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As mulheres soviéticas na 2ª Guerra: heroínas esquecidas

Thaiz Senna, Rio de Janeiro (RJ)*

Mulheres soviéticas no Exército Vermelho

Apesar do apagamento considerável da participação da União Soviética na Segunda Guerra no mundo não russo-soviético, e do apagamento quase total da presença das mulheres na mesma, é presente no imaginário de alguns nichos da população – em especial após a primavera feminista e suas recuperações – a representação das mulheres soldadas soviéticas como garotas que “estouravam os miolos dos nazistas”1.

De fato, há base material na realidade para essa memória. Cerca de 1 milhão de soviéticas foram ao front de batalha. A maioria, cerca de 70%, não estava de fato na frente de combate2 – eram enfermeiras, médicas ou cumpriam funções que não de ataque, como lavadeiras e sinaleiras. Essas ocupações, que corroboravam lugares históricos das mulheres – como o de cuidar, o de limpar – não constituíam uma especificidade soviética. Ela ocorreu em guerras anteriores, bem como também se dava, na própria Segunda Guerra, em países como Estados Unidos e Grã-Bretanha. No entanto, o que se passou de diferente na URSS foi que mulheres ocuparam espaços militares que nunca haviam ocupado antes, bem como em nenhum outro país puderam fazê-lo – e de forma massificada.

Mulheres soviéticas foram snipers – como a famosa Liudmila Pavlitchenko, que totalizou 309 mortes de soldados nazistas; foram aviadoras – inclusive um regimento de bombardeiros noturnos, que ficou conhecido pela forma pejorativa como os nazistas o chamou: “Bruxas da Noite”; foram da Marinha, área em que sempre houve, segundo as próprias, muito preconceito com as mulheres; foram também metralhadoras, tanquistas, paraquedistas, operadoras de artilharia, atiradoras, sapadoras, partisans. Mulheres mataram e morreram cumprindo funções que eram até então apenas masculinas. Nesse processo, 92 delas ganharam o status de heroína. Um dos principais mártires da chamada Grande Guerra Patriótica é uma jovem mulher – Zóia Kosmodemianskaia, de 18 anos, partisan que foi capturada e torturada e, já sendo enforcada, gritou palavras de ordem por sua pátria e seu estadista. Uma fotografia sua post-mortem, com o corpo desnudo e um de seus seios arrancados, foi amplamente divulgada pelo Estado Soviético como forma de incitar o ódio ao nazismo.

No entanto, essa especificidade soviética, ainda que grandiosa, não era grande. As mulheres eram apenas uma pequena parte da força total de combate (34.5 milhões de pessoas3) e, em termos de hierarquia, era raro haver mulheres em funções de batalha em postos superiores. As 92 heroínas estavam ao lado de 11.543 heróis. Inicialmente, ainda que muitas mulheres quisessem lutar, o Estado soviético não permitiu, só o tendo feito em 1942, quando o exército alemão já avançava. Na propaganda, ainda que os cartazes mais famosos tenham mulheres como protagonistas, essas aparecem majoritariamente como mães, esposas e filhas, as quais demandam (seja em posição ativa, seja em posição de vítima) seus filhos, maridos e pais a irem combater ou os acolhem após a vitória. Aparecem também como enfermeiras e, muito mais minoritariamente, como partisans – em ambos os casos, sempre em posições inferiores (espacialmente, que por vezes indica simbolicamente) aos homens.

É preciso falar também do cotidiano não heroico das combatentes. Após anos de silêncio, ensejados pela história oficial higienizada e censurada, baseada em datas, fatos, medalhas e homens, alguns trabalhos conseguem mostrar um lado que estava não apenas encoberto, mas também escondido. A primeira a realizar esse tipo de obra foi a jornalista e escritora bielorrussa Svetlána Aleksiévitch, em sua obra “A Guerra não tem rosto de mulher” (Companhia das Letras, 2015).

Há também relatos produzidos via história oral, como fazem as autoras Barbara Engel e Anastasia Posadskaia-Vanderbecck, em “A revolution of their own” (Westview Press, 1998). Tais relatos das ex-combatentes nos mostram que a igualdade entre homens e mulheres, defendida em discurso por parte do Estado desde a Revolução Russa, não ocorria na prática do front, seja por causa de feitos ou falhas do próprio Estado, seja por parte dos homens, fossem cabos, fossem comandantes. Assim, as frontovitchka não tinham, ao menos até 1943, vestimentas adequadas para si (seja em termos de forma, seja em termos de tamanho), materiais de higiene específicos ao sexo (como absorventes); muitas relatam tratamento diferenciado, seja por as subestimarem, seja por as idealizarem; não tinham proteção para casos de assédio ou estupro – a ilusão de que os soldados as viam como “irmãzinhas”, como foi tão propagado pelo Estado para apagar as sexualidades forçadas ou não no front, acabava, segundo Sófia K-vitch4, quando iam para os acampamentos; muitas buscavam proteção para essas ações tornando-se o que ficou conhecido pejorativamente como “Esposa de Campo e Campanha”, isso é, relacionando-se com homens, em geral de patente maior, pois, como relata K-vitch, vítima de estupro, “é melhor viver com um do que ter medo de todos5.

Ao se pensar em guerra, é comum que a primeira imagem à cabeça seja o front. Assim, ao pensar nas soviéticas na Segunda Guerra Mundial é comum que as frontovitchka sejam as primeiras a aparecer na mente. No entanto, apesar de serem (quando são) as únicas lembradas em passeatas festivas do pós-guerra, elas eram apenas uma pequena parte da população feminina. Onde estariam as outras?

