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TEORIA

Distopia tecnológica do capital? (Parte 1)

Lucas Marques, de Campinas
Roberto Parizotti / Fotos Públicas

A tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e das concepções espirituais que dela decorrem (MARX, 2011, p. 446)

Introdução

    Na virada do século XX para o XXI muito se discutia sobre as grandes transformações tecnológicas com o surgimento da internet e a disseminação dos computadores nas diversas esferas da vida social. Havia quem apostasse num certo potencial emancipatório dessas novas tecnologias (sendo Castells um dos principais expoentes de uma suposta “volta da autonomia do trabalho”). 

    Nos dias atuais, longe de uma utopia tecnológica, parecemos imersos em uma verdadeira distopia tecnológica: degradação das relações de trabalho, ampliação do desemprego estrutural, terceirização, privatização de serviços públicos, mercadorização de relações que antes não estavam subsumidas ao mercado.  Mas como chegamos até aqui, qual a dinâmica desse processo? Quais as consequências da transformação tecnológica para o mundo do trabalho?

    Mais do que isso, diante da crise pandêmica, com ampliação do trabalho remoto online e da importância crescente do trabalho a partir das plataformas de aplicativo, é possível falar em aprofundamento de dinâmicas que já estavam presentes no capitalismo do século XXI? 

    Por fim, todas essas transformações tem um impacto profundo na classe trabalhadora contemporânea, Ricardo Antunes fala em uma “nova morfologia da classe trabalhadora”. Quem é essa nova classe trabalhadora, cada dia mais feminina e racializada? Qual a centralidade da classe-que-vive-do-trabalho para a transformação social? Quais as suas formas de luta e resistência?

    Nessa série de artigos queremos levantar e explorar algumas dessas questões com base em estudos marxistas produzidos no último período. Longe de uma abordagem tecnicista, queremos entender como o dinamismo tecnológico tão característico do capitalismo engendra e reflete um conjunto amplo de relações sociais. Em tempos de #BrequeDosApps, é um esforço pontual e longe de ser suficiente, mas queremos que possa servir em alguma medida como contribuição para as elaborações dos revolucionários diante dos desafios colocados pelo século XXI.

O novo capitalismo do século XXI

Uma das características marcantes do capitalismo contemporâneo é o papel cada vez mais preponderante das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) na sociedade em geral, seja na vida cotidiana ou no mundo do trabalho em específico. A ampliação papel das TICs vem na esteira de um amplo processo de transformações sociais desde a década de 1970 (Antunes, 2009 e Harvey, 2007). Mais do que isso, seu desenvolvimento é base fundamental dessas transformações. Para Castells o surgimento da internet na década de 1990: 

está transformando a prática das empresas em sua relação com fornecedores e compradores, em sua administração, em seu processo de produção e em sua cooperação com outras firmas, em seu financiamento e na avaliação de ações em mercados financeiros. (CASTELLS, 2001, p. 68)

    Sua análise das empresas do chamado Vale do Silício (Califórnia, Estados Unidos) no início dos anos 2000 torna visível a consolidação das amplas transformações sociais e econômicas que modificam a lógica de funcionamento da acumulação capitalista. A forma organizacional que ele identifica como rede é caracterizada por intensos fluxos de comunicação internos e externos, com uma estrutura empresarial na qual diversas empresas são integradas pelo capital financeiro através desses fluxos.

Entendo por isso [empresa de rede] a forma organizacional construída em torno de projetos de empresas que resultam da cooperação entre diferentes componentes de diferentes firmas, que se interconectam no tempo de duração de dado projeto empresarial, reconfigurando suas redes para a implementação de cada projeto. (CASTELLS, 2001, p. 71)

 Essas “empresas eletrônicas” têm suas operações-chave (administração, inovação, produção, distribuição, vendas e relações com empregados e clientes) mediadas pela internet ou por algum tipo de rede de computadores. “Ao adotar a Internet como um meio fundamental de comunicação e processamento de informação, a empresa adota a rede como sua forma organizacional.” (CASTELLS, 2001)

Vale salientar que, para o autor, uma empresa de rede não é nem uma rede de empresas, nem uma organização de rede intrafirma: é uma agência enxuta de atividade econômica, construída em torno de projetos empresariais específicos, que são levados a cabo por redes de composição e origem variada – a rede é a empresa. O exemplo da Cisco Systems é citado como emblemático:

Sendo uma das companhias industriais mais ricas do mundo, ela fabrica muito pouco por si mesma, tendo terceirizado mais de 90% de sua produção para uma rede de fornecedores autorizados.[…] Assim, a Cisco é realmente um fabricante, mas baseado numa fábrica virtual, global, pela qual tem responsabilidade final em termos de pesquisa e desenvolvimento, engenharia de protótipo, controle de qualidade e marca. (CASTELLS, 2001, p. 74)

A partir de outros exemplos como o da Zara e o da Amazon, Castells identifica a importância da estrutura de rede computadorizada para o sucesso dessas empresas e o novo modelo de negócio que emerge do capitalismo informatizado.

    Outro ponto de destaque da análise do autor catalão é a importância do processo de desenvolvimento de um mercado financeiro global operado por redes de computadores, com um novo conjunto de regras para o investimento de capital e a avaliação de ações e de títulos em geral. Essa transformação modifica a relação do capital financeiro com as empresas, principalmente as jovens empresas de base tecnológica, que devem buscar recursos nas bolsas (a mais notória desse tipo é a Nasdaq em sua relação com as empresas então nascentes do Vale do Silício) e assim alavancar seu crescimento.

