.
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