Como em todo o restante do mundo em guerra, muitas delas estavam trabalhando – tanto dentro, quanto fora de casa. Por um lado, muitas mulheres conseguiram ocupar cargos e funções antes não possíveis a elas, mas apenas a homens – assim como em diversos outros países, tal como trabalha Genilda Souza em artigo neste especial sobre a 2ª Guerra – “A guerra também tem cara de mulher”. Pode-se dizer que a URSS chegou a ter até mesmo o seu próprio cartaz “We can do it” – A nu-ka, vziali! (Vamos, peguemos!), de Iosif Serebriannyi, 1944. A diferença, talvez, é que além de, na URSS, as mulheres já tivessem dado um passo em relação a atividades não femininas, sua presença no mercado de trabalho já era grande desde a década de 1930 – a porcentagem feminina na força de trabalho aumentou, assim, principalmente pela ausência de homens, e menos pelo aumento do número de mulheres6.

Por outro lado, todavia, as mulheres que ficaram foram submetidas a regimes perversos de trabalho, com cargas horárias de 12 a 14 horas por dia7, não apenas para substituir o trabalho não realizado por homens, mas também para sustentar o esforço de guerra, fabricando de balas a tanques. Além disso, em muitos locais, como em Moscou ou em Leningrado sitiada, elas precisavam também se defender dos alemães – construir barricadas, cavar valas antitanques, colocar minas e arames farpados. Assim, nessa guerra total, vemos que mesmo as mulheres que “ficaram” também ajudaram a vencer os nazistas, contando também com os riscos dessa tarefa, com as múltiplas jornadas cumpridas à exaustão e sem apoio adequado do Estado.

No pós-guerra, a situação não melhorou para as mulheres. As que lutaram no front doméstico e fabril, em especial em territórios inimigos ou ocupados, sofriam o risco de serem tidas como colaboracionistas e julgadas pelo Estado. As que lutaram no campo de batalha, ainda que voltassem com medalhas e com a Vitória, foram por vezes marginalizadas pelo Estado, como não receber direitos prometidos8, como um apartamento para viver ou apoios ou tiveram suas narrativas, sua forma de ver a guerra, silenciadas. Sofriam, ainda, reprimendas por parte da população. Vera Malákhova, por exemplo, explica que começou a não usar mais sua medalha, porque com ela era vista como “puta”9. Diversas veteranas registram o mesmo fato – de que as outras mulheres achavam que elas só foram para a guerra para casar ou “roubar seus maridos”. Os próprios homens que guerrearam, por sua vez, também destilavam preconceito contra suas ex “irmãzinhas”: um ex-combatente disse a Aleksiévitch (2015) que um amigo seu era apaixonado por uma enfermeira, mas não conseguiu casar com ela, arranjou outra “mais bonitinha” – num clássico exemplo de separação de mulher com qual se casa e as outras.

As combatentes da URSS, que de fato “tocaram o terror nos nazistas”10, foram, de fato, uma exceção. Foram poucas mulheres, frente ao número de homens, foram enviadas posteriormente, sofreram inúmeras degradações, durante ou após a Guerra. Contudo, seja pela necessidade imediata de combater o inimigo que a invadia, seja pela pressão das mulheres em lutar pela pátria, seja pela manutenção de um paradigma da igualdade, – nascido em meio à Revolução Russa e a tentativa de emancipação feminina por ela ensejada – a União Soviética era, também ela, mesmo com tão pouco, uma exceção para o mundo, no que se tratou das mulheres no front de batalha, tendo dado passos maiores do que os outros países.

* Thaiz Senna é doutoranda em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense (UFF), autora do artigo “A baba e a Nova Mulher nos cartazes soviéticos dos anos 1920-1930”.

1 ANTÓN, Jacinto. “As meninas soviéticas que estouravam os miolos dos nazistas”.Disponíveel em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/21/internacional/1508538803_215725.html>. Acesso em 18 mai. 2020. A obra citada por Antón, Avening Angels, da pHD em microbiologia, Lyuba Vinogradova, que também escreveu Defending the Motherland. Com o estilo narrativo literário (em lugar do corrente acadêmico), as obras de Vinogradova também colaboram para popularizar as soviéticas combatentes (por vezes, porém, de forma estereotipada).

2 MARWICK, Roger; CARDONA, Euridice. Soviet women in the Frontline. Palgrave Macmillan: London, 2012.

3 MERRIDALE, Catherine. Ivan’s war – inside the Red Army. Faber and Faber: London, 2010.

4 Codinome.

5 ALEKSIÉVITCH: 2015

6 Sobre isso, ver os gráficos em FITZPATRICK, Sheila. War and Society in Soviet Context: Soviet Labor before, during, and after World War II. International Labor And Working-class History, Londres, v. 1, n. 35, p.37-52, Spring 1989. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/27671803 >. Acesso em: 08 out. 2019.

7 MARWICK; CARDONA: ibid.

8 ALEKSIÉVITCH: 2015

9 ENGEL; POSADSKAYA: ibid.

10 EGOROV, Boris. Como as mulheres soviéticas que dirigiam tanques tocaram terror nos nazistas. Disponível em: < https://br.rbth.com/historia/81303-mulheres-sovieticas-tanques-nazistas> Acesso em 19 mai. 2020