    Esse modelo de negócio é o aspecto central na pesquisa de Bruno (2018), que desenvolve uma análise do trabalho dos empreendedores sócios das chamadas startups (empresas emergentes) de base tecnológica. São empresas altamente intensivas no uso das novas TICs e são receptoras de altos volumes de capital por parte de investidores do chamado capital de risco – diante de sua importante valorização dos mercados financeiros globais. Alguns exemplos citados de empresas que começaram como startups são Apple, Facebook e Google, todas com sede no Vale do Silício. 

na atual indústria tecnológica é possível dar início a um negócio a partir de uma ideia inovadora, que receberá aportes de investidores que, por sua vez, terão participação direta na empresa pensando em vendê-la com valorização no curto ou médio prazo. A possibilidade de transformar criatividade e poder mental em dinheiro é justamente o que é apresentado como diferencial da cultura empresarial do Vale do Silício e da indústria de Internet em geral. As ideias são vendidas aos capitalistas de risco, dando origem a negócios que geram mais dinheiro para os investidores e para os empresários, caso bem sucedidos. (BRUNO, 2018, p. 24 )

Braga (2009), por sua vez, apresenta uma visão mais negativa em relação às transformações trazidas pela era da informação. Em sua crítica a Lojkine, Braga aponta que enquanto este autor celebrava as principais características da revolução informacional (polivalência, flexibilidade e a estrutura em redes descentralizadas), ignorava a emergência tendencialmente hegemônica do regime mundializado de acumulação com dominância financeira e de sua relação com a base técnica ofertada pelas tecnologias informacionais. 

Ao avaliar os méritos de Manuel Castells em analisar a economia capitalista à luz das transformações da virada do século XX para o XXI, Braga também ressalta, por outro lado, que o autor catalão acaba incorrendo em um certo determinismo tecnológico, ao selecionar um instrumento técnico para construir uma determinada representação do conjunto das relações sociais. 

O domínio social das tecnologias informacionais criaria uma base prática de novo tipo. É mais importante a morfologia do que a atividade. Com Castells, a difícil transição pós-fordista chegaria finalmente a um desenlace definitivo. O modelo vitorioso, por várias vezes anunciado pelos profetas tecnicistas e capaz de colocar um fim às polêmicas a respeito da identidade do sistema redentor, repousaria na seara imaterial da empresa Cisco Systems. (BRAGA, 2009, p. 61)

    Para Braga, Castells apresenta o informacionalismo como uma superação histórica necessária e positiva do industrialismo, levando ao que Braga se refere como um diagnóstico eclético: de um lado aponta a “desconexão” produtiva, com aumento da pobreza em vastas regiões do planeta, a expansão do trabalho “desvalorizado” etc. De outro, afirma que a que a desigualdade entre países ricos e pobres não é tão grave e pode ser atenuada, e que a quantidade e a qualidade do trabalho irão aumentar. 

Durante as décadas de 1980 e 1990 se consolidou um regime de acumulação com dominância financeira centrado na rentabilidade dos ativos, na predominância dos fluxos informacionais e na concentração do capital financeiro em escala mundial.

Assistimos então à desestruturação da empresa fordista em benefício de um modelo de organização das relações de produção orientado pela generalização do processo de terceirização, pela compressão dos níveis hierárquicos, pelo desenvolvimento de estratégias gerenciais objetivando a mobilização permanente da força de trabalho, pela cooperação constrangida dos assalariados, pela administração por metas, assim como pela fragmentação da relação salarial. (BRAGA, 2009, p. 67-68)

    Braga define a empresa neoliberal como uma “nova utopia capitalista”. Para ele a empresa de rede se revela como uma nova estrutura empresarial, marcada pela terceirização, com o capital financeiro no topo, seguido por três níveis: 1) a organização de primeiro nível, a empresa “inovadora”, pouco hierarquizada, criativa; 2) a empresa neofordista montadora; 3) a empresa neotaylorista e terceirizada, que produz componentes de bens e serviços. 

    Nessa nova estruturação empresarial, a startup em geral busca ser a empresa do nível 1, inovadora, e para isso precisa estabelecer um modelo de negócio escalável e atrativo para os capitais de risco. Esse foi o modelo adotado por grandes empresas em suas fases iniciais. Exemplos antigos já citados como Apple e google, mas também mais recentes como Uber, Loggi, Nubank, Rappi. Estas empresas em geral contam com trabalhadores altamente qualificados, relativamente bem pagos, mas em contratos em geral bastante flexíveis (“pejotização”). Mas no caso dos modelos de negócio de plataformas de trabalho por aplicativos, na outra ponta “contratam”, em relações de trabalho ocultas sob o pretexto do “trabalho autônomo”, um grande contingente de trabalhadores de baixa qualificação e altamente precarizados.

Referências

  • ANTUNES, R.; BRAGA, R.; NOGUEIRA, A. M Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009
  • ANTUNES, R. O privilégio da servidão. São Paulo: Boitempo, 2018
  • ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho : São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2009
  • BRUNO, L. Empreendedores de startups e trabalho imaterial no capitalismo cognitivo. 2018. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação), Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
  • CASTELLS, M. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
  • HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2007. 
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2011.